Mas
por que é que o senhor foi mostrar essa carta a sua mãe?
Tanto melhor; Paulo precisa ser
emendado; mas, diga-me, por que é que a senhora defende sempre a meu
irmão?
Flora quis dizer que sim, depois que
não, afinal calou. Desconversou, perguntando por que eles se davam
mal. Pedro negou que se dessem mal. Ao contrário, viviam bem. Não
teriam as mesmas opiniões, e também podia ser que tivessem o mesmo
gosto... Daqui a dizer que ambos a amavam era uma vírgula; Pedro
pintou o ponto final. Esse astuto era também tímido. Mais tarde,
compreendeu que, calando, andou melhor, e deu a si mesmo o aplauso da
escolha; mas era falso, não escolhera nada. Não digo isto para
fazê-lo desmerecer; sim, porque o medo acerta muitas vezes, e é
mister deixar aqui esta reflexão.
Veio a zanga. Flora não replicou mais
nada, e, por seu gosto, não teria jantado, a tal ponto sentia
piedade do outro. Felizmente, o outro era este mesmo, aqui presente,
com os olhos presentes, as mãos presentes, as palavras presentes.
Não tardou que a zanga fugisse diante da graça, da brandura e da
adoração. Bem-aventurados os que ficam, porque eles serão
compensados.
LII
Um segredo
Um segredo
Eis agora a matéria da conspiração.
Na rua, ao virem de S. Clemente, foi que Pedro, gastado o melhor do
tempo com a carta e o jantar, pôde revelar à moça um segredo:
—Titia
disse lá em casa que D. Cláudia lhe contara em segredo (não diga
nada) que seu pai vai ser nomeado presidente de província.
—Não sei nada disso, mas não
creio, porque papai é conservador.
—D.
Cláudia disse a titia que ele é liberal, quase radical. Parece que
a presidência é certa; ela pediu segredo, e titia, quando nos
contou, também pediu segredo. Eu também lhe peço que não diga
nada, mas é verdade.
—Verdade
como? Papai não vai com liberais; o senhor não sabe como papai é
conservador. Se ele defende os liberais é porque é tolerante.
—Se
a província fosse a do Rio de Janeiro, eu gostaria, porque não era
preciso ir morar na Praia Grande, e se ele fosse, a viagem é só de
meia hora, eu podia ir lá todos os dias.
—Era capaz?
—Apostemos.
Flora,
depois de um instante:
—Para que, se não há presidência?
—Suponha que há.
—É preciso supor muito, — que há
presidência e que a província é a do Rio. Não, não há nada.
—Então suponha só metade, — que
há presidência e que é Mato Grosso.
Flora
teve um calefrio. Sem admitir a nomeação, tremeu ao nome da
província. Pedro lembrou ainda o Amazonas, Pará, Piauí... Era o
infinito, mormente se o pai fizesse boa administração, porque não
voltaria tão cedo. Já agora a moça resistia menos, achava possível
e abominável, mas dizia isto para si, dentro do coração. De
repente, Pedro, quase estacando o passo:
—Se ele for, eu peço ao governo o
lugar de secretário e vou também.
A
luz intermitente das lojas refletindo no rosto da moça, à medida
que eles iam passando por elas, ajudava a dos lampiões da rua, e
mostrava a emoção daquela promessa. Sentia-se que o coração de
Flora devia estar batendo muito. Em breve, porém, começou ela a
pensar em outra cousa. Natividade não consentiria nunca; depois, um
estudante... Não podia ser. Pensou em algum escândalo. Que ele
fugisse, embarcasse, fosse atrás dela...
Tudo isto era visto ou pensado cm
silêncio. Flora não se admirava de pensar tanto e tão
atrevidamente; era como o peso do corpo, que não sentia: andava,
pensava, como transpirava. Não calculou sequer o tempo que ia
gastando em imaginar e desfazer idéias. Que isto lhe desse mais
prazer que desprazer, é certo. Ao pé dela, Pedro ia naturalmente
cuidando, com os olhos nos pés, e os pés nas nuvens. Não sabia que
dissesse no meio de tão longo silêncio. Entretanto, a solução
parecia-lhe única. Já não pensava na presidência do Rio.
Queria-se com ela, no ponto mais remoto do império, sem o irmão. A
esperança de se desterrarem assim de Paulo verdejou na alma de
Pedro. Sim, Paulo não iria também, a mãe não se deixaria ficar
desamparada. Que perdesse um filho, vá; mas ambos...
