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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte final]

Quinta-feira, 6 de Julho de 1944
Querida Kitty:
Amargura-me o coração quando ouço dizer ao Peter
que ainda poderá vir a ser, mais tarde, um criminoso ou
um especulador. Bem sei que ele diz aquilo por brincadeira,
mas tenho a impressão de que tem medo da sua própria
fraqueza de caráter. Tanto a Margot como o Peter repetem-me
constantemente :
-Ah! se eu fosse tão forte e corajosa como tu, se tivesse
tanta força de vontade, tanta persistência...
Será de fato uma boa qualidade isto de eu não me
deixar influenciar? Estará certo que siga quase exclusivamente
o caminho que me dita a minha consciência?
Com toda a franqueza, custa-me compreender que alguém
possa dizer "sou fraco" e se deixe ficar fraco na mesma.
Se a gente conhece os seus defeitos porque não tenta então
corrigi-los? Resposta do Peter:
- Porque assim é muito mais cômodo.
Esta resposta desencorajou-me bastante. Cômodo! Quer
ele dizer que uma vida de preguiça e de auto ilusão é
uma vida cômoda? Oh, não, não, recuso-me a acreditar
nisso. Não é possível que a moleza e... o dinheiro sejam
tão aliciantes.
Pensei muito tempo no que havia de lhe
responder, em como poderei levar o Peter a ter confiança
em si próprio e, principalmente, a corrigir-se. Mas não
sei se serei bem sucedida.
Julgava maravilhoso possuir a confiança de alguém,
mas só agora vejo como é difícil identificar-me com os
pensamentos de outrem e dar um conselho justo, tanto
mais que os conceitos de "cômodo" e de "dinheiro" são
para mim novos e um tanto estranhos. O Peter começa
a encostar-se a mim e acho que não devia ser assim. Não
é fácil para um rapaz como o Peter aguentar-se sobre as
próprias pernas, mas ainda lhe custará mais na medida
em que se for tornando um homem consciente à procura
de um caminho na vida, através de um mar de problemas.
Sinto-me como se andasse à roda de mim mesma procurando
uma justificação para o medonho conceito de "cômodo".
Como poderei eu explicar-lhe, a ele, que aquilo que aparentemente é tão cômodo e tão bonito, o
arrastará para o abismo, esse abismo onde já não há nem amigos, nem
beleza, nem apoio, o abismo donde é quase impossível
tornar a subir?
Todos vivemos sem saber porquê e para quê, todos procuramos
ser felizes, todos vivemos de um modo diferente
e no entanto somos todos iguais. Nós, os três jovens, fomos
educados num ambiente elevado, temos a capacidade
de aprender e de conseguir alguma coisa, temos igualmente
razão para esperar uma vida bela, mas... depende
de nós merecê-la. Para isso é necessário esforço, não basta
buscar a comodidade.
Merecer a felicidade quer dizer trabalhar para ela,
ser bom e não se deixar seduzir por especulações ou pela
preguiça. Talvez a preguiça "pareça" coisa agradável, mas
o trabalho dá satisfação. Não compreendo as pessoas que
não gostam de trabalhar, mas não é este o caso do Peter.
Ao Peter só lhe falta uma finalidade, um objetivo firme;
ele acha-se estúpido e inferior para conseguir coisa de
jeito.
Pobre rapaz, ainda não conheceu a sensação agradável
que é dar felicidade aos outros e isso não lhe posso eu
ensinar. Não tem religião, troça de Jesus, renega o nome
de Deus. Embora eu não seja ortodoxa, sinto uma dor profunda
ao aperceber-me do seu desdém, do seu abandono,
da pobreza da sua alma.
Aqueles que têm uma religião podem sentir-se felizes,
pois não é dada a todos a fé nas coisas celestes. Nem é
preciso ter medo do castigo depois da morte. Há muita
gente que não admite o Purgatório, o Inferno ou o Céu,
mas uma religião - e não importa qual - mantém os homens
no caminho reto. Não se trata do medo de Deus mas
sim da estima da nossa própria honra e da nossa consciência.
