Total de visualizações de página

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 3]

Sexta-feira, 1 de Agosto de 1942
Querida Kitty :
Há um mês que não tenho feito caso de ti, mas nem
todos os dias acontecem coisas novas. No dia 13 de Julho
chegaram os van Daans. Só os esperávamos no dia 16.,
mas como justamente naqueles dias toda a gente andava
muito agitada por os alemães convocarem de cada vez
mais judeus, os van Daans preferiram partir da sua casa
antes que fosse tarde de mais. Pela manhã, às nove e meia
-estávamos ainda a tomar o pequeno almoço - entrou o
Peter van Daan, um rapazote de dezasseis anos, enfadonho,
bastante tímido, que não promete vir a ser um companheiro
interessante. Meia hora mais tarde apareceu o
casal van Daan. Rimo-nos muito por a sra. van Daan
trazer na chapeleira um vaso de noite. "Sem vaso de noite
não posso viver", disse ela, e pôs a peça valiosa no seu
lugar debaixo da cama. Ele, o sr. van Daan, não trazia
vaso, mas apareceu com uma mesinha de chá de dobrar,
debaixo do braço. No primeiro dia estivemos sentados
todos juntos, num ambiente simpático, e passados três
dias, tínhamos a impressão de termos sido sempre uma
grande família. Os van Daans assistiram a muita coisa
em toda aquela semana que ainda passaram fora da toca,
e era disso que nos falavam. A nós interessava-nos muito,
em especial o que tinha sucedido à nossa casa e ao sr.
Goudsmit.

E o sr. van Daan contou :
-Segunda-feira, às nove horas da manhã, o sr. Gouds
mit telefonou-me para ir ter com ele. Mostrou-me o papelinho que vocês tinham deixado ficar
(para ele levar o
gato ao vizinho). Ele tinha um medo terrível de que a
polícia revistasse a casa e, por isso, limpamos um bocado
a mesa. De repente descobri no calendário em cima da
escrivaninha da sra. Frank um apontamento com uma
direção qualquer em Maastricht. Eu sabia este "desleixo"
intencional, mas fingi-me admirado e assustado e pedi
ao sr. Goudsmit para, com toda a urgência, queimar aquele
malfadado papel. Ao mesmo tempo ia dizendo que não
fazia a menor ideia da vossa intenção de desaparecer.
De repente foi como se se fizesse luz no meu espírito.
- Sr. Goudsmit -, disse, - agora estou a perceber o que
quer dizer essa direção. Há mais ou menos meio ano apareceu-nos no escritório um oficial
alemão de alta patente, um amigo de infância do sr. Frank. Ora, esse oficial prometeu
ao sr. van Daan ajudá-lo se ele, um dia, estivesse
em perigo aqui. E esse oficial estava precisamente estacionado
em Maastricht! Suponho que cumpriu a promessa
e que levará os Franks à Bélgica e de lá para junto dos
parentes deles na Suiça. Pode contar isso aos amigos
que perguntem pelos Franks, mas não mencione Maastricht,
por favor.
Depois fui-me embora. A história correu e até já me
foi contada a mim próprio por várias vezes, segundo esta
mesma versão.
Achamos a coisa deliciosa e rimo-nos ainda bastante da
força de imaginação dalgumas pessoas! O sr. van Daan
contou que uma família pensava ter-nos visto quando
partimos de bicicleta de manhã cedo, todos juntos. Uma
outra senhora sabia categoricamente que um automóvel
militar nos foi buscar em plena noite.
Tua Anne.

Sexta feira, 21 de Agosto de 1942
Querida Kitty:
O nosso "esconderijo" é agora perfeito. O sr. Kraler
teve a boa ideia de tapar a porta de entrada do anexo.
A polícia anda a fazer muitas buscas às casas por causa
das bicicletas escondidas. O sr. Vossen executou um plano:
construir uma estante giratória que abre para o lado como
uma porta. É claro que, para isso, o sr. Vossen teve de
"entrar no segredo" e está a ser muito prestável. Agora, antes
de descermos, temos de nos curvar e depois damos um saltinho
porque o degrau desapareceu.
Ao cabo de três dias tínhamos todos a testa cheia de
galos, porque como não tomávamos cautela e não estávamos
habituados, batíamos quase sempre contra a portinha.
Agora pregamos-lhe uma almofadinha de serrim.