A quem quer que este final de monólogo
pareça egoísta, peço-lhe pelas almas dos seus parentes e amigos,
que estão no céu, peço-lhe que considere bem as causas. Considere
o estado da alma do rapaz, de iniquidades, e não lhe importa esta
imagem. Considere tudo, idade de Pedro, o mal da Terra, o bem da
mesma Terra. Considere mais a vontade do Céu, que vela por todas as
criaturas que se querem, salvo se um só é que quer a outra, porque
então o Céu é um abismo de iniquidades, e não lhe importa esta
imagem. Considere tudo, amigo; deixe-me ir contando só e contando
mal o que se passou naquele curto transito entre as duas casas.
Quando lá chegaram, falavam de boca.
Em cima, como viste, continuaram a
falar, até que o assunto da presidência voltou. Flora notou então
a cautelosa insistência com que Aires olhava para eles, como se
buscasse adivinhar a matéria da conversação. Sentia que não
estivesse ali também, ouvindo e falando. finalmente prometendo fazer
alguma cousa por ela. Aires podia, sim. — era seu amigo e todos o
tinham em grande conta, — podia intervir e destruir o projeto da
presidência.
Sem querer nem saber, diria isto mesmo
com os olhos ao velho diplomata. Retirava-os, mas eles iam de si
mesmos repetir o monólogo, e acaso perguntar alguma cousa que Aires
não percebia e devia ser interessante. Pode ser que refletissem a
angústia ou o que quer que era que lhe doía dentro. Pode ser; a
verdade é que Aires começou a ficar curioso, e tão depressa Pedro
deixou o lugar para acudir ao chamado da mãe, deixou ele Natividade
para ir falar à moça.
Flora, já de pé, mal teve tempo de
trocar duas palavras, dessas que se não podem interromper sem dor ou
prurido, ao menos. Aires perguntava-lhe se nunca lhe dissera que
sabia adivinhar.
—Não, senhor.
—Pois sei; adivinhei agora mesmo que
me quer dizer um segredo.
Flora
ficou espantada. Não querendo negar nem confessar, respondeu-lhe que
só adivinhara metade.
—A outra é pedir-lhe um obséquio
de amizade.
—Peça.
—Não, agora não, já nos vamos
embora; mamãe e papai estão fazendo as despedidas. Só se for na
rua. Quer vir conosco a S. Clemente?
—Com o maior prazer.
LIII
De Confidências
De Confidências
Entenda-se
que não. Não era com prazer maior nem menor. Era imposição de
sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que a
isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei eu
que o negue, nem tu, nem ele mesmo. Ao cabo de alguns instantes,
Aires ia sentindo como esta pequena lhe acordava umas vozes mortas,
falhadas ou não nascidas, vozes de pai. Os gêmeos não lhe deram um
dia a mesma sensação, senão porque eram filhos de Natividade. Aqui
não era a mãe, era a mesma Flora, o seu gesto, a sua fala, e
porventura a sua fatalidade.
"Mas
quer-me parecer que desta vez ela está presa; escolheu enfim",
pensou Aires.
Flora
falou-lhe da presidência, mas não lhe pediu segredo, como as outras
pessoas; confessou-lhe que não queria ir daqui, fosse para onde
fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mãos deles. Só ele
podia despersuadir o pai de aceitar a presidência. Aires achou tão
absurdo este pedido que esteve quase a rir, mas susteve-se bem. A
palavra de Flora era grave e triste. Aires respondeu, com brandura,
que não podia nada.
—Pode muito, todos atendem ao seus
conselhos.
—Mas eu não dou conselhos a
ninguém, acudiu Aires. conselheiro é um título que o imperador me
conferiu, por achar que o merecia, mas não obriga a dar conselhos; a
ele mesmo só lhos darei, se nos pedir. Imagine agora se eu vou à
casa de um homem ou mando chamá-lo à minha para lhe dizer que não
seja presidente de província. Que razão lhe daria?
Não
tinha razões a moça; tinha necessidade. Apelou para os talentos do
ex-ministro, que acharia uma razão boa. Nem se precisavam razões,
bastava o falar dele, a arte que Deus lhe dera de agradar a toda a
gente, de a arrastar, de influir, de obter o que quisesse. Aires viu
que ela exagerava para o atrair, e não lhe pareceu mal. Não
obstante, contestou tais méritos e virtudes. Deus não lhe dera arte
nenhuma, disse ele, mas a moça ia sempre afirmando, em tal maneira
que Aires suspender a contestação, e fez uma promessa.
—Vou pensar; amanhã ou depois, se
achar algum recurso, tentarei o negócio.
Era um paliativo. Era também um modo
de fazer cessar a conversação, estando a casa próxima. Não
contava com o pai de Flora, que à fina força lhe quis mostrar,
àquela hora, uma novidade, aliás uma velharia, um documento de
valor diplomático. "Venha, suba, cinco minutos apenas,
conselheiro."
Aires suspirou em segredo, e curvou a
cabeça ao Destino. Não se luta contra ele, dirás tu; o melhor é
deixar que pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira
alçar-nos ou despenhar-nos. Batista nem lhe deu tempo de refletir;
era todo desculpas.