Como seria bela e boa toda a Humanidade se, antes
de adormecer à noite, evocasse os acontecimentos do dia que passou, se refletisse no que foi
bom e no que foi mau.
Assim, quase sem dar por isso, tentamos corrigir-nos
constantemente, e depois de certo tempo alguma coisa
conseguimos. Este método toda a gente o pode utilizar,
não custa nada, está ao alcance de quem quiser. Quem
o não conhece deve aprender e experimentar: "Uma consciência
tranquila torna-nos fortes!"
Tua Anne.

Sábado, 8 de Julho de 1944
Querida Kitty:
O representante principal da firma, o sr. B, esteve em
Beverwijk, onde conseguiu arranjar morangos. Chegaram
aqui cheios de pó e de areia, mas são muitos: caixotes
para o escritório e para nós. Fizemos imediatamente oito
frascos de conservas e oito boiões de compota. Amanhã,
a Miep também vai fazer compota para o escritório.
Ao meio-dia e meia hora, quando já não há mais
estranhos no prédio, e com a porta da rua fechada, vamos
buscar os caixotinhos. O Peter, o pai e o sr. van Daan
desfilam na escada, a Anne traz a água quente, a Margot
os baldes, enfim, todos dão uma ajuda. Com uma sensação
estranha no estômago entrei na cozinha do escritório :
a Miep, a Elli, o Koophuis, o Henk, o pai, o Peter, a
coluna dos "mergulhados" e a do reabastecimento, tudo
à mistura em pleno dia.
Bem sei que ninguém pode olhar cá para dentro através
das cortinas, mas as vozes, as portas a bater, tudo
isto, faz-me tremer de aflição. Pergunto-me se somos de facto
"mergulhados", penso que terei uma sensação semelhante
quando puder um dia entrar, de novo, no mundo exterior.
A panela estava cheia. Subi depressa. Na nossa cozinha
estava o resto da família a tirar os talos dos morangos.
Metiam mais frutos na boca do que no balde. Daí a
pouco-era preciso mais um balde - o Peter desceu à
cozinha do escritório e, nesse momento, a campainha toca
duas vezes. O Peter deixa ficar o balde, sobe para fechar
a porta giratória. Nós, cheios de impaciência! As torneiras
não se podiam abrir, embora os morangos precisassem
urgentemente de ser lavados. Mas a regra dos "mergulhados"
é esta: "Se estiver algum estranho no prédio, todas as torneiras devem estar fechadas por causa
do perigo
dos ruídos". E esta regra cumpre-se rigorosamente.
à uma hora veio o Henk para nos dizer que tinha
sido o carteiro quem tocara a campainha. O Peter corre de
novo escada abaixo. Trrin, a campainha outra vez. E o
Peter volta a subir. Eu ponho-me a escutar, primeiro
encostada à porta camuflada, depois em cima da escada,
sem fazer o menor ruído. O Peter vem também e, por fim,
parecíamos dois ladrões dependurados no corrimão a
escutar o barulho lá debaixo. Não distinguíamos nenhuma
voz que nos fosse estranha. Então o Peter desceu muito
cautelosamente alguns degraus e chamou:
-Elli!
Não veio resposta. Outra vez :
-Elli!
O barulho na cozinha é mais alto do que a voz do
Peter. Ele então desce e eu olho para baixo, cheia de
nervos.
-Sobe depressa, anda, Peter, está cá o fiscal da contabilidade!
Era a voz do sr. Koophuis. Suspirando, o Peter volta,
a porta giratória fecha-se. à uma e meia veio, finalmente,
o Kraler:
-Por amor de Deus! Não vejo senão morangos. Dão-me
morangos ao pequeno almoço, o Henk a comer morangos,
o Koophuis a petiscar morangos, a Miep a cozer morangos,
o cheiro a morangos por toda a parte. Já não podia mais
e por isso resolvi subir até aqui-e o que vejo?-gente a
lavar morangos!
Do resto dos morangos fizeram-se conservas. à noite
as tampas de dois frascos saltaram fora. O pai tira os morangos e faz compota. Na manhã
seguinte outras duas
tampas saltam, à hora do almoço, mais quatro. O sr. van
Daan não esterilizou os frascos suficientemente. E agora o
pai faz todas as noites compota. Comemos papinhas com
morangos, soro de leite com morangos, pão com morangos,
sobremesa de morangos, morangos com açúcar, morangos
com areia... Durante dois dias os morangos andaram a
dançar por toda a parte : morangos, morangos, morangos.
Depois não se viram mais, os frascos de compota ficaram
bem fechados à chave.
-Anda cá ver, Anne, chama a Margot-o hortaliceiro
da esquina mandou nove quilos de ervilhas.
-Acho simpático da parte dele, disse eu, mesmo muito
simpático, mas o trabalho que isto dá... que horror!
-No domingo de manhã vocês todos têm de ajudar
a descascar-anunciou a mãe à mesa. E assim foi. Hoje
de manhã, depois do pequeno almoço, apareceu em cima
da mesa o grande alguidar de esmalte cheio, até acima,
de ervilhas. Debulhar ervilhas pequeninas é um trabalho
aborrecido, mas o que custa é aproveitar as cascas das
vagens. Sei que a maioria das pessoas não faz ideia de
como são saborosas as cascas das ervilhas depois de a gente
lhes ter tirado a película interior. A grande vantagem está
em se poder comer muito mais do que se nos limitássemos
apenas às ervilhas. Tirar as pelezinhas é um trabalho
preciso e minucioso, que, talvez, seja mais próprio para
dentistas ultrameticulosos e burocratas mesquinhos; para
uma rapariga impaciente como eu, torna-se horrível. às
nove e meia começamos; às dez e meia resolvi fazer um
intervalo de uma hora. Os ouvidos zumbem-me: cortar
a ponta, tirar a pelezinha, depois os fios, deitar as ervilhas
no alguidar, etc. Foge-me a vista: verde, verde, bichos, fios,
cascas podres, verde, verde, verde.
Fiquei estúpida e para fazer alguma coisa passei a falar
durante todo o tempo. A dizer asneiras faço rir toda a gente,
mas eu é que fico com a sensação de morrer de aborrecimento.
A cada fiozinho que tiro, mais me convenço de que
nunca quererei ser apenas dona de casa!
Ao meio-dia comemos, finalmente. Mas ao meio-dia
e meia hora começamos de novo a tirar peliculazinhas até
à uma hora e um quarto. Quando chegamos ao fim eu
estava enjoada e os outros também um pouco; dormi
até às quatro horas, mas ainda me sinto toda moída de
tanta ervilha.
Tua Anne.

Sábado, 15 de Julho de 1944
Querida Kitty:
Lemos um livro da biblioteca com o título maravilhosamente
provocante : O que pensa você da rapariga moderna?.
Quero falar-te hoje sobre este tema. A autora critica,
dos pés à cabeça, a "juventude de hoje" sem, no
entanto, acusar tudo quanto é jovem de "não servir para
nada". Pelo contrário, ela pensa que a juventude, se quisesse,
podia construir um mundo maior, mais belo e melhor.
Diz que a juventude tem os meios para isso mas que se
preocupa com assuntos superficiais, sem reparar no que
há de essencialmente belo nas coisas. Ao ler certos parágrafos
tive a impressão de ser visada e, por isso, quero desabafar
aqui com alguns pensamentos e defender-me contra aqueles
ataques.
Tenho um traço marcante no meu caráter - todos os
que me conhecemj á deram por ele: a autocrítica. Vejo-me
em todos os meus atos como se se tratasse de uma pessoa
estranha. Enfrento esta Anne com absoluta imparcialidade,
sem pretender desculpá-la e observo o que ela faz de mal
e de bem. Esta autocontemplação nunca me larga, e não
posso pronunciar uma palavra sem pensar logo em seguida:
"devia ter dito isto de outra maneira", ou: "foi bem
dito".
