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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A Escrava Isaura - Bernardo Guimarães [penúltima parte]


Miguel não era homem de têmpera a lutar contra a adversidade. O
cativeiro e reclusão perene de sua filha, a miséria que se lhe antolhava
acompanhada de mil angústias, eram para ele fantasmas hediondos,
cujo aspecto não podia encarar sem sentir mortal pavor e abatimento.
Não achou muito oneroso o preço pelo qual o desumano senhor,
livrando-o da miséria, concedia liberdade à sua filha, e aceitou
o convênio.

Capítulo 20
Enquanto Rosa e André espanejavam os móveis do salão,
tagarelando alegremente, uma cena bem triste e compungente se passava em um
escuro aposento atinente às senzalas, onde Isaura sentada sobre um cepo, com
um dos alvos e mimosos artelhos preso por uma corrente cravada à
parede, há dois meses se achava encarcerada.
Miguel ai tinha sido introduzido por ordem de Leôncio, para dar
parte à filha do projeto de seu senhor, e exortá-la a aceitar o partido
que lhes propunha. Era pungente e desolador o quadro que apresentavam
aquelas duas míseras criaturas, pálidas, extenuadas e abatidas pelo
infortúnio, encerrados em uma estreita e lôbrega espelunca. Ao se
encontrarem depois de dois longos meses, mais oprimidos e desgraçados
que nunca, a primeira linguagem com que se saudaram não foi mais do
que um coro de lágrimas e soluços de indizível angústia, que abraçados
por largo tempo estiveram entornando no seio um do outro.

..........................................................
- Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício, que
é desgraçadamente o único recurso que nos deixam. É com esta condição
que venho abrir-te as portas desta triste prisão, em que há dois
meses vives encerrada. É, sem dúvida, um cruel sacrifício para teu
coração; mas é sem comparação mais suportável do que esse duro
cativeiro, com que pretendem matar-te.
- É verdade, meu pai; o meu carrasco dá-me a escolha entre dois
jugos; mas eu ainda não sei qual dos dois será mais odioso e
insuportável.
Eu sou linda, dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspiraram-me
uma alta estima de mim mesma com o sentimento do pudor e
da dignidade da mulher; sou uma escrava, que faz muita moça formosa
morder-se de inveja; tenho dotes incomparáveis do corpo e do espírito;
e tudo isto para quê, meu Deus!?... para ser dada de mimo a um mísero
idiota!... Pode-se dar mais cruel e pungente escárnio?!...
E uma risada convulsiva e sinistra desprendeu-se dos lábios
descorados de Isaura, e reboou pelo lúgubre aposento, como o estrídulo
ulular do mocho entre os sepulcros.
- Não é tanto como se te afigura na imaginação abalada pelos
sofrimentos. O tempo pode muito, e com paciência e resignação hás de
te acostumar a esse novo viver, sem dúvida muito mais suave do que
este inferno de martírios, e poderemos ainda gozar dias se não felizes,
ao menos mais tranquilos e serenos.
- Para mim a tranquilidade não pode existir senão na sepultura,
meu pai. Entre os dois suplícios que me deixam escolher, eu vejo ainda
alguma coisa, que me sorri como uma ideia consoladora, um recurso
extremo, que Deus reserva para os desgraçados, cujos males são sem
remédio.
- É da resignação sem dúvida, que queres falar, não é, minha
filha?... Ah! meu pai, quando a resignação não é possível, só a morte...
- Cala-te, filha!... não digas blasfêmias e palavras loucas. Eu
quero, eu preciso, que tu vivas. Terás ânimo de deixar teu pai neste mundo
sozinho, velho e entregue à miséria e ao desamparo? Se me faltares, o
que será de mim nas tristes conjunturas em que me deixas?...
- Perdoe-me, meu bom, meu querido pai; só em um caso
extremo eu me lembraria de morrer. Eu sei que devo viver para meu
pai, e é isso que eu quero; mas para isso será preciso que eu me
case com um disforme?... oh! isto é escárnio e opróbrio demais!
Tenham-me debaixo do mais rigoroso cativeiro, ponham-me na roça de enxada na
mão, descalça e vestida de algodão, castiguem-me, tratem-me enfim
como a mais vil das escravas, mas por caridade poupem-me este
ignominioso sacrifício!...
- Belchior não é tão disforme como te parece; e demais o tempo
e o costume te farão familiarizar com ele. Há muito tempo não o vês;
com a idade ele vai-se endireitando, que é ele ainda muito criança.
Agora o desconhecerás; já não tem aquele exterior tão grosseiro e
desagradável, e tem tomado outras maneiras menos toscas. Toma ânimo,
minha filha; quando saíres deste triste calabouço, o ar da liberdade te
restituirá a alegria e a tranquilidade, e mesmo com o marido que te dão
poderás viver feliz...
- Feliz! - exclamou Isaura com amargo sorriso: - não me fale
em felicidade, meu pai. Se ao menos eu tivesse o coração livre como
outrora... se não amasse a ninguém. Oh!... não era preciso que ele me
amasse, não; bastava que me quisesse para escrava, aquele anjo de
bondade, que em vão empregou seus generosos esforços para
arrancar-me deste abismo. Quanto eu seria mais feliz do que sendo
mulher desse pobre homem, com quem me querem casar! Mas ai de mim!
devo eu pensar mais nele? pode ele, nobre e rico cavalheiro, lembrar-se
ainda da pobre e infeliz cativa!...
- Sim, minha filha, não penses mais nesse homem; varre da tua
ideia esse amor tresloucado; sou eu quem te peço e te aconselho.
- Por que, meu pai?... como poderei ser ingrata a esse moço?...
- Mas não deves contar mais com ele, e muito menos com o seu
amor.
- Por que motivo? porventura se terá ele esquecido de mim?...
- Tua humilde condição não permite que olhes com amor para
tão alto personagem; um abismo te separa dele. O amor que lhe
inspiraste, não passou de um capricho de momento, de uma fantasia de fidalgo. Bem
me pesa dizer-te isto, Isaura; mas é a pura verdade.
- Ah! meu pai! que está dizendo!... se soubesse que mal me fazem
essas terríveis palavras!... deixe-me ao menos a consolação de acreditar
que ele me amava, que me ama ainda. Que interesse tinha ele em iludir uma
pobre escrava?...
- Eu bem quisera poupar-te ainda este desgosto; mas é preciso
que saibas tudo. Esse moço... ah! minha filha, prepara teu coração para
mais um golpe bem cruel.
- Que tem esse moço?... perguntou Isaura trêmula e agitada. Fale,
meu pai; acaso morreu?...
- Não, minha filha, mas... está casado.
- Casado!... Álvaro casado!... oh! não; não é possível!... quem lhe
disse, meu pai?...
- Ele mesmo, Isaura; lê esta carta.
Isaura tomou a carta com mão trêmula e convulsa, e a percorreu
com olhos desvairados. Lida a carta, não articulou uma queixa, não
soltou um soluço, não derramou uma lágrima, e ela, pálida como um
cadáver, os olhos estatelados, a boca entreaberta, muda, imóvel, hirta,
ali ficou por largo tempo na mesma posição; dir-se-ia que fora petrificada
como a mulher de Ló, ao encarar as chamas em que ardia a cidade
maldita.
Enfim por um movimento rápido e convulso atirou-se ao seio de seu pai,
e inundou-o de uma torrente de lágrimas.
Este pranto copioso aliviou-a; ergueu a cabeça, enxugou as
lágrimas, e pareceu ter recobrado a tranquilidade, mas uma tranquilidade gélida,
sinistra, sepulcral. Parecia que sua alma se tinha aniquilado sob a violência
daquele golpe esmagador, e que de Isaura só restava o fantasma.
- Estou morta, meu pai!... não sou mais que um cadáver... façam
de mim o que quiserem...
Foram estas as últimas palavras que com voz fúnebre e sumida
proferiu naquele lôbrego recinto.
- Vamos, minha filha, disse Miguel beijando-a na fronte. Não te
entregues assim ao desalento; tenho esperança de que hás de viver e
ser feliz.
Miguel, espírito acanhado e rasteiro, coração bom e sensível,
mas inteiramente estranho às grandes paixões, não podia compreender
todo o alcance do sacrifício que impunha à sua filha. Encarando a
felicidade mais pelo lado dos interesses da vida positiva e material, não
pelos gozos e exigências do coração, ousava conceber sinceras
esperanças de mais felizes e tranquilos dias para sua filha, e não via que,
sujeitando-a a semelhante opróbrio, aviltando-lhe a alma, ia esmagar-lhe
o coração. Queria que ela vivesse, e não via que aquele ignominioso
consórcio, depois de tantas e tão acerbas torturas por que passara, era o
golpe de compaixão, que, terminando-lhe a existência, vinha abreviar-lhe
os sofrimentos.
Malvina achava-se no salão, e ali esperava o resultado da
conferência que Miguel fora ter com sua filha. Rosa e André, de braços
cruzados junto à porta da entrada, também ali se achavam às suas
ordens.
Malvina sentiu um doloroso aperto de coração ao ver assomar na
porta o vulto de Isaura, arrimada ao braço de Miguel, lívida e desfigurada
como enferma em agonia, os cabelos em desalinho, e com passos
mal seguros penetrar, como um duende evocado do sepulcro, naquele
salão, onde não há muito tempo a vira tão radiante de beleza e mocidade,
naquele salão, que parecia ainda repetir os últimos acentos de sua
voz suave e melodiosa.
Mesmo assim ainda era bela a mísera cativa. A magreza fazendo
sobressaírem os contornos e ângulos faciais, realçava a pureza ideal e a
severa energia daquele tipo antigo.
Os grandes olhos pretos cobertos de luz baça e melancólica eram
como círios funéreos sob a arcada sombria de uma capela tumular. Os
cabelos entornados em volta do colo, faziam ondular por eles leves
sombras de maravilhoso efeito, como festões de hera a se debruçarem
pelo mármore vetusto de estátua empalidecida pelo tempo. Naquela
miseranda situação, Isaura oferecia ao escultor um formoso modelo da
Níobe antiga.
- Aquela é Isaura!... oh!... meu Deus! coitada! - murmurou
Malvina ao vê-la, e foi-lhe mister enxugar duas lágrimas, que a seu pesar
umedeceram-lhe as pálpebras. Esteve a ponto de ir implorar clemência
a seu esposo em favor da pobrezinha, mas lembrou-se das perversas
inclinações e mau comportamento, que Leôncio aleivosamente atribuíra
a Isaura, e assentou de revestir-se de toda a impassibilidade que lhe
fosse possível.
- Então, Isaura, - disse Malvina com brandura, - já tomaste a
tua resolução?... estás decidida a casar com o marido que te queremos
dar?

Isaura por única resposta abaixou a cabeça e fitou os olhos no
chão.
- Sim, senhora, - respondeu Miguel por ela - Isaura está resolvida
a se conformar com a vontade de V. S.a.
- Faz muito bem. Não é possível que ela esteja a sofrer por mais
tempo esse cruel tratamento, em que não posso consentir enquanto
estiver nesta casa. Não foi para esse fim que sua defunta senhora
criou-a com tanto mimo, e deu-lhe tão boa educação. Isaura, apesar de
tua descaída, quero-te bem ainda, e não tolerarei mais semelhante
escândalo. Vamos dar-te ao mesmo tempo a liberdade e um excelente
marido.
- Excelente!... meu Deus! Que escárnio! - refletiu Isaura.
- Belchior é muito bom moço, inofensivo, pacífico e trabalhador;
creio que hás de dar-te otimamente com ele. Demais para obter a
liberdade nenhum sacrifício é grande, não é assim, Isaura?
- Sem dúvida, minha senhora; já que assim o quer, sujeito-me
humildemente ao meu destino. Arrancam-me da masmorra - (continuou
Isaura em seu pensamento), - para levarem-me ao suplício.
- Muito bem, Isaura; mostras que és uma rapariga dócil e de juízo.
André, vai chamar aqui o senhor Belchior. Quero eu mesma ter o
gosto de anunciar-lhe que vai enfim realizar o seu sonho querido de
tantos anos. Creio que o senhor Miguel também não ficará mal satisfeito
com o arranjo que damos a sua filha; sempre é alguma coisa sair do
cativeiro e casar-se com um homem branco e livre. Antes assim do que
fugir, e andar foragida por esse mundo. Isaura, para prova de quanto
desejo o teu bem, quero ser madrinha neste casamento, que vai pôr
termo a teus sofrimentos, e restabelecer nesta casa a paz e o
contentamento, que há muito tempo dela andavam arredados.
Ditas estas palavras, Malvina abriu um cofre de joias, que estava
sobre uma mesa, e dele tirou um rico colar de ouro, que foi colocar no
pescoço de Isaura.
- Aceita isto, Isaura, - disse ela, - é o meu presente de noivado.
- Agradecida, minha boa senhora, - disse Isaura, e acrescentou
em seu coração: - é a corda, que o carrasco vem lançar ao pescoço da
vítima.
Neste momento vem entrando Belchior acompanhado por André.
Eis-me aqui, senhora minha, - diz ele, - o que deseja deste
seu menor criado?
- Dar-lhe os parabéns, senhor Belchior, - respondeu Malvina.
- Parabéns!... mas eu não sei por quê!...
- Pois eu lhe digo; fique sabendo que Isaura vai ser livre, e...
adivinhe o resto.
- E vai-se embora decerto... oh!... é uma desgraça!
- Já vejo que não é bom adivinhador. Isaura está resolvida a
casar-se com o senhor.
- Que me diz, patroa!... perdão, não posso acreditar. Vossemecê
está zombando comigo.
Digo-lhe a verdade; ai está ela, que não me deixará mentir.
Apronte-se, senhor Belchior, e quanto antes, que amanhã mesmo há de
se fazer o casamento aqui mesmo em casa.
- Oh! senhora minha! divindade da Terra! - exclamou Belchior
indo-se atirar aos pés de Malvina e procurando beijá-los, - deixe-me
beijar esses pés...
- Levante-se daí, senhor Belchior; não é a mim, é a Isaura que
deve agradecer.
Belchior levanta-se e corre a prostrar-se aos pés de Isaura.
- Oh! princesa de meu coração! - exclamou ele atracando-se ás
pernas da pobre escrava, que fraca como estava, quase foi à terra com
a força daquela furiosa e entusiástica atracação. Era para fazer rebentar
de riso, a quem não soubesse quanto havia de trágico e doloroso no
fundo daquela ímpia e ignóbil farsa.
- Isaura!... não olhas para mim? aqui tens a teus pés este teu
menor cativo, Belchior!... olha para ele, para este teu adorador, que
hoje é mais do que um príncipe.., dá cá essa mãozinha, deixa-me
comê-la de beijos...
- Meu Deus! que farsa hedionda obrigam-me a representar! -
murmurou Isaura consigo, e voltando a face abandonou a mão a
Belchior, que colando a ela a boca no transporte do entusiasmo, desatou a
chorar como uma criança.
- Olha que palerma! - disse André para Rosa, que observava de
parte aquela cena tragicômica. - E venham cá dizer-me que não é o
mel para a boca do asno!
- Eu antes queria que me casassem com um jacaré.
- Este meu sinhô moço tem ideias do diabo! quem havia de
lembrar-se de casar uma sereia com um boto?
- Invejoso!... você é que queria ser o boto, por isso está aí a
torcer o nariz. Toma!... bem feito!... agora o que faltava era
que o nhonhô te desse de dote à Isaura.
- Isso queria eu!... aposto que Isaura não vai casar de livre
vontade! e depois... nós cá nos arranjaríamos... havia de enfiar o
boto pelo fundo de uma agulha.
- Sai daí, tolo!... pensa que Isaura faz caso de você?...
- Não te arrebites, minha Rosa; já agora não há remédio senão
contentar-me contigo, que em fim de contas também és bem bonitinha,
e... tudo que cai no jequi, é peixe.
- É baixo!... aguente a sua tábua, e vá consolar-se com quem
quiser, menos comigo.

Capítulo 21
- Então, Leôncio, - dizia Malvina a seu esposo no outro dia
pela manhã, - deste as providências necessárias para arranjar-se esse
negócio hoje mesmo?

- Creio que é a centésima vez que me fazes essa pergunta,
Malvina, - respondeu Leôncio sorrindo-se. - Todavia pela centésima vez
te responderei também, que as providências que estão da minha parte,
já foram todas dadas. Ontem mesmo mandei um próprio a Campos, e
não tardarão a chegar por aí o tabelião para passar escritura
de liberdade a Isaura com toda a solenidade, e também o padre para
celebrar o casamento. Bem vês que de nada me esqueci. Tratem de estar
todos prontos; e tu, Malvina, manda já preparar a capela para se
efetuar esse casamento, que pareces desejar com mais ardor, -
acrescentou sorrindo, - do que desejaste o teu próprio.
Malvina saiu do salão, deixando Leôncio em companhia de um
terceiro personagem, que também ali se achava, por nome Jorge, a
quem o leitor ainda não conhece. Dizendo que era um parasita, ainda
não temos dito tudo.
Este gênero contém muitas variedades, e mesmo cada individuo
tem sua cor e feição particular. Era um homem bem apessoado,
espirituoso serviçal, cheio de cortesia e amabilidade, condições
indispensáveis a um bom parasita. Jorge não vivia da seiva e da sombra
de uma só árvore; saltava de uma a outra, e assim peregrinava por
longas distâncias, o que era da sua parte um excelente cálculo, pois
proporcionava-lhe uma vida mais variada e recreativa, ao mesmo tempo
que tornava sua companhia menos incômoda e fatigante aos seus numerosos
amigos. Conhecia e entretinha relações de amizade com todos os
fazendeiros das margens do Paraíba desde São João da Barra até São
Fidélis. A crer no que dizia, andava sempre cheio de afazeres e
dando andamento a mil negócios importantes, mas estava sempre pronto
a prescindir deles a convite de qualquer desses amigos para passar
uns oito ou quinze dias em sua companhia.
Na solidão em que Leôncio se achou depois de seu rompimento
com Malvina, Jorge foi para ele um excelente recurso quando se achava
na fazenda. Servia-lhe de companheiro não só à mesa, como ao jogo e
à caça: entretinha-o a contar-lhe anedotas divertidas e escandalosas,
aplaudia-lhe os desvarios e extravagâncias, e lisonjeava-lhe as ruins
paixões, enquanto Leôncio, que o acreditava realmente um amigo, fazia
dele o seu confidente, e comunicava-lhe os seus mais íntimos
pensamentos, os seus planos de perversidade, e os mais secretos
negócios de família.
Para melhor entrarmos no mistério dos planos atrozes e ignóbeis,
das satânicas maquinações de Leôncio, ouçamos a conversação íntima,
que vão tratar estes dois entes dignos um do outro.
- Até que por fim, Jorge, achei um meio engenhoso e seguro de
aplanar todas as dificuldades. Desta maneira espero que tudo se vai
arranjar ás mil maravilhas.
- Seguramente, e já de antemão te dou os parabéns pelos teus
triunfos, e aplaudo-te pela feliz combinação de teus planos.
- Mas escuta ainda para melhor poderes compreendê-los. Com
este casamento ficam satisfeitos os desejos de minha mulher, sem que
Isaura escape de todo ao meu poder. Como o pai dela está debaixo de
minha restrita dependência, eu saberei reter junto de mim esse estúpido
jardineiro com quem caso-a, e depois... tu bem sabes, o tempo e a
perseverança amansam as feras mais bravias. Entretanto a atrevida
escrava receberá o castigo que merece sua inqualificável rebeldia. Era-me
absolutamente necessário dar este passo, porque minha mulher
recusa-se obstinadamente a reconciliar-se comigo, enquanto eu conservar
Isaura cativa em meu poder, capricho de mulher, com que bem pouco
me importaria, se não fosse... - isto aqui entre nós, meu amigo; confio
em tua discrição.
- Podes falar sem susto, que meu coração é como um túmulo
para o segredo da amizade.
- Bem; dizia-te eu, que bem pouco me importaria com os arrufos
e caprichos de minha mulher, se não fosse o completo desarranjo em
que desgraçadamente vão os meus negócios. Em consequência de uma
infinidade de circunstâncias, que é escusado agora explicar-te, a minha
fortuna está ameaçada de levar um baque horrendo, do qual não sei se
me será possível levantá-la sem auxilio estranho. Ora meu sogro é o
único que com o auxilio de seu dinheiro ou de seu crédito pode ainda
escorar o edifício de minha fortuna prestes a desabar.
- Em verdade procedes com tino e prudência consumada. Oh!
teu sogro!... conheço-o muito; é uma fortuna sólida, e uma das casas
mais fortes do Rio de Janeiro; teu sogro não te deixará ficar mal. Quer
extremosamente à filha, e não quererá ver arruinado o marido dela.
- Disso estou eu certo. Mas isto ainda não é tudo; escuta ainda,
Jorge. O meu rival, esse tal senhor Álvaro, que tanto cobiçou a minha
Isaura para sua amizade, que não teve pejo de seduzi-la, acoutá-la e
protegê-la pública e escandalosamente no Recife, esse grotesco
campeão da liberdade das escravas alheias, que protestou me disputar
Isaura a todo o risco, ficará de uma vez para sempre desenganado de
sua estulta pretensão. Vê pois, Jorge, quantos interesses e vantagens se
conciliam no simples fato desse casamento.

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