—Não faz mal. Cousas futuras!
Mergulharam outra vez no silêncio. Ao entrar no Catete, Natividade
recordou a manhã em que ali passou, naquele mesmo coupé, e confiou
ao marido o estado de gravidez. Voltavam de uma missa de defunto, na
igreja de S. Domingos...
"Na igreja de S. Domingos diz-se hoje uma missa por alma de João
de Melo, falecido em Maricá". Tal foi o anúncio que ainda
agora podes ler em algumas folhas de 1869. Não me ficou o dia. o mês
foi agosto. O anúncio está certo, foi aquilo mesmo, sem mais nada,
nem o nome da pessoa ou pessoas que mandaram dizer a missa, nem hora,
nem convite. Não se disse sequer que o defunto era escrivão, ofício
que só perdeu com a morte. Enfim, parece que até lhe tiraram um
nome; ele era, se estou bem informado, João de Melo e Barros.
Não se sabendo quem mandava dizer a
missa, ninguém lá foi. A igreja escolhida deu ainda menos relevo ao
ato; não era vistosa, nem buscada, mas velhota, sem galas nem gente,
metida ao canto de um pequeno largo, adequada à missa recôndita e
anônima.
As oito horas parou um coupé à porta; o lacaio desceu, abriu a
portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mão
a uma senhora, a senhora saiu e tomou o braço ao senhor,
atravessaram o pedacinho de largo e entraram na igreja. Na sacristia
era tudo espanto. A alma que a tais sítios atraíra um carro de
luxo, cavalos de raça, e duas pessoas tão finas não seria como as
outras almas ali sufragadas. A missa foi ouvida sem pêsames nem
lágrimas. Quando acabou, o senhor foi à sacristia dar as
espórtulas. O sacristão, agasalhando na algibeira a nota de
dez-mil-réis que recebeu, achou que ela provava a sublimidade do
defunto; mas que defunto era esse? O mesmo pensaria a caixa das
almas, se pensasse, quando a luva da senhora deixou cair dentro uma
pratinha de cinco tostões. Já então havia na igreja meia dúzia de
crianças maltrapilhas, e fora, alguma gente às portas e no largo,
esperando. O senhor, chegando à porta, relanceou os olhos, ainda que
vagamente, e viu que era objeto de curiosidade. A senhora trazia os
seus no chão. E os dous entravam no carro, com o mesmo gesto, o
lacaio bateu a portinhola e partiram.
A gente local não falou de outra cousa naquele e nos dias seguintes.
Sacristão e vizinhos relembravam o coupé, com orgulho. Era a missa
do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de
sapato roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins
estragados, missas de chita ao domingo, missas de tamancos. Tudo
voltou ao costume, mas a missa do coupé viveu na memória por muitos
meses. Afinal não se falou mais nela; esqueceu como um baile.
Pois o coupé era este mesmo. A missa foi mandada dizer por aquele
senhor, cujo nome é Santos, e o defunto era seu parente, ainda que
pobre. Também ele foi pobre, também ele nasceu em Maricá. Vindo
para o Rio de Janeiro, por ocasião da febre das ações (1855),
dizem que revelou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa.
Ganhou logo muito, e fe-lo perder a outros. Casou em 1859 com esta
Natividade, que ia então nos vinte anos e não tinha dinheiro, mas
era bela e amava apaixonadamente. A Fortuna os abençoou com a
riqueza. Anos depois tinham eles uma casa nobre, carruagem, cavalos e
relações novas e distintas. Dos dous parentes pobres de Natividade
morreu o pai em 1866, restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em
Maricá, a quem nunca mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse
habilidade. Mesquinhez não creio, ele gastava largo e dava muitas
esmolas. Habilidade seria; tirava-lhes o gosto de vir cá pedir-lhe
mais.
Não lhe valeu isto com João de Melo,
que um dia apareceu aqui, a pedir-lhe emprego. Queria ser. como ele,
diretor de banco. Santos arranjou-lhe depressa um lugar de escrivão
no cível em Maricá, e despachou-o com os melhores conselhos deste
mundo.