Vamos a ver se serve para alguma coisa.
Não leio muito. Tem-me esquecido quase tudo o que
aprendi na escola. A nossa vida aqui é pouco variada.
O sr. van Daan e eu pegamo-nos a cada passo. Ele, já se vê,
acha a Margot muito mais engraçada do que eu. A mãe
trata-me como se eu fosse um bebé, coisa que não suporto.
O Peter também não tem piada. É aborrecido e mandrião.
Passa a maior parte do dia estendido na cama, por vezes
levanta-se, carpinteira um bocado e volta de novo a dormitar.
Um autêntico palerma!
Está calor e nós preguiçamos na cadeira de lona, lá
em cima, no sótão grande.
Tua Anne.

Quarta-feira, 2 de Setembro de 1942
Querida Kitty:
O sr. van Daan zangou-se com a mulher. Nunca vi
tal coisa na minha vida. O meu pai e a minha mãe não
eram capazes de gritar assim um com o outro. O motivo
foi tão insignificante que nem vale a pena falar nele.
Mas enfim, cada um é como é. Para o Peter não deve
ser nada agradável assistir a zangas dessas. Mas ele, de
resto, ninguém o toma a sério por ser tão preguiçoso
e tão mimalho. Ontem estava todo aflito porque tinha a
língua azul. Mas pouco depois já lhe tinha passado, e
hoje anda com um cachecol grosso à volta do pescoço,
diz que tem lumbago e dores nos pulmões, no coração
e nos rins. Calcula, mais nada! Este jovem está-me a
sair um belíssimo hipocondríaco! (É assim que se diz,
não é?)
A minha mãe e a sra. van Daan não se dão lá muito
bem, e realmente há razões bastantes para isso. Só um
exemplo: a sra. van Daan só deixou ficar três lençóis no
armário das roupas brancas, usado em comum por eles
e por nós. Tinha ela a intenção simpática de poupar os
lençóis dela e de usar os nossos. Há-de ficar muito espantada,
quando descobrir que a mãe lhe seguiu o bom
exemplo... Madame também se enfurece toda quando pomos
a uso a louça dela e não a nossa. Anda constantemente a
ver se descobre o que foi feito da nossa porcelana e nem
suspeita que esta se encontra tão perto dela, no sótão,
atrás de vários materiais de reclame, onde está bem guardadinha
e onde ficará "mergulhada" tanto tempo como
nós. A pouca sorte persegue-nos. Ontem deixei cair um
prato de sopa.
-Oh! - gritou ela, furiosa - toma cautela. É tudo que me resta!-Mas o sr. van Daan é agora a
amabilidade
em pessoa para comigo.
A mãe voltou a pregar-me um grande sermão, hoje
pela manhã. Acho isto horrível. As nossas opiniões são
demasiado diferentes. O pai tem mais compreensão, mesmo
se às vezes fica zangado durante cinco minutos.
Na semana passada houve um incidente. O motivo
foi um livro sobre mulheres e... o Peter. Ainda não te disse
que a Margot e o Peter têm licença para ler quase todos os
livros que o sr. Koophuis nos traz da biblioteca. Mas esse
tal livro os "grandes" não lhos queriam dar.
claro está, a curiosidade do Peter ficou espicaçada.
O que estaria escrito num livro proibido? Tirou-o, à
sucapa, à sua mãe quando ela estava cá em baixo. Escondeu-se
com a presa debaixo do telhado. Durante dois dias
tudo correu bem. A mãe tinha dado fé, mas não o traiu.
Mas depois o pai descobriu tudo. Zangou-se, tirou-lhe o
livro e pensou que o assunto estava resolvido. Não contava
com a curiosidade do filho que não achou a intenção
do pai razoável e por isso não desistiu. Procurou, por todos
os meios, apanhar o livro outra vez. A sra. van Daan,
entretanto, tinha falado com minha mãe sobre o assunto.
Minha mãe também achava que aquele livro não era
próprio para a Margot, apesar de a deixar ler todos os
outros livros.
-Entre a Margot e o Peter há uma grande diferença,
sra. van Daan,-disse a mãe.-Em primeiro lugar, as raparigas
são quase sempre mais desenvolvidas do que os rapazes
e depois a Margot já leu muitos livros, livros sérios e
notáveis, e, além disso, ela está mais avançada no que
respeita ao raciocínio e à cultura. Não se esqueça de que ela
tem o curso dos liceus quase completo.