O gabinete era pequeno; poucos livros
e bons, os móveis graves, um retrato de Batista com a farda de
presidente, um almanaque sobre a mesa, um mapa na parede, algumas
lembranças do governo da província. Enquanto Aires circulava os
olhos, Batista foi buscar o documento. Abriu uma gaveta, tirou uma
pasta, abriu a pasta, tirou o documento, que não estava só, mas com
outros. Conhecia-se logo por ser um papel velho, amarelo, em partes
roído. Era uma carta do Conde de Oeiras, escrita ao ministro de
Portugal na Holanda.
Não lhe deu tempo de responder; pegou
de uma sobrecarta grande e meteu dentro o manuscrito, com esta nota
por fora: "Ao meu excelentíssimo amigo Conselheiro Aires".
Enquanto ele fazia isto, Aires passava os olhos pela lombada de
alguns livros. Entre eles havia dous Relatórios da presidência de
Batista, ricamente encadernados.
—Não
me atribua esse luxo, acudiu o ex-presidente — foi um mimo da
secretaria do governo que nunca fez isto a ninguém. Era um pessoal
muito distinto.
E foi à estante e tirou um dos
relatórios para ser melhor visto. Aberto, mostrou a impressão e as
vinhetas — lido, podia mostrar o estilo por um lado, e, por outro,
a prosperidade das finanças. Batista limitou-se aos algarismos
totais: despesa, mil duzentos e noventa e quatro contos, setecentos e
noventa mil-réis; receita, mil quinhentos e quarenta e quatro
contos, duzentos e nove mil-réis; saldo, duzentos e quarenta e nove
contos, quatrocentos e dezenove mil-réis. Verbalmente, explicou o
saldo, que alcançou pela modificação de alguns serviços, e por um
pequeno aumento de impostos. Reduziu a dívida provincial, que achou
em trezentos e oitenta e quatro contos, e deixou em trezentos e
cinqüenta contos. Fez obras novas e consertos importantes; iniciou
uma ponte...
Batista
fechou o livro, e redarguiu que já agora não iria sem lhe resolver
uma consulta.
—Tudo às avessas, concluiu; eu de
manhã resolvo consultas, agora à noite sou eu que as faço.
Tal
foi o introito, mas do introito ao Credo há sempre um passo
estirado, e o principal da missa para ele estava no Credo. Não
achando o texto do missal, explicou-lhe um sinete, um a pena de ouro,
um exemplar do Código Criminal. O código, posto que velho, valia
por trinta novos, não que tivesse melhor rosto, senão que trazia
anotações manuscritas de um grande jurista, Fulano. Tendo passado
longa parte da vida no exterior, o conselheiro mal conhecera o autor
das notas, mas desde que ouviu chamar-lhe grande assumiu a expressão
adequada. Pegou do código com cuidado, leu algumas das notas com
veneração.
Durante
esse tempo, Batista ia criando fôlego. Compôs uma frase para
iniciar a consulta, e só esperava que Aires fechasse o livro para
soltá-la; mas o outro ia demorando o exame do código. Podia ser uma
pontinha de malignidade, mas não era. Os olhos de Aires tinham uma
faculdade particular, menos particular do que parece, porque outros a
possuirão calados. Vinha a ser que eles não saíam da página, mas
em verdade já lhe prestava menos atenção, o tempo, a gente, a
vida, cousas passadas, surdiam a espiá-lo por detrás do livro com
que tinham vivido, e Aires ia tornando a ver um Rio de Janeiro que
não era este, ou apenas o fazia lembrado. Sem cuides que eram só
réus e juízes, era o passeio, a rua, a festa, velhos patuscos e
mortos, rapazes frescos e agora enferrujados como ele. Batista
tossiu. Aires voltou a si e leu alguma das notas que o outro devia
trazer de cor, mas eram tão profundas! Enfim, mirou a encadernação,
achou o livro bem conservado, fechou-o e restituiu-o à biblioteca.
Batista
não perdeu um instante, correu imediato ao assunto, com medo de o
ver pegar em outro livro.
—Confesso-lhe que tenho o
temperamento conservador.
—Também eu guardo presentes
antigos.
—Não
é isso; refiro-me ao temperamento político. Verdadeiramente há
opiniões e temperamentos. Um homem pode muito bem ter o temperamento
oposto às suas ideias. As minhas ideias, se as cotejarmos com os
programas políticos do mundo, são antes liberais e algumas
libérrimas. O sufrágio universal, por exemplo, é para mim a pedra
angular de um bom regímen representativo. Ao contrário, os liberais
pediram e fizeram o voto censitário. Hoje estou mais adiantado que
eles; aceito o que está, por ora, mas antes do fim do século é
preciso rever alguns artigos da Constituição, dous ou três.
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