Condeno muitas vezes os meus atos e reconheço cada
vez mais a verdade das palavras de meu pai: "Cada
criança deve educar-se a si própria". Os outros só nos
podem dar conselhos ou indicar-nos o caminho a seguir,
mas a formação definitiva do caráter está nas próprias
mãos de cada indivíduo. A isso devo acrescentar que
tenho uma coragem extraordinária de viver, sinto-me sempre
forte e capaz de suportar seja o que for. Sinto-me tão
livre, tão jovem! Quando me dei conta disto pela primeira
vez fiquei contente, pois não supunha que os golpes que
ninguém está livre de apanhar, me pudessem esmagar
ràpidamente. Mas sobre este assunto já falei muitas vezes.
Deixa-me chegar ao ponto principal: "O pai e a mãe não
me entendem". Deram-me muitos mimos, foram sempre
bons para comigo, defenderam-me, em resumo: fizeram
tudo o que os pais podem fazer. E todavia tenho-me sentido,
muitas vezes, terrivelmente só, posta de parte,
descurada, incompreendida. O pai tem feito tudo para
atenuar os meus protestos, mas em vão; fui eu mesma que me
curei, reconhecendo os erros dos meus atos. Mas como se
explica que o pai não me possa ter dado o necessário
apoio na minha luta? Como se explica que ele tenha
falhado quando me oferecia o seu auxílio? O pai falhou
porque não conseguiu encontrar a maneira de falar comigo,
tratava-me como uma criancinha que só tem preocupações
infantis. Pode parecer tolice eu dizer isto, pois foi justamente o pai quem me inspirou sempre
confiança e me deu a certeza de que sou inteligente. Mas há uma coisa
em que se esqueceu de pensar: é que a minha luta para
me elevar era mais importante para mim do que tudo o
mais. Eu não queria ouvir: "sintomas típicos... outras
raparigas... isto passa", etc. Não queria ser tratada como
todas as raparigas, mas como um ser com personalidade
própria, como a ANNE. Foi isto o que o Pim não soube
compreender. De resto não me é possível abrir-me com
alguém que não me fale também de si; como sei muito
pouco da vida do Pim, nunca poderá estabelecer-se entre
nós uma intimidade completa. O Pim coloca-se sempre no
ponto de vista do mais velho que também passou por coisas
semelhantes mas que já não pode sentir e viver o que
vive um jovem, embora tente fazê-lo. Tudo isto me levou
a nunca comunicar a ninguém a minha concepção da vida
e as minhas teorias longamente meditadas, a não ser; de
longe em longe, à Margot.
Tudo o que me preocupava escondia-o do pai, não o
deixei partilhar comigo os meus ideais e, conscientemente,
alheei-me dele. Não me foi possível ser diferente, deixei-me
conduzir pelos sentimentos, mas agi de modo a encontrar
sossego. E o meu sossego, e a confiança em mim mesma, que
fui construindo sobre bases oscilantes talvez não resistissem se eu tivesse de suportar críticas a
esta minha obra ainda
não acabada. E nem ao Pim posso permitir que se meta
de permeio. Por mais duro que isto possa soar, afastei-o de
mim, não o deixando partilhar da minha vida interior,
principalmente pela minha irritabilidade. É um ponto que
me preocupa constantemente. Porque é que o Pim me
irrita tanto a ponto de não poder estudar com ele, de me
parecerem artificiais os seus carinhos, de desejar só o meu
sossego e que ele me deixe em paz até eu possuir mais
segurança íntima? A verdade é que ainda me censuro
por causa daquela carta vil que ousei escrever-lhe num
momento de excitação. Oh! Como é difícil ser-se forte e
corajosa em todas as circunstâncias.
Mas esta ainda não é a minha decepção mais grave :
muito mais do que o pai preocupa-me o Peter. Sei bem
que fui eu quem o conquistou a ele e não o contrário;
construí dele uma visão idealizada, vi nele um rapaz
simpático, calado, sensível, precisando de muito amor
e de amizade. Tive necessidade de abrir-me com um
ser vivo, com um amigo que me mostrasse o caminho
a seguir. Consegui que ele, pouco a pouco, fosse atraído
por mim. Finalmente, depois de ter despertado nele sentimentos
amigáveis, passamos a intimidades que me
parecem, agora, inconcebíveis. Falamos sobre muitas coisas
íntimas mas sobre aquelas que me enchem o coração ainda
não dissemos palavra. Não me foi possível, até agora,
fazer uma ideia exata do Peter; é ele um rapaz superficial,
ou não consegue vir francamente ao meu encontro
por ser tímido? Mas eu cometi um erro grave: eliminei,
logo de entrada, todas as possibilidades de uma grande
amizade entre nós, tentando aproximar-me dele por uma
intimidade exagerada. Ele está ávido de amor e de dia
para dia cada vez gosta mais de mim, bem o sinto. O nosso
convívio satisfá-lo plenamente, mas em mim produz apenas
o efeito de tentativas renovadas para recomeçar e tocar
nos assuntos que tanto gostaria de abordar e de esclarecer.
Atraí o Peter à força, e ele nem se deu conta disso. Agora
agarra-se a mim e, por enquanto, não vejo como o hei de
sacudir de mim e repô-lo sobre os seus próprios pés. Depois
de me ter apercebido de que ele não pode ser para mim
o amigo que ansiava, esforcei-me para o elevar acima dos
seus pontos de vista limitados e para que não desperdice
a sua juventude. "Pois, no fundo, a juventude é mais
solitária do que a velhice". Encontrei esta frase num livro
e fixei-a, porque encontrei nela a verdade.
É a nossa vida aqui mais difícil de suportar para os
adultos de que para nós? Não, decerto não! As pessoas
com mais idade já têm opiniões formadas sobre todas as
coisas e já não vacilam, não hesitam perante as dificuldades
da sua vida. A nós, os jovens, custa-nos manter-nos firmes
nos nossos pareceres por vivermos numa época em que
mostra pelo seu lado mais horroroso, em que se duvida
da verdade, do direito, de Deus!
Aquele que pretende afirmar que os mais velhos sofrem
mais aqui no anexo do que nós, os jovens, não sabe ver
até que ponto os problemas desabam sobre nós, problemas
para os quais talvez ainda não tenhamos bastante idade,
mas que se nos impõem de um modo violento. Em determinada altura julgamos ter encontrado
uma solução mas esta solução, de uma maneira geral, não resiste aos fatos
que são sempre tão diferentes. Eis a dificuldade do nosso
tempo : mal começam a germinar em nós ideais, sonhos,
belas esperanças, logo a realidade cruel se apodera de tudo
isso para o destruir totalmente.
É por milagre que eu ainda não renunciei a todas as
minhas esperanças, na verdade tão absurdas e irrealizáveis.
Mas eu agarro-me a elas, apesar de todos e de tudo, porque
tenho fé no que há de bom no homem. Não me é possível
construir a vida tomando como base a morte, a miséria
e a confusão. Vejo o Mundo transformar-se, pouco a pouco,
num deserto; ouço, cada vez mais forte, a trovoada que se
aproxima, essa trovoada que nos há de matar; sinto o
sofrimento de milhões de seres e, mesmo assim, quando
ergo os olhos para o Céu, penso que, um dia, tudo isto
voltará a ser bom, que a crueldade chegará ao seu fim e
que o Mundo virá a conhecer de novo a ordem, a paz, a
tranquilidade.
Até lá tenho que manter firme os meus ideais-talvez
ainda os possa realizar nos tempos que hão de vir.
Tua Anne.