Em princípio, a sra. van Daan concordava, embora
não achasse necessário darem-se aos jovens os livros que,
na realidade, eram destinados aos adultos.
O Peter aproveitou a ocasião para se apoderar do livro.
Quando, à noite, toda a família se reuniu no escritório
particular, para ouvir rádio, levou ele o seu tesouro para
o sótão. às oito e meia devia voltar para baixo, mas o
livro era tão palpitante que não reparou nas horas. Vinha
precisamente a descer a escada do sótão com muita cautela quando o seu pai entrou no quarto.
Podes imaginar
o que se seguiu... Ouviu-se o estalar de uma bofetada
retumbante. Um empurrão, o livro voou por cima da
mesa e o Peter para o canto do quarto. O casal van Daan
apareceu à mesa sem Peter, que foi obrigado a ficar em
cima. Ninguém fez caso. Diziam que, de castigo, ia para
a cama sem comer. Passamos à ordem do dia e comemos.
De repente... um assobio penetrante... Ficamos como que
petrificados e pálidos. Olhamos uns para os outros. Os
talheres caíram-nos das mãos. Depois ouvimos a voz de
Peter através do cano do fogão :
-Se pensam que desço, estão muito enganados.
O sr. van Daan deu um pulo da cadeira e gritou,
vermelho como um tomate:
-Agora basta!
O pai, receando zaragata, agarrou-lhe no braço e
subiram assim os dois. Depois de muita resistência e demasiado
barulho, o Peter acabou por voltar ao seu quarto,
onde ficou fechado à chave. A sua boa mãezinha quis
guardar-lhe um pão com manteiga, mas o sr. papá mostrou-se
inflexível.
-Se ele se não resolve a pedir desculpa imediatamente,
irá dormir para o sótão!
Protestamos e dissemos que já era castigo suficiente
ter o rapaz ficado sem jantar. E se o Peter se constipasse
não havia possibilidade de ir buscar um médico.
O Peter não pediu desculpa e ficou no sótão. O sr.
van Daan não lhe ligou importância, mas na manhã
seguinte pôde verificar que o Peter, afinal, tinha dormido
na sua cama. às sete horas, porém, o rapaz subiu,
de novo, para o sótão e foi preciso o meu pai intervir com
algumas palavrinhas conciliadoras para que ele descesse.
Durante três dias tivemos caras carrancudas e um silêncio
teimoso. Depois tudo regressou à velha ordem.
Tua Anne.

Segunda-feira, 21 de Setembro de 1942
Querida Kitty :
Hoje vou contar-te coisas miudinhas da nossa vida
diária. A sra. van Daan é insuportável. A cada passo me
censura por eu falar tanto. Não perde uma ocasião para
nos irritar. Agora meteu-se-lhe em cabeça que não havia
de lavar a louça! E se uma ou outra vez se digna fazê-lo,
quando um resto de comida ficou na panela não o guarda
num pratinho de vidro como nós fazemos, deixa-o ficar.
Resultado: estraga-se e, além disso, a Margot que tem
de lavar a louça na vez seguinte, tem o dobro do trabalho.
E ainda por cima tem de ouvir da senhora :
- Coitadinha da Margot, tem tanto trabalho!
O pai e eu arranjamos agora um entretenimento engraçado.
Estamos a elaborar uma árvore genealógica da família
dele. Conta-me coisas de todos os parentes. Então sinto-me
muito ligada à família.
De quinze em quinze dias, o sr. Koophuis traz da
biblioteca alguns livros para raparigas. Gostei imenso da
série - Joop-ter-Heul - e acho bonito tudo o que escreve
Gissy von Marxveldt. Já li quatro vezes as Alegrias de
Verão e rio-me sempre com a mesma vontade das
situações cômicas.
Também voltamos aos estudos : dedico-me muito ao
francês e, só de verbos, meto todos os dias cinco dos irregulares na cabeça. Peter faz os
exercícios de inglês
a suspirar. Recebemos livros escolares novos. Eu tinha trazido de casa um sortido de lápis,
cadernos, etiquetas, borrachas de safar, etc.
Ouço muitas vezes a emissora de Orange. Ainda há
pouco acabou de falar o príncipe Fernando. Contou que
estão à espera de outro bebé... Aqui todos se admiram
da minha afeição aos reis holandeses. Há dias falou-se
dos meus estudos e que eu ainda tinha muito que aprender.
Por consequência atirei-me mais ao trabalho. Não quero
voltar, mais tarde, ao primeiro ano. Também veio à baila
que eu não tinha lido nada ultimamente. A mãe está a ler - Heeren, Vrouwen, Knechten -. 
Mas este livro não me querem deixar ler. Para o poder ler tenho de ficar, antes
de mais nada, tão esperta e culta como a minha inteligente
e talentosa irmã. Falou-se também sobre filosofia,
psicologia e fisiologia (estas palavras tão complicadas
fizeram-me ir ao dicionário), coisas de que nada sei.
Oxalá no próximo ano já seja menos ignorante.
Verifiquei uma coisa desastrosa, é que para o Inverno
só tenho um vestido de mangas compridas e três "gilets".
O pai deu-me licença para fazer uma camisola de lã
branca de carneiro. A lã já não está grande coisa, mas o
principal é que seja quentinha. Muitas roupas nossas estão
nas casas de outras pessoas, mas só depois da guerra
poderemos ir buscá-las, se ainda existir alguma coisa.
Estava eu, outro dia, a escrever precisamente sobre
a sra. van Daan quando ela entrou. Imediatamente fechei
o caderno.
-Então, Anne, deixas-me espreitar?
-Não, sra. van Daan!
-Só a última página, está bem?
-Não, também não!
Ai! Que susto que passei. Era mesmo naquela página
que se lhe faziam referências pouco lisonjeiras.
Tua Anne.

Sexta-feira, 25 de Setembro de 1942
Querida Kitty:
Ontem - visitei - os van Daan, lá em cima, para tagarelar
um bocadinho. De vez em quando tem graça. Comemos
"bolachas de naftalina" (a lata das bolachas está no guarda-roupa,
onde há bolinhas contra a traça) e tomamos
limonada.
Falamos do Peter. Eu disse-lhes que ele, por vezes,
se queria chegar de mais a mim e que isto não me agradava
nada e que eu detestava tais demonstrações. Com modos
paternais perguntaram-me se eu não queria, apesar de
tudo, ser muito amiga do Peter, pois ele gostava de mim.
Pensei de mim para mim : ah!, meu Deus. Mas disse
em voz alta:
-Oh, não!, de maneira nenhuma!
Peter é esquivo como todos os rapazes que não conviveram
bastante com raparigas.
A "comissão do mergulho", formada pelos nossos protetores,
é de facto engenhosa. Ouve o que os senhores
inventaram! Querem fazer chegar notícias nossas ao
sr. van Dijk, um amigo nosso e representante principal da
firma "Travis". Aliás, ele tem também muitas coisas nossas
guardadas em sua casa. Assim escreveram uma carta a
um farmacêutico na Zelândia Meridional com o pedido
de uma informação. Juntaram um envelope que este
cliente utilizará para a resposta. Ora, o endereço da nossa
casa comercial foi escrito à mão por meu pai. Quando a
carta voltar, eles tirar-lhe-ão a resposta do farmacêutico,
meterão uma carta escrita pelo pai e, assim, o sr. van Dijk
terá um sinal de vida nosso. Escolheram a Zelândia, na
fronteira belga, sítio onde se torna mais fácil fazer passar
cartas assim.
Tua Anne.

Domingo, 27 de Setembro de 1942
Querida Kitty:
Outra zanga com a mãe. Não sei já quantas foram
ultimamente! A maior parte das vezes não nos entendemos.
Também com a Margot já não tenho a mesma intimidade.
Não que na nossa família se façam "cenas" como lá em cima,
mas, mesmo assim, não acho graça nenhuma a isto. Tenho
uma maneira de ser diferente da de minha mãe e de
Margot. Sempre compreendi melhor as minhas amigas
do que compreendo a minha própria mãe. É lamentável.
A sra. van Daan está outra vez de mau humor. fecha
à chave a maior parte das suas coisas destinadas ao uso
da casa. Eu gostava tanto que a mãe lhe pagasse na mesma
moeda!
