Mas
donde viria o tédio a Flora, se viesse? Com Pedro no baile, não;
este era, como sabes, um dos dous que lhe queriam bem. Salvo se ela
queria principalmente ao que estava em S. Paulo. Conclusão duvidosa,
pois não é certo que preferisse um a outro. Se já a vimos falar a
ambos com a mesma simpatia, o que fazia agora a Pedro na ausência de
Paulo, e faria a Paulo na ausência de Pedro, não me faltará
leitora que presuma um terceiro... Um terceiro explicaria tudo, um
terceiro que não fosse ao baile, algum estudante pobre. X sem outro
amigo nem mais casaca que o coração verde e quente. Pois nem esse,
leitora curiosa, nem terceiro, nem quarto, nem quinto. ninguém mais.
Uma esquisitona, como lhe chamava a mãe.
Não importa; a esquisitona foi ao
baile da ilha Fiscal com a mãe e o pai. Assim também Natividade, o
marido e Pedro, assim Aires assim a demais gente convidada para a
grande festa. Foi uma bela ideia do governo, leitor. Dentro e fora,
do mar e de terra, era como um sonho veneziano; toda aquela sociedade
viveu algumas horas suntuosas, novas para uns, saudosas para outros e
de futuro para todos, — ou, quando menos, para a nossa amiga
Natividade — e para o conservador Batista.
Aquela considerava o destino dos
filhos, — cousas futuras! Pedro bem podia inaugurar, como ministro,
o século XX e o terceiro reinado. Natividade imaginava outro e maior
baile naquela mesma ilha. Compunha a ornamentação, via as pessoas e
as danças, toda uma festa magna que entraria na história.
Também
ela ali estaria, sentada a um canto, sem lhe dar do peso dos anos,
uma vez que visse a grandeza e a prosperidade dos filhos. Era assim
que enfiara os olhos pelo tempo adiante, descontando no presente a
felicidade futura, caso viesse a morrer antes das profecias. Tinha a
mesma sensação que ora lhe dava aquela cesta de luzes no meio da
escuridão tranquila do mar.
A imaginação de Batista era menos
longa que a de Natividade. Quero dizer que ia antes do princípio do
século, Deus sabe se antes do fim do ano. Ao som da música, à
vista das galas, ouvia umas feiticeiras cariocas, que se pareciam com
as escocesas; pelo menos, as palavras eram análogas às que saudaram
Macbeth: — "Salve Batista, ex-presidente de província!"
— "Salve, Batista, próximo presidente de província!" —
"Salve, Batista, tu serás ministro um dia!" A linguagem
dessas profecias era liberal, sem sombra de solecismo. Verdade é que
ele se arrependia de as escutar, e forcejava por traduzi-las no velho
idioma conservador, mas já lhe iam faltando dicionários. A primeira
palavra ainda trazia o sotaque antigo: "Salve, Batista,
ex-presidente de província!" mas a segunda e a última eram
ambas daquela outra língua liberal, que sempre lhe pareceu língua
de preto. Enfim, a mulher, como lady Macbeth, dizia nos olhos o que
esta dizia pela boca, isto é, que já sentia em si aquelas
futurações. O mesmo lhe repetiu na manhã seguinte, em casa.
Batista, com um sorriso disfarçado, descria das feiticeiras, mas a
memória guardava as palavras da ilha: "Salve, Batista, próximo
presidente!" Ao que ele respondia com um suspiro: Não, não,
filhas do Diabo...
Ao
contrário do que ficou dito atrás, Flora não se aborreceu na ilha.
Conjeturei mal, emendo-me a tempo. Podia aborrecer-se pelas razões
que lá ficam, e ainda outras que poupei ao leitor apressado; mas, em
verdade, passou bem a noite. A novidade da festa, a vizinhança do
mar, os navios perdidos na sombra, a cidade defronte com os seus
lampiões de gás, embaixo e em cima, na praia e nos outeiros, eis aí
aspectos novos que a encantaram durante aquelas horas rápidas.
Não
lhe faltavam pares, nem conversação, nem alegria alheia e própria.
