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sábado, 22 de fevereiro de 2014

A Escrava Isaura - Bernardo Guimarães [parte 12]

Cheguei a duvidar ainda da cruel realidade. O chefe de polícia,
possuído de respeito e admiração diante de tão gentil e nobre
figura, tratou-a com toda a amabilidade, e interrogou-a com brandura e
polidez. Coberta de rubor e pejo confessou tudo com a ingenuidade de
uma alma pura. Fugira em companhia de seu pai, para escapar ao amor de
um senhor devasso, libidinoso e cruel, que a poder de violências e
tormentos tentava forçá-la a satisfazer seus brutais desejos. Mas Isaura, a
quem uma natureza privilegiada secundada pela mais fina e esmerada
educação, inspirara desde a infância o sentimento da dignidade e do
pudor, repeliu com energia heroica todas as seduções e ameaças de seu
indigno senhor. Enfim, ameaçada dos mais aviltantes e bárbaros
tratamentos, que já começavam a traduzir-se em vias de fato, tomou o partido extremo
de fugir, o único que lhe restava.
- O motivo da fuga, Álvaro, a ser verdadeiro, é o mais honroso
possível para ela, e a toma uma heroína; mas... enfim de contas ela não
deixa de ser uma escrava fugida.
- E por isso mesmo mais digna de interesse e compaixão. Isaura
tem-me contado toda a sua vida, e segundo creio, pode alegar, e talvez
provar direito à liberdade. Sua senhora velha, mãe do atual senhor, a
qual criou-a com todo o mimo, e a quem ela deve a excelente educação
que tem, tinha declarado por vezes diante de testemunhas, que por
sua morte a deixaria livre; a morte súbita e inesperada desta senhora,
que faleceu sem testamento, é a causa de Isaura achar-se ainda entre as
garras do mais devasso e infame dos senhores.

- E agora, o que pretendes fazer?...
- Pretendo requerer que Isaura seja mantida em liberdade, e que
lhe seja nomeado um curador a fim de tratar do seu direito.
- E onde esperas encontrar provas ou documentos para provar as
alegações que fazes?
- Não sei, Geraldo; desejava consultar-te, e esperava-te com
impaciência precisamente para esse fim. Quero que com a tua ciência
jurídica me esclareças e inspires neste negócio. Já lancei mão do primeiro
e mais óbvio expediente que se me oferecia, e logo no dia seguinte ao do
baile escrevi ao senhor de Isaura com as palavras as mais comedidas e
suasivas, de que pude usar, convidando-o a abrir preço para a liberdade
dela. Foi pior; o libidinoso e ciumento Rajá enfureceu-se e mandou-me
em resposta esta carta insolente, que acabo de receber, em que me
trata de sedutor e acoutador de escravas alheias, e protesta lançar mão
dos meios legais para que lhe seja entregue a escrava.
- É bem parvo e descortês o tal sultanete, - disse Geraldo
depois de ter percorrido rapidamente a carta, que Álvaro lhe apresentou;
- mas o certo é que, pondo de parte a insolência...
- Pela qual há de me dar completa e solene satisfação, eu o
protesto.
- Pondo de parte a insolência, se nada tens de valioso a apresentar
em favor da liberdade da tua protegida, ele tem o incontestável direito de
reclamar e apreender a sua escrava onde quer que se ache.
- Infame e cruel direito é esse, meu caro Geraldo. É já um escárnio
dar-se o nome de direito a uma instituição bárbara, contra a qual
protestam altamente a civilização, a moral e a religião. Porém, tolerar a sociedade
que um senhor tirano e brutal, levado por motivos infames e vergonhosos,
tenha o direito de torturar uma frágil e inocente criatura, só porque teve a desdita
de nascer escrava, é o requinte da celeradez e da abominação.
- Não é tanto assim, meu caro Álvaro; esses excessos e abusos
devem ser coibidos; mas como poderá a justiça ou o poder público
devassar o interior do lar doméstico, e ingerir-se no governo da casa do
cidadão? que abomináveis e hediondos mistérios, a que a escravidão dá
lugar, não se passam por esses engenhos e fazendas, sem que, já não
digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos, deles tenham
conhecimento?...
Enquanto houver escravidão, hão de se dar esses exemplos. Uma
instituição má produz uma infinidade de abusos, que só poderão ser
extintos cortando-se o mal pela raiz.
- É desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona
desumanamente essas vítimas ao furor de seus algozes, ainda há no
mundo almas generosas que se incumbem de protegê-las ou vingá-las. Quanto
a mim protesto, Geraldo, enquanto no meu peito pulsar um coração,
hei de disputar Isaura à escravidão com todas as minhas forças, e espero
que Deus me favorecerá em tão justa e santa causa.
- Pelo que vejo, meu Álvaro, não procedes assim só por espírito
de filantropia, e ainda amas muito a essa escrava.
- Tu o disseste, Geraldo; amo-a muito, e hei de amá-la sempre e
nem disso faço mistério algum. E será coisa estranha ou vergonhosa
amar-se uma escrava? O patriarca Abraão amou sua escrava Agar, e
por ela abandonou Sara, sua mulher. A humildade de sua condição
não pode despojar Isaura da cândida e brilhante auréola de que a via e
até hoje a vejo circundada. A beleza e a inocência são astros que mais
refulgem quando engolfados na profunda escuridão do infortúnio.
- É bela a tua filosofia, e digna de teu nobre coração; mas que
queres? as leis civis, as convenções sociais, são obras do homem,
imperfeitas,  injustas, e muitas vezes cruéis. O anjo padece e geme sob o jugo
da escravidão, e o demônio exalça-se ao fastígio da fortuna e do poder.
- E assim pois, - refletiu Álvaro com desânimo, - nessas
desastradas leis nenhum meio encontras de disputar ao algoz essa inocente vítima?
- Nenhum, Álvaro, enquanto nenhuma prova puderes aduzir em
prol do direito de tua protegida. A lei no escravo só vê a propriedade, e
quase que prescinde nele inteiramente da natureza humana. O senhor
tem direito absoluto de propriedade sobre o escravo, e só pode perdê-lo
manumitindo-o ou alheando-o por qualquer maneira, ou por litígio
provando-se liberdade, mas não por sevícias que cometa ou outro
qualquer motivo análogo.
- Miserável e estúpida papelada que são essas vossas leis. Para
ilaquear a boa-fé, proteger a fraude, iludir a ignorância, defraudar o
pobre e favorecer a usura e rapacidade dos ricos, são elas fecundas em
recursos e estratagemas de toda a espécie. Mas quando se tem em vista
um fim humanitário, quando se trata de proteger a inocência desvalida
contra a prepotência, de amparar o infortúnio contra uma injusta
perseguição, então ou são mudas, ou são cruéis. Mas não obstante elas,
hei de empregar todos os esforços ao meu alcance para libertar a infeliz do
afrontoso jugo que a oprime. Para tal empresa alenta-me não já
somente um impulso de generosidade, como também o mais puro e
ardente amor, sem pejo o confesso.
O amigo de Álvaro arrepiou-se com esta deliberação tão franca e
entusiasticamente proclamada com essa linguagem tão exaltada, que lhe
pareceu um deplorável desvario da imaginação.
- Nunca pensei, replicou com gravidade, - que a tal ponto
chegasse a exaltação desse teu excêntrico e malfadado amor. Que por um
impulso de humanidade procures proteger uma escrava desvalida, nada
mais digno e mais natural. O mais não passa de delírio de uma
imaginação exaltada e romanesca. Será airoso e digno da posição que ocupas na
sociedade, deixares-te dominar de uma paixão violenta por uma escrava?
- Escrava! - exclamou Álvaro cada vez mais exaltado, - isso
não passa de um nome vão, que nada exprime, ou exprime uma
mentira. Pureza de anjo, formosura de fada, eis a realidade! Pode um
homem ou a sociedade inteira contrariar as vistas do Criador, e
transformar em uma vil escrava o anjo que sobre a Terra caiu das mãos
de Deus?...
- Mas por uma triste fatalidade o anjo caiu do céu no lodaçal da
escravidão, e ninguém aos olhos do mundo o poderá purificar dessa
nódoa, que lhe mancha as asas. Álvaro, a vida social está toda juncada
de forcas caudinas, por debaixo das quais nos é forçoso curvar-nos,
sob pena de abalroarmos a fronte em algum obstáculo, que nos faça
cair. Quem não respeita as conveniências e até os preconceitos sociais,
arrisca-se a cair no descrédito ou no ridículo.
- A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera
hedionda na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte,
nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito por um
preconceito absurdo, resultante de um abuso que nos desonra aos olhos
do mundo civilizado. Seja eu embora o primeiro a dar esse nobre
exemplo, que talvez será imitado. Sirva ele ao menos de um protesto
enérgico e solene contra uma bárbara e vergonhosa instituição.
- És rico, Álvaro, e a riqueza te dá bastante independência para
poderes satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua
imaginação romanesca. Mas tua riqueza, por maior que seja, nunca
poderia reformar os prejuízos do mundo, nem fazer com que essa
escrava, a quem segundo todas as aparências quererias ligar o teu
destino, fosse considerada, e nem mesmo admitida nos círculos da alta
sociedade...
- E que me importam os círculos da alta sociedade, uma vez que
sejamos bem acolhidos no meio das pessoas de bom senso, e coração
bem formado? Demais, enganas-te completamente, meu Geraldo. O
mundo corteja sempre o dinheiro, onde quer que ele se ache. O ouro
tem um brilho que deslumbra, e apaga completamente essas pretendidas
nódoas de nascimento. Não nos faltarão, nunca, eu te afianço, o
respeito, nem a consideração social, enquanto nos não faltar o
dinheiro.
- Mas, Álvaro, esqueces-te de uma coisa muito essencial; e se te
não for possível obter a liberdade de tua protegida?...
A esta pergunta Álvaro empalideceu, e oprimido pela ideia de tão
cruel como possível alternativa, sem responder - palavra olhava
tristemente para o horizonte, quando o boleeiro de Álvaro, que se achava postado
com sua caleça junto à porta do jardim, veio anunciar-lhe que algumas pessoas o
procuravam e desejavam falar-lhe, ou ao dono da casa.
- A mim! - resmungou Álvaro; porventura estou eu em minha
casa?... mas como também procuram o dono desta... faça-os entrar.

- Álvaro, disse Geraldo espreitando por uma janela, - se me não
engano, é gente da polícia; parece-me que lá vejo um oficial de justiça.
Teremos outra cena igual à do baile?...
- Impossível!.., com que direito virão tocar-me no depósito
sagrado, que a mesma polícia me confiou!...
- Não te fies nisso. A justiça é uma deusa muito volúvel e fértil
em patranhas. Hoje desmanchará o que fez ontem.

Capítulo 16
O primeiro cuidado de Martinho logo ao sair do baile, em que viu
malograda a sua tentativa de apreender Isaura, foi escrever ao senhor
dela uma longa e minuciosa carta, comunicando-lhe que tinha tido a
fortuna de descobrir a escrava que tanto procurava.
Contava por miúdo as diligências que fizera para esse fim, até
descobri-la em um baile público e encarecia o seu próprio mérito e
perspicácia para esbirro, dizendo que a não ser ele, ninguém seria capaz
de farejar uma escrava na pessoa de uma moça tão bonita e tão prendada.
Alterando os fatos e as circunstâncias do modo o mais atroz e calunioso,
dizia-lhe em frases de taverneiro, que Miguel se estabelecera no Recife
com Isaura a fim de especular com a formosura da filha, a qual, a poder
de armar laços à rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim conseguido
apanhar um patinho bem gordo e fácil de depenar. Era este um
pernambucano por nome Álvaro, moço duas vezes milionário, e mil
vezes desmiolado, que tinha por ela uma paixão louca. Este moço, a
quem ela trazia iludido e engodado ao ponto de ele querer desposá-la,
caiu na tolice de levá-la a um baile, onde ele Martinho teve a fortuna
de descobri-la, e a teria apreendido, e estaria ela já de marcha para o
poder de seu senhor, se não fosse a oposição do tal senhor Álvaro, que
apesar de ficar sabendo de que ralé era a sua heroína, teve a
pouca-vergonha de protegê-la escandalosamente. Prevalecendo-se das valiosas relações, e
da influência de que gozava no país em razão de sua riqueza, conseguiu
impedir a sua apreensão, e tornando-se fiador dela a conservava em
seu poder contra toda a razão e justiça, protestando não entregá-la
senão ao seu próprio senhor. Julga que a intenção de Álvaro é tentar
meios de libertá-la, a fim de fazê-la sua mulher ou sua amásia. Julgava
de seu dever comunicar-lhe tudo isso para seu governo.
Era este em suma o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguiu
para o Rio de Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Álvaro,
fazendo proposições para a liberdade de Isaura. Leôncio, contente com
a descoberta, mas cheio de ciúme e inquietação em vista das informações
de Martinho, apressou-se em responder a ambos, e o mesmo paquete que
trouxe a resposta insolente e insultuosa que dirigiu a Álvaro, foi portador
da que se destinava a Martinho, na qual o autorizava a apreender a
escrava em qualquer parte que a encontrasse, e para maior segurança remetia-lhe
também procuração especial para esse fim, e mais algumas cartas de
recomendação de pessoas importantes para o chefe de policia, para que o
auxiliasse naquela diligência.
Martinho mais que depressa dirigiu-se à casa da polícia, e
apresentando ao chefe todos esses papéis, requereu-lhe que mandasse entregar-lhe a
escrava.
O chefe em vista dos documentos de que Martinho se achava munido,
entendeu que não lhe era possível denegar-lhe o que pedia, e expediu ordem por
escrito, para que lhe fosse entregue a escrava em questão. e deu-lhe um oficial de
justiça e dois guardas para efetuarem a diligência.
Foi, portanto, o Martinho, que, munido de todos os poderes,
competentemente autorizado pela polícia, apresentou-se com sua escolta
à porta da casa de Isaura, para arrebatar a Alvaro a cobiçada presa.
- Ainda este infame! - murmurou Álvaro entre os dentes ao ver
entrar o Martinho. - Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado
mancebo arrancara do íntimo da alma.
- Que deseja de mim o senhor? - perguntou Álvaro em tom
seco e altivo.
- V. S.ª que bem me conhece, - respondeu Martinho, - já
pode presumir pouco mais ou menos o motivo que aqui me traz.
- Nem por sombras posso adivinhá-lo, antes me causa estranheza
esse aparato policial, de que vem acompanhado.
- Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma
escrava fugida, por nome Isaura, que há muito tempo foi por mim apreendida no
meio de um baile, no qual se achava V. S.ª e devendo eu enviá-la a seu senhor
no Rio de Janeiro, V. S.ª a isso se opôs sem motivo algum justificável,
conservando-a até hoje em seu poder contra todo o direito.
- Alto lá, senhor Martinho! penso que não é pessoa competente
para dar ou tirar direito a quem lhe parecer. O senhor bem sabe que eu
sou depositário dessa escrava, e que com todo o direito e consentimento
da autoridade a tenho debaixo de minha proteção.
- Esse direito, se é que se pode chamar direito a uma
arbitrariedade, cessou, desde que V. S.ª nada tem alegado em favor da mesma escrava.
E demais, - continuou apresentando um papel, - aqui está ordem expressa
e terminante do chefe de polícia, mandando que me seja entregue a dita
escrava.
A isto nada se pode opor legalmente.
- Pelo que vejo, senhor Martinho, - disse Álvaro depois de
examinar rapidamente o papel que Martinho lhe entregara, - ainda
não desistiu de seu indigno procedimento, tornando-se por um pouco
de dinheiro o vil instrumento do algoz de uma infeliz mulher? Reflita, e
verá que essa infame ação só pode inspirar asco e horror a todo o
mundo.
Martinho achando-se acostado pela policia, julgou-se com direito
de mostrar-se áspero e arrogante, e, portanto, com imperturbável sangue-frio:
- Senhor Álvaro, - respondeu, - eu vim a esta casa somente
com o fim de exigir em nome da autoridade a entrega de uma escrava
fugida, que aqui se acha acoutada, e não para ouvir repreensões, que o
senhor não tem direito de dar-me. Trate de fazer o que a lei ordena e a
prudência aconselha, se não quer que use de meu direito...

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