Há pais a quem parece dar prazer especial não só
educar os seus próprios filhos mas, também, os filhos dos
outros. A esta categoria pertencem os van Daan. a Margot
já não precisa de ser educada, é o amor, a bondade e a
Inteligência em pessoa. Mas o que ela tem a mais tenho
eu a menos! A cada passo, durante as refeições, chovem
recomendações sobre a minha pessoa e eu, de vez em
quando, não posso deixar de dar uma das minhas respostas
atrevidas, malcriadas até por vezes. O pai e a mãe
tomam sempre o meu partido e sem eles eu não me aguentava
na luta. Muitas vezes, os dois repreendem-me, ou
por eu falar de mais, ou por meter o nariz em tudo, ou
por não ser bastante modesta, mas não há meio de me
corrigir destes defeitos. Se o pai não fosse sempre tão
paciente eu já não tinha esperanças de ser capaz de me
emendar. E, vistas bem as coisas, os meus pais não exigem
muito de mim.
Quando acontece eu servir-me de pouca hortaliça, porque gosto pouco, mas de muitas batatas,
os van Daans
ficam todos enfurecidos com tais "mimalhices".
-Mais um bocado de hortaliça-diz a senhora
imediatamente.
-Obrigada, só queria batatas-respondo eu.
-Hortaliça faz bem à saúde, a tua mãe também assim
pensa. Vá, mais um bocadinho.
Insiste até que meu pai intervém e põe termo àquilo.
-Havias de ter visto como as coisas se passavam antigamente
em minha casa.-diz irritada-Coisas destas não
se admitiam. Isto não é educação! Estão a estragar a Anne.
Ai, se fosse minha filha!
É com estas palavras que termina sempre os seus discursos.
Ainda bem que não sou filha dela!
Ainda sobre educação. Ontem seguia-se um silêncio
depois de a sra. van Daan ter acabado o seu sermão. Por
fim meu pai disse :
-Acho a Anne uma rapariga bem-educada. Veja, ela
já compreendeu que o melhor é não responder aos seus
longos discursos. E no que respeita à hortaliça, só lhe digo
a si: vice-versa!
Ela sentiu-se totalmente vencida. Com aquele "vice-versa"
meu pai quis referir-se às pequenas porções que
ela própria costuma comer. Para se justificar, ela disse que
muita hortaliça à noite, como vai logo para a cama, lhe
fazia mal à digestão. Mas o que eu queria era que ela me
deixasse em paz! É divertido ver como a sra. van Daan
cora por tudo e por nada. Eu não, e ela inveja-me por isso.
Tua Anne.

Segunda-feira, 28 de Setembro de 1942
Querida Kitty:
Ontem não tinha acabado a carta mas tive de a interromper.
Vou contar-te mais outra zanga. Mas primeiro
deixa-me dizer-te que acho horrível e inconcebível que os
adultos se irritem e zanguem com tanta facilidade e por
causa das mais insignificantes bagatelas. Até há pouco
tempo eu julgava que só as crianças se zangavam e que isso
mais tarde já não acontecia. Já se vê, por vezes existem
motivos para grandes discussões. Mas eles ofendem-se uns
aos outros constantemente, com palavras veladas e isto
torna-se insuportável. Já me devia ter habituado porque
é o mesmo quase todos os dias. Mas não posso ficar indiferente
se as discussões (assim chamam àquilo, que é
apenas "barulho") giram em volta da minha pessoa. Dizem
de mim cobras e lagartos : a minha aparência, o meu
carácter, as minhas maneiras, tudo é remexido, criticado
e... condenado. Eu não estava habituada a ouvir palavras
duras e gritos. E agora querem que engula tudo isso?
Não, não posso! E não tenciono engolir tudo. Hei-de
mostrar-lhes que a Anne não é tola. Ainda se hão-de
admirar e calar o bico! Eles é que precisavam de ser
educados, não eu. De cada vez fico mais espantada com
tanta falta de correção e tanta estupidez (a sra. van Daan!).
Mas hei-de me habituar também a isto e qualquer dia
ela há-de ouvir-me. Então serei de facto tão mal-educada,
atrevida, teimosa, estúpida e preguiçosa como me querem
fazer ver os de lá de cima. Bem sei que tenho muitos defeitos
e fraquezas, mas os de cima exageram de uma maneira
escandalosa.
Se tu soubesses Kitty como eu fervo cá por dentro quando oiço tantos insultos! Qualquer dia a
minha raiva
acumulada explode!