Toda ela compartia da felicidade dos outros. Via, ouvia, sorria,
esquecia-se do resto para se meter consigo. Também invejava a
princesa imperial, que viria a ser imperatriz um dia. com o absoluto
poder de despedir ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar
só, no mais recôndito do paço, fartando-se de contemplação ou de
música. Era assim que Flora definia o ofício de governar. Tais
ideias passavam e tornavam. De uma vez alguém lhe disse, como para
lhe dar força: "Toda alma livre é imperatriz!"
Não
foi outra voz, semelhante à das feiticeiras do pai nem às que
falavam interiormente a Natividade, acerca dos filhos. Não; seria
pôr aqui muitas vozes de mistério, cousa que, além do fastio da
repetição, mentiria à realidade dos fatos. A voz que falou a Flora
saiu da boca do velho Aires, que se fora sentar ao pé dela e lhe
perguntara:
—Em que é que está pensando?
—Em nada, respondeu Flora.
Ora,
o conselheiro tinha visto no rosto da moça a expressão de alguma
cousa e insistia por ela. Flora disse como pôde a inveja que lhe
metia a vista da princesa, não para brilhar um dia. mas para fugir
ao brilho e ao mando, sempre que quisesse ficar súbdita de si mesma.
Foi então que ele lhe murmurou, como acima:
—Toda alma livre é imperatriz.
A
frase era boa, sonora, parecia conter a maior soma de verdade que há
na terra e nos planetas. Valia por uma página de Plutarco. Se algum
político a ouvisse poderia guardá-la para os seus dias de oposição
ao governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que ele mesmo
escreveu no Memorial. Com esta nota: "A meiga criatura
agradeceu-me estas cinco palavras".
XLIX
Tabuleta velha
Tabuleta velha
Toda a gente voltou da ilha com o
baile na cabeça, muita sonhou com ele, alguma dormiu mal ou nada.
Aires foi dos que acordaram tarde; eram onze horas. Ao meio-dia
almoçou; depois escreveu no Memorial as impressões da véspera,
notou várias espáduas, fez reparos políticos e acabou com as
palavras que lá ficam no cabo do outro capítulo. Fumou, leu, até
que resolveu ir à Rua do Ouvidor. Como chegasse à vidraça de uma
das janelas da frente, viu à porta da confeitaria uma figura
inesperada, o velho Custódio, cheio de melancolia. Era tão novo o
espetáculo que ali se deixou estar por alguns instantes; foi então
que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com ele entre as
cortinas, e enquanto Aires voltava para dentro, Custódio atravessou
a rua e entrou-lhe em casa.
Custódio foi recebido com a
benevolência de outros dias e um pouco mais de interesse. Aires
queria saber o que é que o entristecia.
—Justamente,
é isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar a tabuleta
que afinal consenti, e fi-la tirar por dous empregados. A vizinhança
veio para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. Já tinha
falado a um pintor da Rua da Assembleia; não ajustei o preço porque
ele queria ver primeiro a obra. Ontem, à tarde, lá foi um caixeiro,
e sabe V. Exma o que me mandou dizer o pintor? Que a tábua está
velha, e precisa outra; a madeira não aguenta tinta. Lá fui às
carreiras. Não pude convencê-lo de pintar na mesma madeira;
mostrou-me que estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo
não se via. Teimei que pintasse assim mesmo, respondeu-me que era
artista e não faria obra que se estragasse logo.
—Pois reforme tudo. Pintura nova em
madeira velha não vale nada. Agora verá que dura pelo resto da
nossa vida.
Era tarde, a ordem fora expedida, a
madeira devia estar comprada serrada e pregada, pintando o fundo para
então se desenhar e pintar o título. Custódio não disse que o
artista lhe perguntara pela cor das letras, se vermelha, se amarela,
se verde em cima de branco ou vice-versa, e que ele, cautelosamente,
indagara do preço de cada cor para escolher as mais baratas. Não
interessa saber quais foram.
Quaisquer que fossem as cores, eram
tintas novas, tábuas novas, uma reforma que ele, mais por economia
que por afeição, não quisera fazer; mas a afeição valia muito.
Agora que ia trocar de tabuleta sentia perder algo do corpo, —
cousa que outros do mesmo ou diverso ramo de negócio não
compreenderiam, tal gosto acham em renovar as caras e fazer crescer
com elas a nomeada. São naturezas. Aires ia pensando em escrever uma
Filosofia das Tabuletas, na qual poria tais e outras observações,
mas nunca deu começo à obra.
—V. Ex.a há de me perdoar o
incômodo que lhe trouxe, vindo contar-lhe isto, mas V. Ex.a é
sempre tão bom comigo, fala-me com tanta amizade, que eu me
atrevi... Perdoa-me, sim?
—Sim, homem de Deus.
—Conquanto V. Ex.a aprove a reforma
da tabuleta, sentirá comigo a separação da outra, a minha amiga
velha, que nunca me deixou, que eu, nas noites de luminárias, por S.
Sebastião e outras, fazia aparecer aos olhos da gente. V. Ex.a,
quando se aposentou, veio achá-la no mesmo lugar em que a deixou por
ocasião de ser nomeado. E tive alma para me separar dela!
—Está bom, lá vai; agora é
receber a nova, e verá como daqui a pouco são amigos.
Custódio
saiu recuando, como era o seu costume, e desceu trôpego as escadas.
Diante da confeitaria deteve-se um instante, para ver o lugar onde
estivera a tabuleta velha. Deveras, tinha saudades.
L
O Tinteiro de Evaristo
O Tinteiro de Evaristo
—...Este caso prova que tudo se pode
amar muito bem, ainda um pedaço de madeira velha. Creiam que não
era só a despes., que: ele naturalmente sentia, eram também
saudades. Ninguém se despega assim de um objeto tão íntimo, que
faz parte integral da casa e da pele, porque a tabuleta não foi
sequer arriada um dia. Custódio não teve ocasião de ver se estava
estragada. Vivia ali como as portadas e a parede.
Era
ao jantar, em Botafogo. Só quatro pessoas, as duas irmãs, Santos e
Aires. Pedro fora jantar a S. Clemente, com a família Batista.
D.
Perpétua aprovou os sentimentos do confeiteiro. Citou, a propósito,
o tinteiro de Evaristo. A irmã sorriu para o marido, e este para a
mulher, como se dissessem: "lá vem ele!" Era um tinteiro
que servira ao famoso jornalista do primeiro reinado e da Regência,
obra simples, feita de barro, igual aos tinteiros que a gente chã
comprava nas lojas de papel daquele e deste tempo. O sogro de D.
Perpétua, que lho dera em lembrança, tivera um da mesma idade,
massa e feição.
—Veio assim de mão em mão parar às
minhas. Não chega aos tinteiros do mano Agostinho nem de Natividade,
que são luxuosos, mas tem grande valor para mim.
—Sem dúvida, concordou Aires, valor
histórico e político.
—Meu
sogro dizia que dele saíram os grandes artigos da Aurora falar
verdade, eu nunca li tais artigos, mas meu sogro era homem de
verdade. Conhecia a vida de Evaristo, por ouvi-la a outros, e
fazia-lhe louvores que não acabavam mais...
Natividade buscou desviar a
conversação para o baile da véspera. Tinham já falado dele, mas
não achou outro derivativo. Entretanto, o tinteiro ainda ficou algum
tempo. Não era só uma das lembranças de D. Perpétua, relíquia de
família, era também uma de suas ideias. Prometeu mostrá-lo ao
conselheiro. Ele prometeu vê-lo com muito gosto. Confessou que tinha
veneração aos objetos de uso dos grandes homens. Enfim, o jantar
acabou, e eles passaram ao salão. Aires, falando da enseada:
—Aqui
está uma obra, que é mais velha que o tinteiro do Evaristo e a
tabuleta do Custódio, e, não obstante, parece mais moça, não é
verdade, D. Perpétua? A noite é clara e quente; podia ser escura e
fria, e o efeito seria o mesmo. A enseada não difere de si. Talvez
os homens venham algum dia a atulhá-la de terra e pedras para
levantar casas em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado
a corrida de cavalos. Tudo é possível debaixo do sol e da lua. A
nossa felicidade, barão, é que morreremos antes.
—A morte é uma hipótese, redarguiu
Aires, talvez uma lenda. Ninguém morre de uma boa digestão, e os
seus charutos são deliciosos.
Santos estimou ouvir este louvor;
achava-lhe uma intenção direta à sua pessoa, aos seus méritos, ao
seu nome, à posição que tinha na sociedade, à casa, à chácara,
ao Banco, aos coletes. Talvez muito; seria um modo enfático de
explicar a força da ligação dele aos charutos. Valiam pela
tabuleta e pelo tinteiro, com a diferença que estes significavam só
afeição e veneração, e aqueles, valendo pelo sabor e pelo preço,
tinham a superioridade do milagre, pela reprodução de todos os
dias.
Tais eram as suspeitas que vagavam no
cérebro de Aires, enquanto ele olhava mansamente para o anfitrião.
Aires não podia negar a si mesmo a aversão que este lhe inspirava.
Não lhe queria mal, decerto; podia até querer-lhe bem, se houvesse
um muro entre ambos. Era a pessoa, eram as sensações, os dizeres,
os gestos, o riso, a alma toda que lhe fazia mal.
LI
Aqui presente
Aqui presente
Perto
das nove horas, ou logo depois, chegou Pedro com o casal Batista e
Flora.
—Vimos trazer o seu menino, disse
Batista a Natividade.
—Obrigado, doutor, acudiu Santos,
mas ele já não está em idade de se perder por essas ruas, e, se
perder, acha-se logo, acrescentou sorrindo.
Natividade
não gostou da graça, tratando-se do filho e ao pé dela. Era talvez
excesso de pudor. Há muito excesso nesse sentido, e o acertado é
perdoá-lo. Há também excessos contrários, condescendências
fáceis, pessoas que entram com prazer na troca de alusões picantes.
Também se devem perdoar. Em suma, o perdão chega ao Céu.
Perdoai-vos uns aos outros, é a lei do Evangelho.
Ele,
o rapaz, é que não ouvia nada; interrompeu a conversa que trazia
com Flora, e trocadas algumas palavras, os dous foram reatar o fio a
um canto. Aires reparou na atitude de ambos; ninguém mais lhes
prestava atenção. Ao cabo, a conversa era em voz surda; não os
poderiam ouvir. Ela escutava, ele falava; depois era o contrário,
ela é que falava, ele é que ouvia, tão absortos que pareciam não
atender a ninguém, mas atendiam. Possuíam o sexto sentido dos
conspira dores e dos namorados. Que conversassem de amores, é
possível; mas que conspiravam, é certo. Quanto à matéria da
conspiração, podereis sabê-la, depois, brevemente, daqui a um
capítulo. O próprio Aires não descobriu nada, por mais que
quisesse fartar os olhos naquele diálogo de mistérios. Persuadiu-se
que não era grave, porque eles sorriam com freqüência; mas podia
ser íntimo, escondido, pessoal e acaso estranho. Supõe um fio de
anedotas ou uma história comprida, cousa alheia; ainda assim podia
ser deles semente, porque há estados da alma em que a matéria da
narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo.
Também podia ser isto.
Vede,
porém, como a natureza encaminha as cousas mínimas ou máximas,
mormente se a fortuna a ajuda. A conversação tão doce, ao que
parecia, começou por um enfado. A causa foi uma carta de Paulo,
escrita ao irmão, e que este se lembrou de mostrar a Flora,
dizendo-lhe que também a mostrara à mãe, e a mãe se zangara
muito.
—Com o senhor?
—Com Paulo.
Pedro leu-lhe o ponto principal, que
era quase toda a carta; falava da questão militar. Já havia a
"questão militar", um conflito de generais e ministros, e
a linguagem de Paulo era contra os ministros.
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