Total de visualizações de página

quinta-feira, 13 de março de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 13]

Mas por que é que o senhor foi mostrar essa carta a sua mãe?
        —Mamãe quis saber o que é que ele me dizia.
        —E sua mãe zangou-se, aí está; vai talvez repreendê-lo.
Tanto melhor; Paulo precisa ser emendado; mas, diga-me, por que é que a senhora defende sempre a meu irmão?
        —Para ter o direito de defender também ao senhor.
        —Então ele já lhe tem falado mal de mim?
Flora quis dizer que sim, depois que não, afinal calou. Desconversou, perguntando por que eles se davam mal. Pedro negou que se dessem mal. Ao contrário, viviam bem. Não teriam as mesmas opiniões, e também podia ser que tivessem o mesmo gosto... Daqui a dizer que ambos a amavam era uma vírgula; Pedro pintou o ponto final. Esse astuto era também tímido. Mais tarde, compreendeu que, calando, andou melhor, e deu a si mesmo o aplauso da escolha; mas era falso, não escolhera nada. Não digo isto para fazê-lo desmerecer; sim, porque o medo acerta muitas vezes, e é mister deixar aqui esta reflexão.
Veio a zanga. Flora não replicou mais nada, e, por seu gosto, não teria jantado, a tal ponto sentia piedade do outro. Felizmente, o outro era este mesmo, aqui presente, com os olhos presentes, as mãos presentes, as palavras presentes. Não tardou que a zanga fugisse diante da graça, da brandura e da adoração. Bem-aventurados os que ficam, porque eles serão compensados.

LII
Um segredo

Eis agora a matéria da conspiração. Na rua, ao virem de S. Clemente, foi que Pedro, gastado o melhor do tempo com a carta e o jantar, pôde revelar à moça um segredo:
        —Titia disse lá em casa que D. Cláudia lhe contara em segredo (não diga nada) que seu pai vai ser nomeado presidente de província.
        —Não sei nada disso, mas não creio, porque papai é conservador.
        —D. Cláudia disse a titia que ele é liberal, quase radical. Parece que a presidência é certa; ela pediu segredo, e titia, quando nos contou, também pediu segredo. Eu também lhe peço que não diga nada, mas é verdade.
        —Verdade como? Papai não vai com liberais; o senhor não sabe como papai é conservador. Se ele defende os liberais é porque é tolerante.
        —Se a província fosse a do Rio de Janeiro, eu gostaria, porque não era preciso ir morar na Praia Grande, e se ele fosse, a viagem é só de meia hora, eu podia ir lá todos os dias.
        —Era capaz?
        —Apostemos.
Flora, depois de um instante:
        —Para que, se não há presidência?
        —Suponha que há.
        —É preciso supor muito, — que há presidência e que a província é a do Rio. Não, não há nada.
        —Então suponha só metade, — que há presidência e que é Mato Grosso.
Flora teve um calefrio. Sem admitir a nomeação, tremeu ao nome da província. Pedro lembrou ainda o Amazonas, Pará, Piauí... Era o infinito, mormente se o pai fizesse boa administração, porque não voltaria tão cedo. Já agora a moça resistia menos, achava possível e abominável, mas dizia isto para si, dentro do coração. De repente, Pedro, quase estacando o passo:
        —Se ele for, eu peço ao governo o lugar de secretário e vou também.
A luz intermitente das lojas refletindo no rosto da moça, à medida que eles iam passando por elas, ajudava a dos lampiões da rua, e mostrava a emoção daquela promessa. Sentia-se que o coração de Flora devia estar batendo muito. Em breve, porém, começou ela a pensar em outra cousa. Natividade não consentiria nunca; depois, um estudante... Não podia ser. Pensou em algum escândalo. Que ele fugisse, embarcasse, fosse atrás dela...
Tudo isto era visto ou pensado cm silêncio. Flora não se admirava de pensar tanto e tão atrevidamente; era como o peso do corpo, que não sentia: andava, pensava, como transpirava. Não calculou sequer o tempo que ia gastando em imaginar e desfazer idéias. Que isto lhe desse mais prazer que desprazer, é certo. Ao pé dela, Pedro ia naturalmente cuidando, com os olhos nos pés, e os pés nas nuvens. Não sabia que dissesse no meio de tão longo silêncio. Entretanto, a solução parecia-lhe única. Já não pensava na presidência do Rio. Queria-se com ela, no ponto mais remoto do império, sem o irmão. A esperança de se desterrarem assim de Paulo verdejou na alma de Pedro. Sim, Paulo não iria também, a mãe não se deixaria ficar desamparada. Que perdesse um filho, vá; mas ambos...
A quem quer que este final de monólogo pareça egoísta, peço-lhe pelas almas dos seus parentes e amigos, que estão no céu, peço-lhe que considere bem as causas. Considere o estado da alma do rapaz, de iniquidades, e não lhe importa esta imagem. Considere tudo, idade de Pedro, o mal da Terra, o bem da mesma Terra. Considere mais a vontade do Céu, que vela por todas as criaturas que se querem, salvo se um só é que quer a outra, porque então o Céu é um abismo de iniquidades, e não lhe importa esta imagem. Considere tudo, amigo; deixe-me ir contando só e contando mal o que se passou naquele curto transito entre as duas casas. Quando lá chegaram, falavam de boca.
Em cima, como viste, continuaram a falar, até que o assunto da presidência voltou. Flora notou então a cautelosa insistência com que Aires olhava para eles, como se buscasse adivinhar a matéria da conversação. Sentia que não estivesse ali também, ouvindo e falando. finalmente prometendo fazer alguma cousa por ela. Aires podia, sim. — era seu amigo e todos o tinham em grande conta, — podia intervir e destruir o projeto da presidência.
Sem querer nem saber, diria isto mesmo com os olhos ao velho diplomata. Retirava-os, mas eles iam de si mesmos repetir o monólogo, e acaso perguntar alguma cousa que Aires não percebia e devia ser interessante. Pode ser que refletissem a angústia ou o que quer que era que lhe doía dentro. Pode ser; a verdade é que Aires começou a ficar curioso, e tão depressa Pedro deixou o lugar para acudir ao chamado da mãe, deixou ele Natividade para ir falar à moça.
Flora, já de pé, mal teve tempo de trocar duas palavras, dessas que se não podem interromper sem dor ou prurido, ao menos. Aires perguntava-lhe se nunca lhe dissera que sabia adivinhar.
        —Não, senhor.
        —Pois sei; adivinhei agora mesmo que me quer dizer um segredo.
Flora ficou espantada. Não querendo negar nem confessar, respondeu-lhe que só adivinhara metade.
        —A outra é?
        —A outra é pedir-lhe um obséquio de amizade.
        —Peça.
        —Não, agora não, já nos vamos embora; mamãe e papai estão fazendo as despedidas. Só se for na rua. Quer vir conosco a S. Clemente?
        —Com o maior prazer.