Se calhar estou a aborrecer-te, mas não posso deixar
de te contar ainda uma conversa à mesa, que foi muito
interessante e divertida. Estava-se a falar da grande modéstia
do Pim (Pim é a alcunha do pai). É tão evidente nele
a modéstia que até as pessoas mais broncas a notam. De
repente a sra. van Daan, que relaciona tudo, mas mesmo
tudo, consigo própria, disse :
-Eu também sou muito modesta, muito mais modesta
do que o meu marido.
O sr. van Daan quis atenuar esta frase e disse com
calma :
-Não quero ser muito modesto, porque creio que as
pessoas vaidosas vão muito mais longe na vida.
E depois dirigiu-se a mim:
-Não sejas demasiado modesta, Anne, não te servirá
de nada.
A mãe concordou, mas a Sra. van Daan teve que meter
de novo o bedelho e agora, em vez de falar para mim,
dirigiu-se aos meus pais :
-Vocês têm uma maneira estranha de dizer as coisas
à Anne. No meu tempo de rapariga isso era impossível.
Mas mesmo hoje não é assim que se educam os filhos,
excepto em famílias modernas como a vossa.
Com isso ela quis atacar o método de educação de
minha mãe, tantas vezes discutido. Estava vermelha como
fogo. Quando uma pessoa ferve daquela maneira quase
que já perdeu o jogo de antemão. A mãe, que estava muito
calma, quis pôr termo à discussão e disse :
-Sra. van Daan, acho também melhor não se ser
muito modesto. Meu marido, a Margot e o Peter são de
facto modestos de mais, seu marido, a senhora, Anne e eu
não somos precisamente vaidosos, mas não deixamos fazer
o ninho atrás da orelha.
-Mas eu sou modesta, sra. Frank! Como se atreve a
dizer o contrário?
A mãe :
-Não é precisamente vaidosa, sra. van Daan, mas
acho que modesta também não é.
A sra. van Daan:
- Então, já agora, gostava de saber quando é que
não sou modesta. Se não cuidasse um bocado de mim,
morreria provavelmente de fome. Sou tão modesta como
seu marido.
Este auto-elogio fez com que minha mãe desse uma
gargalhada, o que irritou a "pobrezinha" de tal forma
que continuou a falar e a falar sem conseguir acabar.
Por fim atrapalhou-se de tal modo que perdeu o fio à
meada e, toda ofendida, levantou-se para sair do quarto.
Por acaso o seu olhar caiu sobre mim. Mal ela tinha virado
as costas, eu pus-me a abanar a cabeça, de um modo
meio piedoso, meio irônico, quase sem querer. Ela, ao
ver-me assim, já não saiu e começou a berrar, numa
linguagem feia e vulgar como uma velha e gorda peixeira.
Aquilo é que era um espetáculo divertido! Se eu soubesse
desenhar, tinha-a eternizado naquela atitude; que modelozinho
tão ridículo!
Uma coisa te vou dizer: se quiseres conhecer bem uma
pessoa, tens de te zangar uma vez com ela. Só então é
que podes julgá-la.
Tua Anne.

Terça-feira, 28 de Setembro de 1942
Querida Kitty:
Há sempre qualquer coisa para contar nesta casa!
Como não temos banheira, lavamo-nos numa celha.
E como no escritório (quero dizer em todo o andar de
baixo) há água quente, vamos os sete alternadamente para
baixo. Mas somos muito diferentes uns dos outros, no que
respeita ao pudor. Por isso, cada um, conforme a sua
maneira de ser, escolheu um ou outro lugar para o acto
de limpeza. Peter toma banho na cozinha, embora esta
tenha uma porta de vidro. Antes de começar a lavar-se,
avisa toda a gente e pede-nos que não passemos por
aquela porta durante uma meia hora.
O sr. van Daan prefere tomar banho em cima. Acha
que vale a pena carregar com a água quente, escada acima,
para poder gozar as comodidades do seu quarto. A sra. van
Daan, até hoje, ainda não tomou banho. Quer primeiro
estudar qual o lugar mais conveniente para ela. O pai
prefere o escritório particular e a mãe vai para detrás do
resguardo do fogão, na cozinha. A Margot e eu escolhemos
o escritório grande, para podermos chapinhar à vontade.