Sexta-feira, 21 de Julho de 1944
Querida Kitty:
Estou cheia de esperanças, tudo vai bem! Sim, vai
mesmo muito bem! Notícias sensacionais. Houve um atentado
contra Hitler mas, imagina, os autores não foram
comunistas, judeus ou capitalistas ingleses, mas sim um
general alemão da nobre raça germânica, e, ainda por
cima, um general ainda jovem! A "providência divina"
salvou a vida do Führer e ele escapou-infelizmente,
infelizmente!-com algumas arranhadelas e queimaduras.
Alguns oficiais e generais que andavam com ele morreram
ou ficaram feridos. O autor principal foi fuzilado. Este
atentado é a melhor prova de que muitos oficiais e generais
estão fartos desta guerra e que veriam com prazer o Hitler
afundar-se nos mais profundos precipícios. Querem, depois
da morte de Hitler, instalar uma ditadura militar, fazer
as pazes com os aliados, rearmar-se, para desencadear
uma nova guerra daqui a vinte anos. Talvez a Providência
tenha hesitado, de propósito, em afastar Hitler desde já,
pois aos aliados faz muito mais jeito, e é muito mais vantajoso, que os alemães arianos puros se
matem uns aos outros; assim haverá depois menos canseira para os russos
e para os ingleses que poderão mais depressa começar a
reconstruir as suas cidades. Mas ainda não chegamos a
este ponto e eu não quero antecipar-me aos fatos gloriosos.
Tu decerto estás a notar que tudo o que te estou a dizer
é a realidade nua e crua, uma realidade com os dois pés
fincados no chão, e que eu, excepcionalmente, não estou
a delirar com ideias superiores.
Hitler teve a amabilidade de comunicar ao seu povo
dedicado que os militares, de hoje em diante, terão de
obedecer à Gestapo e que qualquer soldado, se souber que um seu superior esteve implicado
neste atentado tão cobarde e tão baixo, poderá meter-lhe, sem cerimônias, uma bala na cabeça.
Vai ser bonito. Imagina: ao Hans Dampf doem-lhe
os pés de tanto marchar; o seu superior, o chefe, dá-lhe
um raspanete. O Hans pega na espingarda e grita:
-Tu quiseste matar o nosso Führer, toma a recompensa.
Pum! O orgulhoso chefe que se atreveu a censurar o
pequeno soldado, foi despachado para a vida eterna (ou
será para a morte eterna?). O resultado vai ser este: os
senhores oficiais vão andar sempre com as cuecas sujas
de tanto medo e não se atreverão mais a dizer seja o que
for a um simples soldado.
Compreendes tudo? Ou gaguejei eu ao escrever? Se
assim for não há nada a fazer, pois estou contente de mais
para observar a lógica, contente por ter esperanças de que
em Outubro estarei, de novo, sentada nos bancos da
escola. Olá, não disse eu há pouco que não me devo
antecipar? Não te zangues. Não é por acaso que me chamam "um feixe de contradições".
Tua Anne.


Terça-feira, 1 de Agosto de 1944
Querida Kitty:
"Um feixe de contradições". Foi esta a última frase
da minha carta anterior e é a primeira da de hoje. "Um
feixe de contradições", poderás tu explicar-me, com exatidão,
o que isto quer dizer? O que é contradição? Como
todas as palavras, tem dois sentidos : contradição exterior
e contradição interior.
O primeiro sentido é este : não nos conformarmos com
a opinião dos outros, querer saber tudo melhor, querer
ter a última palavra, enfim: qualidades desagradáveis
que já conheces suficientemente. O segundo: qualidades
que também tenho mas que ninguém conhece e que são
o meu segredo.
Já te contei em tempos que não tenho só uma alma mas
sim duas. Uma dá-me a minha alegria exuberante, as
minhas zombarias a propósito de tudo, a minha vontade
de viver e a minha tendência para deixar correr, isto é,
para não me escandalizar com "flirts", abraços ou uma
piada inconveniente. Esta primeira alma está sempre à
espreita e faz tudo para suplantar a outra que é mais
bela, mais pura, mais profunda. Essa alma boa da Anne
ninguém a conhece, não é verdade? E é por isso que tão
pouca gente gosta de mim.
Bem o sei: veem em mim um palhaço divertido para uma
tarde - depois toda a gente fica cheia de mim para um
mês - sou, no fim de contas, o mesmo que um filme amoroso
para gente sisuda, uma simples distração, um divertimento,
alguma coisa que se esquece depressa, não precisamente
má mas também nada de especial. Não me é agradável
contar-te isto, mas, por outro lado, porque não o havia
de contar se é a pura verdade? Este meu lado superficial
tentará sempre afastar o outro, o mais profundo, e alcançará,
por isso, a vitória. Não podes fazer ideia de quantas
vezes tenho tentado repelir, espancar ou esconder esta
Anne, que não passa da metade daquilo que se chama
Anne; mas não serve de nada, e bem sei porquê. Tenho
medo de que todos os que me conhecem, tal como costumo
ser, possam descobrir o meu outro lado, o mais belo, o
melhor. Tenho medo de que trocem de mim, me achem
ridícula e sentimental, e não me tomem a sério. Estou
habituada a não ser tomada a sério, mas é justamente a
Anne mais "fácil" que suporta isso; a "mais profunda"
não tem forças para tanto. Empurro por vezes a boa Anne
para a luz da ribalta, mesmo que seja por um escasso
quarto de hora, mas logo que ela tem de falar, contrai-se
e fecha-se de novo na sua concha, passando a palavra à
Anne número 1. E antes que eu me dê conta, já a boa
desapareceu.
É por isso que a Anne terna e simpática nunca vem à
superfície na presença das outras pessoas mas é a sua voz
que domina na solidão. Sei exatamente como gostava de
ser, sei como sou... no íntimo, mas, infelizmente, só sou
assim quando estou sozinha comigo. E isto é, talvez, não
seguramente, a razão por que chamo à minha natureza
íntima uma natureza feliz e porque os outros chamam
feliz à minha natureza exterior. No meu interior, a Anne
pura é que me indica o caminho; exteriormente, não passo
de um cabritinho que pula de alegria e de animação.
Como eu já disse, vejo e sinto as coisas de um modo
e exteriorizo-as de outro e tenho, por isso, a fama de ser
uma rapariga doida por rapazes, sempre a "flirtar", sempre
impertinente e sempre a ler romances. A Anne alegre
ri-se, dá respostas atrevidas, encolhe os ombros com indiferença
como se isso nada tivesse que ver com ela, mas,
ai de mim!, a Anne calada reage ao contrário. Como sou
sempre franca contigo, vou confessar-te que tenho pena,
que me esforço terrivelmente por me modificar, mas que luto
sempre contra forças superiores às minhas. Dentro de mim uma
voz sussurra: -Vês o resultado? Más opiniões a teu respeito,
caras trocistas e consternadas, gente que te acha antipática, e tudo isto porque não queres ouvir
os conselhos do teu próprio lado bom. Ai! Bem os queria eu ouvir, mas não pode ser; quando
estou calada e séria, todos pensam que estou a representar uma nova comédia. Para me salvar só
me resta dizer uma piadinha. Pior ainda quando se trata da minha família
que imagina logo que estou doente e me impinge pastilhas
contra as dores de cabeça e o nervosismo, que me toma
o pulso a ver se tenho febre, que pergunta como funciona
o aparelho digestivo para, em seguida, censurar o meu
mau gênio. Não suporto semelhante coisa. Quando me
tratam desta maneira, torno-me ainda mais impertinente,
fico triste e, por fim, viro o meu coração do avesso - o
lado mau para fora, o bom para dentro-e continuo a
procurar um meio para vir a ser aquela que gostava de
ser, que era capaz de ser, se... sim, se não houvesse mais
ninguém no Mundo.
Tua Anne M. Frank

AQUI TERMINA O DIÁRIO DE ANNE

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