João de Melo retirou-se com a escrivania, e dizem que uma grande
paixão também. Natividade era a mais bela mulher daquele tempo. No
fim, com os seus cabelos quase sexagenários, fazia crer na tradição.
João de Melo ficou alucinado quando a viu, ela conheceu isso, e
portou-se bem. Não lhe fechou o rosto, é verdade, e era mais bela
assim que zangada; também não lhe fechou os olhos que eram negros e
cálidos. Só lhe fechou o coração, um coração que devia amar
como nenhum outro, foi a conclusão de João de Melo uma noite em que
a viu ir decotada a um baile. Teve ímpeto de pegar dela, descer,
voar, perderem-se...
Em vez disso, uma escrivania e Maricá; era um abismo. Caiu nele;
três dias depois saiu do Rio de Janeiro para não voltar. A
princípio escreveu muitas cartas ao parente, com a esperança de que
ela as lesse também, e compreendesse que algumas palavras eram para
si.
Mas Santos não lhe deu resposta, e o tempo e a ausência acabaram
por fazer de João de Melo um excelente escrivão. Morreu de uma
pneumonia.
Que o motivo da pratinha de Natividade deitada à caixa das almas
fosse pagar a adoração do defunto não digo que sim, nem que não;
faltam-me pormenores. Mas pode ser que sim, porque esta senhora era
não menos grata que honesta. Quanto às larguezas do marido, não
esqueças que o parente era defunto, e o defunto um parente menos.
Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa,
e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições
explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história, ou
prezasse a lógica aparente dos acontecimentos, levaria o casal
Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu
sei como as cousas se passaram, e refiro-as tais quais. Quando muito,
explico-as, com a condição de que tal costume não pegue.
Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por
enfadar. O melhor é ler com atenção.
Quanto à contradição de que se trata aqui, é de ver que naquele
recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com eles, ao
passo que eles gozariam o assombro local; tal foi a reflexão de
Santos, se pode dar semelhante nome a um movimento interior que leva
a gente a fazer antes uma cousa que outra. Resta a missa; a missa em
si mesma bastava que fosse sabida no céu e em Maricá. Propriamente
vestiram-se para o céu. O luxo do casal temperava a pobreza da
oração; era uma espécie de homenagem ao finado. Se a alma de João
de Melo os visse de cima, alegrar-se-ia do apuro em que eles foram
rezar por um pobre escrivão. Não sou eu que o digo; Santos é que o
pensou.
VI
Maternidade
Maternidade
A princípio, vieram calados. Quando
muito, Natividade queixou-se da igreja, que lhe sujara o vestido.
—Venho cheia de pulgas, continuou ela; por que não fomos a S.
Francisco de Paula ou à Glória, que estão mais perto, e são
limpas?
Santos trocou as mãos à conversa, e
falou das ruas mal calçadas, que faziam dar solavancos ao carro. Com
certeza, quebravam-lhe as molas.
Natividade não replicou, mergulhou no
silêncio, como naquele outro capítulo, vinte meses depois, quando
tornava do Castelo com a irmã. Os olhos não tinham a nota de
deslumbramento que trariam então; iam parados e sombrios, como de
manhã e na véspera. Santos, que já reparara nisso, perguntou-lhe o
que é que tinha; ela não sei se lhe respondeu de palavra; se alguma
disse, foi tão breve e surda que inteiramente se perdeu. Talvez não
passasse de um simples gesto de olhos, um suspiro, ou cousa assim.
Fosse o que fosse, quando o coupé chegou ao meio do Catete, os dous
levavam as mãos presas, e a expressão do rosto era de abençoados.
Não davam sequer pela gente das ruas; não davam talvez por si
mesmos.
Leitor, não é muito que percebas a
causa daquela expressão; destes dedos abotoados. Já lá ficou dita
atrás, quando era melhor deixar que a adivinhasses; mas
provavelmente não a adivinharias. não que tenhas o entendimento
curto ou escuro, mas porque o homem na varia do homem, e tu talvez
ficasses com igual expressão, simplesmente por saber que ias dançar
sábado. Santos não dançava; preferia o voltarete, como distração.