Todos os sábados, de tarde, fechamos as cortinas e assim,
no lusco-fusco, lavamo-nos. A que fica à espera, observa,
através de uma fenda das cortinas, o que se vai passando
lá fora e diverte-se com o vaivém tão patusco das pessoas.
Mas de há uma semana para cá, já não me agrada aquele
quarto de banho e tenho andado à procura de um sítio
mais confortável. O Peter teve uma ideia boa: propôs
que eu levasse as minhas coisas de banho para o grande
W.C. que pertence ao escritório. Aí, eu podia estar sozinha,
podia acender a luz, fechar a porta e, até, despejar a água
sem auxílio de ninguém. Hoje inaugurei o meu novo quarto de banho. Estou satisfeita.
Ontem esteve o picheleiro no andar de baixo para
deslocar os canos que ligam à canalização da nossa moradia.
Isto tinha que ser feito. De outro modo podia, no Inverno,
que talvez venha a ser rigoroso, gelar a água nos canos.
Essa visita foi para nós tudo, menos agradável. Não só
porque não se podia abrir uma torneira, mas também
porque não nos podíamos servir do W.C. Talvez não seja
lá muito elegante contar-te o que fizemos para remediar
o mal. Mas não sou tão pudica que não possa falar em tais
coisas. O pai e eu tínhamos tomado providências. Guardamos
alguns frascos de conserva de que agora nos servimos.
Forçosamente não podiam ser despejados e tinham de
ficar nos quartos. Mas achei isso menos repugnante do que
estar todo o dia quieta, sem poder falar. Tu não podes
imaginar quanto isto me custou a mim, que tanto gosto
de palrar. Vulgarmente já somos obrigados a falar muito
baixinho. Mas não falar mesmo nada e ficar sentada todo
o dia sem me mexer, acho que é dez vezes pior! Tinha o
rabo espalmado e nem o sentia; doeu-me durante três
dias. Passamos então a fazer ginástica todas as noites, o
que nos foi compondo.
Tua Anne.

Quinta-feira, 1 de Outubro de 1942
Querida Kitty:
Ontem apanhei um susto terrível. às oito tocou a
campainha e eu já estava a imaginar o pior-já sabes o
que quero dizer com isto. Mas todos disseram que aquilo
deviam ter sido garotos, e eu acalmei.
Agora os dias passam num silêncio! Na cozinha do
escritório trabalha um farmacêutico, o sr. Lewin, que está
a fazer experiências para a firma. Conhece bem a casa
toda, e andamos sempre com o receio de que lhe venha
a ideia de entrar no laboratório antigo. Estamos muito
quietos. Quem, há três meses, teria adivinhado que a Anne,
sempre tão mexida, tinha de estar tanto tempo quieta
numa cadeira, sem falar?
No dia 26, a sra. van Daan fez anos: não houve grande
festa. Demos-lhe flores, umas prendinhas e um jantar
melhorado. Já é velha tradição o marido oferecer-lhe
cravos vermelhos. Falando da sra. van Daan, quero confessar-te
uma coisa. As suas tentativas de "flirtar" com
meu pai aborrecem-me do fundo do coração. Ela passa-lhe
a mão sobre a cara e o cabelo e mostra-lhe com preferência
as suas "lindas" pernas. Faz esforços para ser espirituosa
e tenta, sempre que pode, chamar a atenção do Pim sobre
ela. Pim não a acha bonita nem simpática e as seduções
dela deixam-no de todo indiferente. Não sou ciumenta,
palavra, mas aquilo custa-me a suportar. Já lhe disse a
ela na cara que minha mãe não se porta assim com o
sr. van Daan.
O Peter, por vezes, tem piada. Temos ambos a paixão
das brincadeiras de Carnaval e divertimo-nos bastante
com isso. Outro dia apareceu ele encafuado num vestido
muito apertado de sua mãe, com um chapelinho na cabeça.
Eu vesti o fato dele e pus a sua boina; os adultos quase
que morriam de tanto rír e nós estivemos também
divertidíssimos.
Elli comprou no armazém saias para mim e para a
Margot, de má qualidade e muito caras. E mais alguma
coisa engraçada ela nos prometeu: vai tratar de nos arranjar
lições de estenografia por correspondência. No ano
que vem seremos estenógrafas perfeitas. Que bom a gente
poder aprender esta espécie de "código" secreto.
Tua Anne


Nenhum comentário: