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sexta-feira, 14 de março de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 14]

Aires escondia o espanto... Convidado assim àquela hora... Uma profissão de fé política... Batista insistia na distinção do temperamento e das idéias. Alguns amigos velhos, que conheciam esta dualidade moral e mental, é que teimavam em querer que ele aceitasse uma presidência; ele não queria. Francamente, que lhe parecia ao conselheiro?
        —Francamente, acho que não tem razão.
        —Que não tenho razão em quê?
        —Em recusar.
        —Propriamente, não recusei nada; há um grande trabalho neste sentido, e o meu desejo, — acrescentou com mais clareza, — é que os bons amigos sagazes me digam se tal cousa é acertada; não me parece que seja...
        —Eu penso que é.
        —De maneira que, se o caso fosse com o senhor...
        —Comigo não podia ser. Sabe que eu já não sou deste mundo e politicamente nunca figurei em nada. A diplomacia tem este efeito que separa o funcionário dos partidos e o deixa tão alheio a eles, que fica impossível de opinar com verdade, ou, quando menos, com certeza.
        —Mas não me disse que acha...
        —Acho.
        —Que posso aceitar uma presidência, se me oferecerem?
        —Pode; uma presidência aceita-se.
        —Pois então saiba tudo; é a única pessoa de sociedade com quem me abro assim francamente. A presidência foi-me oferecida.

        —Aceite, aceite.
        —Está aceita.
        —Já?
        —O decreto assina-se sábado.
        —Então aceite também os meus parabéns.
        —Propriamente, a lembrança não foi do ministério; ao contrário, o ministério não se resolveu antes de saber se efetivamente fiz uma eleição contra os liberais, há anos; mas logo que soube que por não os perseguir é que fui demitido, aceitou a indicação de chefes políticos, e recebi pouco depois este bilhete.
O bilhete estava no bolso, dentro da carteira. Qualquer outro, alvoroçado com a nomeação próxima, levaria tempo a achar o bilhete no meio dos papéis; mas Batista possuía o tacto dos textos. Tirou a carteira, abriu-a descansado e com os dedos sacou o bilhete do ministro convidando-o a uma conversação. Na conversação ficou tudo assentado.
LIV
Enfim, só!
Enfim, só! Quando Aires se achou na rua, só, livre, solto, entregue a si mesmo, sem grilhões nem considerações, respirou largo. Fez um monólogo, que daí a pouco interrompeu por se lembrar de Flora. Tudo o que ela não quisera ia acontecer; lá ia o pai a uma presidência, e ela com ele, e a recente inclinação ao jovem Pedro vinha parar a meio caminho. Entretanto, não se arrependia do que dissera e ainda menos do que não dissera. Os dados estavam lançados. Agora era cuidar de outra cousa.
LV
"A mulher é a desolação do homem"

Ao despedir-se, fez Aires uma reflexão, que ponho aqui, para o caso de que algum leitor a tenho feito também. A reflexão foi obra de espanto, e o espanto nasceu de ver como um homem tão difícil em ceder às instigações da esposa (Vai-te, Satanás, etc.; capítulo XLVII) deitou tão facilmente o hábito às urtigas. Não achou explicação nem a acharia, se não soubesse o que lhe disseram mais tarde, que os primeiros passos da conversão do homem foram dados pela mulher. "A mulher é a desolação do homem", dizia não sei que filósofo socialista, creio que Proudhon. Foi ela, a viúva da presidência, que por meios vários e secretos, tramou passar a segundas núpcias. Quando ele soube do namoro, já os banhos estavam corridos; não havia mais que consentir e casar também.
Ainda assim, custou-lhe muito. O clamor dos seus aturdia-lhe de antemão os ouvidos, a alma ia cega, tonta, mas a esposa servia-lhe de guia e amparo, e, com poucas horas, Batista viu claro e ficou firme.
        —Estamos à porta do terceiro reinado, ponderou D. Cláudia, e certamente o Partido Liberal não deixa tão cedo o poder. Os seus homens são válidos, a inclinação dos tempos é para o liberalismo, e você mesmo...
        —Sim, eu... suspirou Batista.
D. Cláudia não suspirou, cantou vitória; a reticência do marido era a primeira figura de aquiescência. Não lhe disse isto assim, nu e cru; também não revelou alegria descomposta; falou sempre a linguagem da razão fria e da vontade certa. Batista, sentindo-se apoiado. caminhou para o abismo e deu o salto nas trevas. Não o fez sem graça, nem com ela. Posto que a vontade que trazia fosse de empréstimo, não lhe faltava desejo a que a vontade da esposa deu vida e alma. Daí a autoria de que se investiu e acabou confessando.
Tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no Memorial. Tal será a do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de Aires; não o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é obrigado a fazer. O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida.

 LVI
O Golpe
  
O dia seguinte trouxe à menina Flora a grande novidade. Sábado seria assinado o decreto, a presidência era no Norte. D. Cláudia não lhe viu a palidez, nem sentiu as mãos frias, continuou a falar do caso e do futuro, até que Flora, querendo sentar-se, quase caiu. A mãe acudiu-lhe:
        —Que é? Que tens?
Nada mamãe, não é nada.
A mãe fe-la sentar-se.
        —Foi uma tonteira, passou.
D. Cláudia deu-lhe a cheirar um pouco de vinagre, esfregou-lhe os pulsos; Flora sorriu.
        —Este sábado? perguntou.
        —O decreto? Sim, este sábado. Mas não digas por ora a ninguém; são segredos de gabinete. É cousa certa; enfim, alguém nos fez justiça; provavelmente o imperador. Amanhã irás comigo a algumas encomendas. Fazer uma lista do que precisas.
Flora precisava não ir e só pensava nisso. Uma vez que o decreto estava prestes a ser assinado, não havia já desaconselhar a nomeação; restava-lhe a ela ficar. Mas como? Todos os sonhos são próprios ao sono de uma criança. Não era fácil, mas não seria impossível. Flora cria tudo; não tirava o pensamento de Aires, e já agora de Natividade também. Os dous podiam fazê-lo, ou antes os três, se contardes também o barão, e se vier a cunhada deste, quatro. Juntai aos quatro as cinco estrelas do Cruzeiro, as nove musas, anjos e arcanjos, virgens e mártires... Juntai-os todos, e todos poderiam fazer esta simples ação de impedir que Flora fosse para a província. Tais eram as esperanças vagas, rápidas, que corriam a substituir as tristezas do rosto da moça, enquanto a mãe, atribuindo o efeito ao vinagre, ajustava a rolha de vidro ao frasco, e restituía o frasco ao toucador.
        —Fazer uma lista do que precisas, repetiu à filha.
        —Não, mamãe, eu não preciso nada.
        —Precisas, sim, eu sei o que precisas.
  
LVII
Das encomendas

 Não escreveria este capítulo, se ele fosse propriamente das encomendas, mas não é. Tudo são instrumentos nas mãos da Vida. As duas saíram de casa, uma lépida, a outra melancólica, e lá foram a escolher uma quantidade de objetos de viagem e de uso pessoal. D. Cláudia pensava nos vestidos da primeira recepção e de visitas; também ideou o do desembarque. Tinha ordem do marido para comprar algumas gravatas. Os chapéus, entretanto, foram o principal artigo da lista. Ao parecer de D. Cláudia, o chapéu da mulher é que dava a nota verdadeira do gosto, das maneiras e da cultura de uma sociedade. Não valia a pena aceitar uma presidência para levar chapéus sem graça, dizia ela sem convicção, porque intimamente pensava que a presidência dá graça a tudo.
Estavam justamente na loja de chapéus, Rua do Ouvidor, sentadas, os olhos fora e longe, quando a verdadeira matéria deste capítulo apareceu. Era o gêmeo Paulo, que chegara pelo trem noturno, e sabendo que elas andavam a compras, viera procurá-las.
        —O senhor! exclamaram.
        —Cheguei esta manhã.
Flora tinha-se levantado, com o alvoroço que lhe deu a vista inesperada de Paulo. Ele correu a elas, apertou-lhes as mãos, indagou da saúde e reconheceu que pareciam vender saúde e alegria. A impressão era exata; Flora tinha agora uma agitação, que contrastava com o abatimento daquela triste manhã, e um riso que a fazia alegre.
        —Tive sempre notícias das senhoras, que mamãe me dava, e Pedro também, às vezes. Da senhora, continuou ele falando a D. Cláudia, recebi duas cartas. Como vai o doutor?
        —Bem.
        —Ora, enfim, cá estou!
E Paulo dividia os olhos com as duas, mas a melhor parte ia naturalmente para a filha. Pouco depois era todo e pouco para esta. D. Cláudia voltara à escolha dos chapéus, e Flora, que até então opinava de cabeça, perdeu este último gesto. Paulo sentou-se na cadeira que um empregado lhe trouxe, e ficou a olhar para a moça falavam de cousas mínimas, alheias ou próprias, tudo o que bastasse para os reter disfarçadamente na contemplação um do outro. Paulo viera o mesmo que fora, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular, que ela não podia achar claramente, menos ainda definir. Era um mistério, Pedro teria o seu.
D. Cláudia interrompia-os, de vez em quando, a propósito da escolha; mas, tudo acaba, até a escolha de chapéus. Foram dali aos vestidos. Paulo, não sabendo da presidência, estimou esta casualidade para as acompanhar de loja em loja. Contava anedotas de S. Paulo, sem grande interesse para Flora; as notícias que ela lhe dava acerca das amigas, eram mais ou menos dispensáveis. Tudo valia pelos dous interlocutores. A rua ajudava aquela absorção recíproca; as pessoas que iam ou vinham, damas ou cavalheiros, parassem ou não, serviam de ponto de partida a alguma digressão. As digressões entraram a dar as mãos ao silêncio, e os dous seguiam com os olhos espraiados e a cabeça alta, ele mais que ela, porque uma pontinha de melancolia começava a espancar do rosto da moça a alegria da hora recente.
Na Rua Gonçalves Dias, indo para o Largo da Carioca, Paulo viu dous ou três políticos de S. Paulo, republicanos, parece que fazendeiros. Havendo-os deixado lá, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a última vez que os vira ia já a alguma distancia.
        —Conhecem? perguntou às duas.
Não, não os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A mãe talvez fizesse alguma pergunta política, mas deu por falta de um objeto, advertiu que o não comprara, e propôs voltarem atrás. Tudo era aceito por ambos, com docilidade, apesar do véu de tristeza, que se ia cerrando mais no rosto da moça. Aquelas encomendas tinham já um ar de bilhetes de passagem, não tardava o paquete, iam correr às malas, aos arranjos, às despedidas, ao camarote de bordo, ao enjoo de mar, e àquele outro de mar e terra, que a mataria, com certeza, cuidava Flora. Daí o silêncio crescente, que Paulo mal podia vencer, de quando em quando; e contudo ela estava bem com ele, gostava de lhe ouvir dizer cousas soltas, algumas novas, outras velhas, recordações anteriores à partida daqui para S. Paulo.
Assim se deixaram ir, guiados por D. Cláudia, quase esquecida deles. No meio daquela conversação truncada, mais entretida por ele que por ela. Paulo sentia ímpetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se pensara nele, ou, ao menos, sonhara com ele algumas noites. Ouvindo que não, daria expansão à cólera, dizendo-lhe os últimos impropérios; se ela corresse, correria também, até pegá-la pelas fitas do chapéu ou pela manga do vestido, e, em vez de a esganar, dançaria com ela uma valsa de Strauss ou uma polca de ***. Logo depois, ria destes delírios, porque, a despeito da melancolia da moça, os olhos que ela erguia para ele eram de quem sonhou e pensou muito na pessoa, e agora cuida de descobrir se é a mesma do sonho e do pensamento. Assim lhe parecia ao estudante de Direito; pelo que, quando ele desviava o rosto, era para repetir a experiência e tornar a ver-lhe os olhos aguçados do mesmo espírito crítico e de livre exame. Quanto ao tempo que os três gastaram nessa agitação de compras e escolhas, visões e comparações, não há memória, dele nem necessidade. Tempo é propriamente ofício de relógio, e nenhum deles consultou o relógio que trazia.

 LVIII
Matar saudades
  
Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmão de Pedro, tal qual recebia o irmão de Paulo. Ambos eram apóstolos. Paulo achava-a agora mais bonita que alguns meses antes, e disse-lho nessa mesma tarde em S. Clemente, com esta palavra familiar e cordial:
        —A senhora enfeitou muito.
Flora julgava a mesma cousa, relativamente ao estudante de Direito; calou a impressão. Ou a tristeza que trazia, ou qualquer outro sensação particular, fê-la acanhada, a princípio. Não tardou, porém. que achasse outra vez o gêmeo no gêmeo, e que ele e ela matassem saudades.
Como é que se matam saudades não é cousa que se explique de um modo claro. Ele não há ferro nem fogo, corda nem veneno, e todavia as saudades expiram, para a ressurreição, alguma vez antes do terceiro dia. Há quem creia que, ainda mortas, são doces, mais que doces. Esse ponto, no nosso caso, não pode ser ventilado, nem eu quero desenvolvê-lo, como aliás cumpria.
As saudades morreram, não todas, nem logo, logo, mas em parte e tão vagarosamente que Paulo aceitou o convite de lá jantar. Era o dia da chegada; Natividade quisera tê-lo consigo à mesa, ao pé de Pedro, para cimentar a pacificação começada pela distancia. Paulo nem se deu ao trabalho de lá mandar; deixou-se estar com a bela criatura, entre o pai e a mãe que pensava em outra cousa, próxima no tempo e remota no espaço. Sabendo o que era, Flora passava do prazer ao tédio, e Paulo não entendia essa alternação de sentimentos. De quando em quando, vendo a mãe agitada e preocupada, mas com outra expressão, Paulo interrogava a filha. Em vez de dar uma explicação qualquer, Flora passou uma vez a mão pelos olhos e ficou alguns instantes sem os descobrir. A ação do estudante de Direito, devia ser arredar-lhe a mão, encará-la de perto, mais perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um modo em que a eloquência do gesto dispensasse a fala. Se tal idéia teve, não saiu cá fora. Nem ela lhe consentiu mais tempo que o da pergunta:
        —Que é que tem?
        —Nada, respondeu Flora.
        —Tem alguma cousa, insistiu ele querendo pegar-lhe na mão.
Não acabou o gesto. não o começou sequer; abriu e fechou os dedos apenas, enquanto ela sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a matar saudades.


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