A causa era virtuosa, como sabes; Natividade estava grávida, acabava
de o dizer ao marido.
Aos trinta anos não era cedo nem tarde; era imprevisto. Santos
sentiu mais que ela o prazer da vida nova. Eis aí vinha a realidade
do sonho de dez anos, uma criatura tirada da coxa de Abraão, como
diziam aqueles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora
empresta generosamente o seu dinheiro às companhias e às nações.
Levam juro por ele; mas os hebraísmos são dados de graça. Aquele é
desses. Santos, que só conhecia a parte do empréstimo, sentia
inconscientemente a do hebraísmo, e deleitava-se com ele. A emoção
atava-lhe a língua; os olhos que estendia à esposa e a cobriam eram
de patriarca; o sorriso parecia chover luz sobre a pessoa amadas
abençoada e formosa entre as formosas.
Natividade não foi logo, logo, assim; a pouco e pouco é que veio
sendo vencida e tinha já a expressão da esperança e da
Maternidade. Nos primeiros dias, os sintomas desconcertaram a nossa
amiga. É duro dizê-lo, mas é verdade. Lá se iam bailes e festas,
lá ia a liberdade e a folga. Natividade andava já na alta roda do
tempo; acabou de entrar por ela, com tal arte que parecia haver ali
nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas,
tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas também
outra em Petrópolis; nem só carro, mas também camarote no Teatro
Lírico, não contando os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas
e os seus; todo o repertório, em suma, da vi da elegante. Era
nomeada nas gazetas. pertencia àquela dúzia de nomes planetários
que figuram no meio da plebe de estrelas. O marido era capitalista e
diretor de um banco.
No meio disso, a que vinha agora uma criança deformá-la por meses,
obrigá-la a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o
resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro ímpeto
foi esmagar o gérmen. Criou raiva ao marido. A segunda sensação
foi melhor. A maternidade, chegando ao meio-dia, era como urna aurora
nova e fresca. Natividade viu a figura do filho ou filha brincando na
relva da chácara ou no regaço da aia, com três anos de idade, e
este quadro daria aos trinta e quatro anos que teria então um
aspecto de vinte e poucos...
Foi o que a reconciliou com o marido. Não exagero; também não
quero mal a esta senhora. Algumas teriam medo, a maior parte amor. A
conclusão é que, por uma ou por outra porta, amor ou vaidade. o que
o embrião quer é entrar na vida. César ou João Fernandes, tudo é
viver, assegurar a dinastia e sair do mundo o mais tarde que puder.
O casal ia calado. Ao desembocar na Praia de Botafogo, a enseada
trouxe o gosto de costume. A casa descobria-se a distancia,
magnífica; Santos deleitou-se de a ver, mirou-se nela, cresceu com
ela. subiu por ela. A estatueta de Narciso, no meio do jardim, sorriu
à entrada deles, a areia fez-se relva, duas andorinhas cruzaram por
cima do repuxo, figurando no ar a alegria de ambos. A mesma cerimônia
d descida. Santos ainda parou alguns instantes para ver o coupé dar
a volta, sair e tornar à cocheira; depois seguiu a mulher que
entrava no saguão.
Em cima, esperava por eles Perpétua,
aquela irmã de Natividade, que a acompanhou ao Castelo, e lá ficou
no carro, onde as deixei para narrar os antecedentes dos meninos.
—Então? Houve muita gente?
—Não, ninguém, pulgas.
Perpétua também não entendera a escolha da igreja. Quanto à
concorrência, sempre lhe pareceu que seria pouca ou nenhuma; mas o
cunhado vinha entrando, e ela calou o resto. Era pessoa circunspecta,
que não se perdia por um dito ou gesto descuidado. Entretanto, foi
lhe impossível calar o espanto, quando viu o cunhado entrar e dar à
mulher um abraço longo e terno, abrochado por um beijo.
—Que é isso? exclamou espantada.
Sem reparar no vexame da mulher, Santos
deu um abraço à cunhada, e ia dar-lhe um beijo também, se ela não
recuasse a tempo e com força.
—Mas que é isso? Você tirou a sorte grande de Espanha?
—Não, cousa melhor, gente nova.
Santos conservara alguns gestos e modos
de dizer dos primeiros anos, tais que o leitor não chamará
propriamente familiares, também não é preciso chamar-lhes nada.
Perpétua, afeita a eles, acabou sorrindo e dando-lhe parabéns. Já
então Natividade os deixara para se ir despir. Santos, meio
arrependido da expansão, fez-se sério e conversou da missa e da
igreja. Concordou que esta era decrépita e metida a um canto, mas
alegou razões espirituais. Que a oração era sempre oração, onde
quer que a alma falasse a Deus. Que a missa, a rigor, não precisava
estritamente de altar; o rito e o padre bastavam ao sacrifício.
Talvez essas razões não fossem propriamente dele, mas ouvidas a
alguém, decoradas sem esforço e repetidas com convicção. A
cunhada opinou de cabeça que sim. Depois falaram do parente morto e
concordaram piamente que era um asno; — não disseram este nome,
mas a totalidade das apreciações vinha a dar nele, acrescentado de
honesto e honestíssimo.
—Era uma pérola, concluiu Santos.
Foi a última palavra da necrologia;
paz aos mortos. Dali em diante, vingou a soberania da criança que
alvorecia. Não alteraram os hábitos, nos primeiros tempos, e as
visitas e os bailes continuaram como dantes, até que pouco a pouco,
Natividade se fechou totalmente em casa. As amigas iam vê-la. Os
amigos iam visitá-los ou jogar cartas com o marido.
Natividade queria um filho, Santos uma
filha, e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que
acabavam trocando de parecer. Então ela ficava com a filha, e
vestia-lhe as melhores rendas e cambraias, enquanto ele enfiava uma
beca no jovem advogado, dava-lhe um lugar no parlamento, outro no
ministério. Também lhe ensinava a enriquecer depressa; e
ajudá-lo-ia começando por uma caderneta na Caixa Econômica, desde
o dia em que nascesse até os vinte e um anos. Alguma vez, às
noites, se estavam sós, Santos pegava de um lápis e desenhava a
figura do filho, com bigodes, — ou então riscava uma menina
vaporosa.
—Deixa, Agostinho, disse-lhe a mulher uma noite; você sempre há
de ser criança.
E pouco depois, deu por si a desenhar
de palavra a figura do filho ou filha, e ambos escolhiam a cor dos
olhos, os cabelos, a tez, a estatura. Vês que também ela era
criança. A maternidade tem dessas incoerências, a felicidade
também, e por fim a esperança, que é a meninice do mundo.
A perfeição seria nascer um casal.
Assim os desejos do pai e da mãe ficariam satisfeitos. Santos pensou
em fazer sobre isso uma consulta espírita. Começava a ser iniciado
nessa religião, e tinha a fé noviça e firme. Mas a mulher opôs-se;
a consultar alguém, antes a cabocla do Castelo, a adivinha célebre
do tempo, que descobria as cousas perdidas e predizia as futuras.
Entretanto, recusava também, por desnecessário. A que vinha
consultar sobre uma dúvida, que dali a meses estaria esclarecida?
Santos achou, em relação à cabocla, que seria imitar as crendices
da gente reles; mas a cunhada acudiu que não, e citou um caso
recente de pessoa distinta, um juiz municipal, cuja nomeação foi
anunciada pela cabocla.
—Talvez o ministro da Justiça goste da cabocla, explicou Santos.
As duas riram da graça, e assim se fechou uma vez o capítulo da
adivinha, para se abrir mais tarde. Por agora é deixar que o feto se
desenvolva, a criança se agite e se atire, como impaciente de
nascer. Em verdade, a mãe padeceu muito durante a gestação, e
principalmente nas últimas semanas. Cuidava trazer um general que
iniciava a campanha da vida, a não ser um casal que aprendia a
desamar de véspera.
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