LIII
De Confidências

Entenda-se que não. Não era com prazer maior nem menor. Era imposição de sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que a isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei eu que o negue, nem tu, nem ele mesmo. Ao cabo de alguns instantes, Aires ia sentindo como esta pequena lhe acordava umas vozes mortas, falhadas ou não nascidas, vozes de pai. Os gêmeos não lhe deram um dia a mesma sensação, senão porque eram filhos de Natividade. Aqui não era a mãe, era a mesma Flora, o seu gesto, a sua fala, e porventura a sua fatalidade.
"Mas quer-me parecer que desta vez ela está presa; escolheu enfim", pensou Aires.
Flora falou-lhe da presidência, mas não lhe pediu segredo, como as outras pessoas; confessou-lhe que não queria ir daqui, fosse para onde fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mãos deles. Só ele podia despersuadir o pai de aceitar a presidência. Aires achou tão absurdo este pedido que esteve quase a rir, mas susteve-se bem. A palavra de Flora era grave e triste. Aires respondeu, com brandura, que não podia nada.
        —Pode muito, todos atendem ao seus conselhos.
        —Mas eu não dou conselhos a ninguém, acudiu Aires. conselheiro é um título que o imperador me conferiu, por achar que o merecia, mas não obriga a dar conselhos; a ele mesmo só lhos darei, se nos pedir. Imagine agora se eu vou à casa de um homem ou mando chamá-lo à minha para lhe dizer que não seja presidente de província. Que razão lhe daria?
Não tinha razões a moça; tinha necessidade. Apelou para os talentos do ex-ministro, que acharia uma razão boa. Nem se precisavam razões, bastava o falar dele, a arte que Deus lhe dera de agradar a toda a gente, de a arrastar, de influir, de obter o que quisesse. Aires viu que ela exagerava para o atrair, e não lhe pareceu mal. Não obstante, contestou tais méritos e virtudes. Deus não lhe dera arte nenhuma, disse ele, mas a moça ia sempre afirmando, em tal maneira que Aires suspender a contestação, e fez uma promessa.
        —Vou pensar; amanhã ou depois, se achar algum recurso, tentarei o negócio.
Era um paliativo. Era também um modo de fazer cessar a conversação, estando a casa próxima. Não contava com o pai de Flora, que à fina força lhe quis mostrar, àquela hora, uma novidade, aliás uma velharia, um documento de valor diplomático. "Venha, suba, cinco minutos apenas, conselheiro."
Aires suspirou em segredo, e curvou a cabeça ao Destino. Não se luta contra ele, dirás tu; o melhor é deixar que pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos. Batista nem lhe deu tempo de refletir; era todo desculpas.
Cinco minutos e está livre de mim, mas verá que lhe pago o sacrifício.
O gabinete era pequeno; poucos livros e bons, os móveis graves, um retrato de Batista com a farda de presidente, um almanaque sobre a mesa, um mapa na parede, algumas lembranças do governo da província. Enquanto Aires circulava os olhos, Batista foi buscar o documento. Abriu uma gaveta, tirou uma pasta, abriu a pasta, tirou o documento, que não estava só, mas com outros. Conhecia-se logo por ser um papel velho, amarelo, em partes roído. Era uma carta do Conde de Oeiras, escrita ao ministro de Portugal na Holanda.
        —E o dia das antiguidades, pensou Aires; a tabuleta, o tinteiro, este autógrafo...
        —A carta é importante, mas longa, disse Batista, não podemos lê-la agora. Quer levá-la?
Não lhe deu tempo de responder; pegou de uma sobrecarta grande e meteu dentro o manuscrito, com esta nota por fora: "Ao meu excelentíssimo amigo Conselheiro Aires". Enquanto ele fazia isto, Aires passava os olhos pela lombada de alguns livros. Entre eles havia dous Relatórios da presidência de Batista, ricamente encadernados.
        —Não me atribua esse luxo, acudiu o ex-presidente — foi um mimo da secretaria do governo que nunca fez isto a ninguém. Era um pessoal muito distinto.
E foi à estante e tirou um dos relatórios para ser melhor visto. Aberto, mostrou a impressão e as vinhetas — lido, podia mostrar o estilo por um lado, e, por outro, a prosperidade das finanças. Batista limitou-se aos algarismos totais: despesa, mil duzentos e noventa e quatro contos, setecentos e noventa mil-réis; receita, mil quinhentos e quarenta e quatro contos, duzentos e nove mil-réis; saldo, duzentos e quarenta e nove contos, quatrocentos e dezenove mil-réis. Verbalmente, explicou o saldo, que alcançou pela modificação de alguns serviços, e por um pequeno aumento de impostos. Reduziu a dívida provincial, que achou em trezentos e oitenta e quatro contos, e deixou em trezentos e cinqüenta contos. Fez obras novas e consertos importantes; iniciou uma ponte...
        —A encadernação corresponde à matéria, disse Aires para concluir a visita.
Batista fechou o livro, e redarguiu que já agora não iria sem lhe resolver uma consulta.
        —Tudo às avessas, concluiu; eu de manhã resolvo consultas, agora à noite sou eu que as faço.
Tal foi o introito, mas do introito ao Credo há sempre um passo estirado, e o principal da missa para ele estava no Credo. Não achando o texto do missal, explicou-lhe um sinete, um a pena de ouro, um exemplar do Código Criminal. O código, posto que velho, valia por trinta novos, não que tivesse melhor rosto, senão que trazia anotações manuscritas de um grande jurista, Fulano. Tendo passado longa parte da vida no exterior, o conselheiro mal conhecera o autor das notas, mas desde que ouviu chamar-lhe grande assumiu a expressão adequada. Pegou do código com cuidado, leu algumas das notas com veneração.
Durante esse tempo, Batista ia criando fôlego. Compôs uma frase para iniciar a consulta, e só esperava que Aires fechasse o livro para soltá-la; mas o outro ia demorando o exame do código. Podia ser uma pontinha de malignidade, mas não era. Os olhos de Aires tinham uma faculdade particular, menos particular do que parece, porque outros a possuirão calados. Vinha a ser que eles não saíam da página, mas em verdade já lhe prestava menos atenção, o tempo, a gente, a vida, cousas passadas, surdiam a espiá-lo por detrás do livro com que tinham vivido, e Aires ia tornando a ver um Rio de Janeiro que não era este, ou apenas o fazia lembrado. Sem cuides que eram só réus e juízes, era o passeio, a rua, a festa, velhos patuscos e mortos, rapazes frescos e agora enferrujados como ele. Batista tossiu. Aires voltou a si e leu alguma das notas que o outro devia trazer de cor, mas eram tão profundas! Enfim, mirou a encadernação, achou o livro bem conservado, fechou-o e restituiu-o à biblioteca.
Batista não perdeu um instante, correu imediato ao assunto, com medo de o ver pegar em outro livro.
        —Confesso-lhe que tenho o temperamento conservador.
        —Também eu guardo presentes antigos.
        —Não é isso; refiro-me ao temperamento político. Verdadeiramente há opiniões e temperamentos. Um homem pode muito bem ter o temperamento oposto às suas ideias. As minhas ideias, se as cotejarmos com os programas políticos do mundo, são antes liberais e algumas libérrimas. O sufrágio universal, por exemplo, é para mim a pedra angular de um bom regímen representativo. Ao contrário, os liberais pediram e fizeram o voto censitário. Hoje estou mais adiantado que eles; aceito o que está, por ora, mas antes do fim do século é preciso rever alguns artigos da Constituição, dous ou três.


Nenhum comentário: