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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank - [parte 2]

30 Set 2013
Terça-feira, 30 de Junho de 1942
Querida Kitty:
Até hoje ainda não tive tempo para escrever. Quinta-feira
estive toda a tarde em casa de gente amiga. Sexta
tivemos visitas e assim por diante, até hoje. Harry e eu
conhecemo-nos melhor nesta semana. Contou-me muita
coisa dele. Veio cá para a Holanda com os avós. Os pais
estão na Bélgica.
Harry tem andado, até agora, com uma outra rapariga,
a Fanny. Ela é um modelo exemplar de meiguice e de
enfado. Desde que o Harry me conhece a mim, descobriu
que quase adormece ao lado de Fanny. Sou para ele uma
espécie de estimulante. Nunca a gente sabe para o que
é capaz de servir.

Sábado, a Jopie dormiu cá em casa. A tarde de domingo
passou-a com a Lies e eu aborreci-me de morte. à noite
devia vir o Harry, mas às seis telefonou-me:
-Aqui, Harry Goldberg. Por favor posso falar com
a Anne?
-Sou eu mesma.
-Boa noite Anne. Como estás?
-Bem, obrigada.
-Infelizmente não posso ir aí à noite. Mas queria
muito falar contigo. Podes descer, daqui a dez minutos?
-Está bem. Até já.
Mudei num instante de roupa e dei um jeito ao cabelo.
Depois pus-me à janela, toda nervosa. Finalmente, veio.
É espantoso, mas não me precipitei logo escada abaixo.
Esperei calmamente que ele tocasse à campainha. Depois
desci. Saímos e ele foi direito ao assunto.
- Ouve, Anne, minha avó acha que tu és nova de mais
para mim. Acha que eu devia virar-me de novo para a Fanny Lours. Se calhar soube que eu já
não quero saber
da Fanny para nada.
-Então, zangaste-te com ela?
-Não, pelo contrário. Eu disse-lhe que não ligamos
lá muito bem um com o outro e que, por isso, não vale
a pena encontrarmo-nos tantas vezes. Que pode continuar
a vir à nossa casa e que também eu continuarei a ir à dela.
Desconfiei que a Fanny andasse com outros rapazes, mas
afinal não anda. Meu tio achou que devia pedir-lhe desculpa,
mas não me apetece. Achei preferível acabar assim.
A avó insiste; quer que eu mantenha a amizade com a
Fanny e que não comece a andar contigo, mas eu quero
lá saber disso para nada. Gente velha tem por vezes ideias
à antiga, que me não podem interessar. Não há dúvida
de que dependo de minha avó, mas, em certa medida, ela
também depende de mim. às quartas estou sempre livre.
Os avós julgam que vou às aulas de trabalhos manuais
mas eu tenho ido quase sempre às reuniões dos sionistas.
Não somos sionistas, mas interessava-me conhecer aquilo.
Ultimamente não me sentia à vontade naquelas reuniões
e resolvi não tornar a ir. Assim podemos encontrar-nos
nas quartas e sábados, à tarde e à noite, e no domingo,
à tarde, e talvez mais vezes ainda.
-Mas os teus avós não estão de acordo. Não deves
fazer isso às escondidas.
-No amor ninguém manda.
Passamos pela livraria e dobramos a esquina. E lá
estava o Peter Wessel com mais dois rapazes. Era a primeira
vez que o tornava a ver e fiquei cheia de alegria.
Harry e eu andamos e tornamos a andar em volta do bairro
e, por fim, combinamos que ele me esperasse na tardinha
seguinte às sete menos cinco, em frente da sua casa.
Tua Anne.


Sexta-feira, 3 de Julho de 1942
Querida Kitty:
Ontem esteve cá o Harry. Quis conhecer os meus pais.
Eu tinha ido buscar torta, doces e bolachas e tomamos
chá. Ao Harry e a mim não nos apetecia nada ficar em casa
quietinhos. Saímos, demos um passeio e eram oito e dez
quando ele me deixou em casa.
O pai estava zangadíssimo por eu chegar tão tarde,
que era muito perigoso, para judeus, andar pelas ruas
depois das oito.
Prometi de hoje em diante estar sempre em casa,
pontualmente, às oito menos dez minutos. Amanhã estou
convidada para ir a casa do Harry. A minha amiga Jopie faz
troça de mim por causa dele. Mas não estou apaixonada. Então
não posso ter um amigo? Ninguém acha mal que tenha um
amigo ou como costuma dizer a mãe um cavalheiro.
Eva contou-me que o Harry esteve o outro dia em casa
dela e que ela lhe perguntou :
- Quem achas mais simpática,.a Fanny ou a Anne?
-Não tens nada com isso - respondeu ele.
Então não falaram mais no assunto, mas ao despedir-se
o Harry disse:
-A Anne é mais simpática, claro, mas não precisas de
falar nisso a ninguém.
As últimas palavras já foram ditas na rua.
Sinto que o Harry está apaixonado por mim e, para
variar, isto é engraçado. A Margot dizia :
- Um tipo simpático.
- Acho-o também simpático, mais até do que simpático.
A mãe anda encantada com ele.
-Um rapaz bonito, muito gentil e bem educado.
Ainda bem que o Harry agrada tanto a toda a família.
Ele também nos acha a todos muito simpáticos. Só acha
a minha amiga infantil e não deixa de ter razão.
Tua Anne.

Domingo, 5 de Julho de 1942
Querida Kitty:
A festa do fim do período correu lindamente. As minhas
notas não são nada más. A pior nota é um cinco em Álgebra;
tenho dois seis, sete em quase tudo e dois
oitos.
Cá em casa ficaram satisfeitos. Não ligam grande
importância às notas boas ou más, dão mais valor ao bom
comportamento e querem acima de tudo que eu tenha
saúde e seja alegre. Dizem eles que havendo saúde e boa
disposição, o resto vem por si, mas eu gostava de ser uma
boa aluna a valer.
Só me admitiram no liceu condicionalmente por me
faltar ainda o último ano da Escola Montessori. A coisa
foi assim:
Quando todos os alunos judaicos tiveram de mudar-se
para escolas judaicas, o reitor, depois de muito palavriado,
admitiu-me a mim e à Lies, mas com muitas reservas.
E agora não quero desiludi-lo. Minha irmã Margot teve
notas brilhantes, como de costume. Se houvesse louvores
ela passaria - com distinção e louvor, a mais alta classificação, pois é muito inteligente.
O pai, desde que não pode ir ao escritório, passa muito
tempo em casa. Deve ser uma sensação horrível, isto de
uma pessoa se sentir, de repente, posta de parte. O sr.
Koophus tomou conta da - Travis - juntamente com o
sr. Kraler, da firma Kolen & C.o, de que o pai também
era sócio. Quando, há uns dias, andávamos a passear, o
pai disse-me que decerto teríamos de - mergulhar -. Disse que nos iria custar muito viver
isolados do mundo.
Perguntei porque é que falava assim.
-Bem sabes - disse ele - que há mais de um ano estamos
a levar o vestuário, a mobília e os comestíveis para
casa de outras pessoas. Não queremos deixar cair o que é
nosso nas unhas dos alemães. E ainda menos queremos,
nós próprios, cair-lhes nas mãos. Por isso não vamos esperar
até que nos venham buscar.
O rosto muito sério do meu pai inquietou-me.
-Então, quando, pai?
-Não te preocupes, minha filha. Sabê-lo-ás a tempo.
Goza a tua liberdade enquanto for possível.
Foi tudo. Oxalá que o tal dia ainda venha longe!
Tua Anne.
Quarta-feira, 8 de Julho de 1942
Querida Kitty:
Entre domingo de manhã e hoje foi como se tivessem
passado muitos anos. Aconteceram imensas coisas. É como
se a Terra estivesse toda ela transformada. Contudo, Kitty,
ainda estou viva, e isto é o principal. Sim, estou viva, mas
não queiras saber de que maneira. É possível que hoje
nem me entendesses, por isso, antes de mais nada, vou-te
contar o que se passou.
às três horas (Harry tinha saído naquele mesmo
momento e queria voltar mais tarde) tocou a campainha.
Eu não tinha ouvido nada porque estava, numa preguiça
agradável, estendida na cadeira de repouso, a ler. Nisto
entrou a Margot, toda excitada.
- Anne, recebemos uma convocação das SS para o
pai - cochichou. - A mãe já foi ter com o sr. van Daan.
Senti um medo horrível. Uma convocação para o pai...
Toda a gente sabe o que isto significa: campo de concentração... Vi surgir diante de mim celas
solitárias para onde queriam levar o meu pai!
- Não pode ser - disse Margot categòricamente quando
nos encontramos as duas na sala de estar, à espera da mãe.
-A mãe foi a casa dos van Daans para combinar se não
seria melhor - mergulhar - já amanhã. Os van Daans vão
conosco, somos, ao todo, sete.
Um grande silêncio. Não fomos capazes de dizer mais
uma palavra. A ideia de que o pai andava em visita aos
seus protegidos no asilo dos velhos judeus, sem suspeitar
coisa alguma, a demora da mãe, o calor, a tensão... tudo
isso nos emudecia.
De repente, tocou a campainha.
-É o Harry - disse eu.
- Não abras!
A Margot quis deter-me, mas já não foi preciso. Ouvimos
a mãe e o sr. van Daan a falar com o Harry. Depois
de ele se ter ido embora, entraram e fecharam a porta.
A cada toque da campainha ou Margot ou eu tínhamos
de descer sem fazer o menor ruído, para ver se era o pai.
Não devíamos deixar entrar mais ninguém. Mandaram-nos,
às duas, sair do quarto. O van Daan queria falar a sós com
a mãe. Enquanto esperávamos no nosso quarto, a Margot
disse-me que a convocação não tinha sido para o pai mas
sim para ela. Apanhei, de novo, um susto horrível e desatei
a chorar desesperadamente. A Margot tem dezesseis anos.
E eles obrigam raparigas assim a partir sozinhas. Felizmente
ela não se há de separar de nós. A mãe já o tinha dito e
as palavras do pai, quando me falou em - mergulharmos -,
deviam querer dizer a mesma coisa.
- Mergulhar -! Onde havemos nós de - mergulhar -?
Na cidade, no campo, num edifício qualquer, numa cabana,
quando, como, onde? Estas perguntas não me era permitido
fazê-las em voz alta mas andavam-me constantemente
na cabeça.
Margot e eu começamos a meter nas pastas da escola
o que nos parecia mais necessário. A primeira coisa em que
peguei foi neste caderno, depois meti ao calhar: "bigondis",
lenços, livros escolares, um pente e cartas velhas. Ao
lembrar-me de que íamos - mergulhar -, meti ainda na pasta
coisas inconcebíveis mas não estou arrependida.
Recordações valem mais do que vestidos.
às cinco horas o pai chegou finalmente. Telefonou ao
sr. Koophuis e pediu-lhe que viesse à noite a nossa casa.
O sr. van Daan foi buscar a Miep que veio e meteu sapatos,
vestidos, casacos e roupas brancas numa malinha. Prometeu
voltar à tardinha. Depois disso reinou o silêncio na nossa
casa. Ninguém quis comer. O calor ainda apertava. Parecia-me
tudo tão estranho!
O quarto grande, no andar de cima, estava alugado
a um tal sr. Goudsmit, um homem divorciado, de mais
ou menos trinta anos. Como nesse domingo parecia não
ter nada que fazer, foi ficando conosco até às dez horas,
não conseguimos despedi-lo antes. às onze horas chegaram
a Miep e o Henk san Santen. A Miep trabalha, desde 1933, no escritório do pai e tinha-se
tornado uma nossa
amiga fiel, assim como o seu marido Henk, com quem
casou há pouco. Na mala de Miep desapareceram sapatos,
meias, livros e roupas brancas e também nos bolsos fundos
do Henk. às onze e meia saíram carregados. Eu, cheia
de sono, já não me aguentava em pé e, embora soubesse
que era aquela a última noite que passava na minha casa,
adormeci num instante. Na manhã seguinte a mãe acordou-me
às cinco e meia. Felizmente já não estava tanto
calor como no domingo. Uma chuvinha, miúda, quente,
caiu todo o dia. Vestimo-nos todos com tanta roupa como
se fôssemos meter-nos num frigorífico. Assim, foi-nos
possível trazer para cá uma data de roupas. Um judeu
na nossa situação não podia correr o risco de andar na rua
com uma grande mala. Eu trazia duas camisas, dois pares
de meias, três calcinhas e um vestido leve, com saia e
casaco por cima e ainda mais um casaco comprido de
verão. Calcei os meus melhores sapatos, pus cachecol, boina
e ainda mais coisas. Mesmo antes de sair de casa já me
sentia quase sufocada, mas ninguém quis saber disso.
A Margot meteu mais livros de estudo na pasta, foi
buscar a bicicleta e ia pedalando atrás da Miep, para
qualquer parte, que me era desconhecida. É que eu ainda
não sabia qual era o lugar misterioso onde nos havíamos
de abrigar... às sete e meia saímos e batemos a porta.
Só me despdi de Mohrchen, o meu querido gatinho, que
havia de encontrar um bom refúgio num dos vizinhos, se
o sr. Goudsmit cumprisse este nosso desejo que lhe deixamos
ficar escrito num papelinho.
Na mesa da cozinha ficou meio quilo de carne para
o gato, na mesa da sala ainda estava a louça do pequeno
almoço. As roupas das camas arejavam nas janelas. Tudo
isso dava a impressão de termos deixado a casa precipitadamente.
Mas era-nos indiferente o que os outros podiam
pensar. Queríamos desaparecer e chegar sãos e salvos ao
nosso destino.
Amanhã continuo!
Tua Anne.

Quinta-feira, 9 de Julho de 1942
Querida Kitty:
Assim corremos debaixo da chuva, a mãe, o pai e eu,
cada um com uma pasta e uma saca de compras completamente
cheia, sabe Deus com quê. Os operários que iam
para o trabalho olhavam-nos. Bem se lhes lia nos rostos
que tinham pena de nós por irmos tão carregados e por
não nos deixarem andar nos carros elétricos. A nossa
estrela amarela no braço falava por si. Pelo caminho fora,
os pais contaram-me, tintim-por-tintim, como nascera o
plano do nosso esconderijo. Havia já meses que parte da
nossa mobília e do nosso vestuário tinha sido posta a salvo.
Se não houvesse complicações, estaríamos prontos para
desaparecer no dia 16 de Julho. Por causa da convocação
as coisas anteciparam-se uns dez dias e, por isso, os quartos
que íamos ocupar ainda não estavam preparados como
devia ser, mas tínhamos de nos conformar. O esconderijo
é na casa comercial do pai. Para quem está de fora, tudo
isto é difícil de compreender. Por isso vou explicar melhor.
O pai nunca teve muitos empregados. Os de agora eram
o sr. Kraler, o sr. Koophuis, a Miep e Elli Vossen, a datilógrafa
de vinte e três anos. Todos sabiam que vínhamos.
Só o sr. Vossen, o pai da Elli, que trabalha no armazém,
e os dois criados é que não estão no segredo.
O edifício é assim: no rés do chão há um grande armazém
que também serve para a expedição. Ao lado da
entrada para o armazém há a verdadeira porta de entrada.
Passada a porta, sobe-se por uma escada de poucos degraus,
até uma outra porta onde, sobre vidros foscos, existiu em
tempos, em letras pretas, a palavra "escritório". Trata-se do escritório grande, muito grande
mesmo, muito claro
e atravancado de móveis. Nele trabalham, durante o dia
a Miep, a Elli e o sr. Koophuis. Através de um quarto
de passagem que serve de vestiário, onde há um grande
armário e um cofre à prova de fogo entra-se num grande
quarto que dá para as traseiras, onde antes o sr. Kraler
trabalhava com o sr. van Daan. Agora só lá ficou o sr. Kraler.
Pode também passar-se do corredor diretamente para
este quarto, atravessando uma porta de vidro que se
pode abrir por dentro com facilidade, mas que dificilmente
se abre do lado de fora. Do escritório do sr. Kraler,
passa-se, através do corredor e subindo quatro degraus, à
mais bonita sala da casa, o escritório particular. Móveis
de luxo, escuros, chão revestido de oleado e com tapetes;
um rádio, candeeiros catitas, vistosos, tudo estupendo.
Ao lado há uma cozinha grande, airosa, com um cilindro
de água quente e dois fogareiros a gás. E, ao lado da
cozinha, o W. C. Isto é o primeiro andar.
Do corredor comprido, uma escada de madeira conduz
a um vestíbulo que acaba noutro corredor. Há uma
porta à direita e outra à esquerda. A da esquerda conduz
à parte da frente da casa onde se encontram os armazéns,
as águas-furtadas e o sótão. No edifício há ainda uma
outra escada comprida, íngreme de mais, perigosa, tipicamente holandesa.
A porta da direita conduz a um anexo. Ninguém podia
nem sequer suspeitar que, para além desta porta simples,
pintada de cinzento, ainda se encontrariam escondidos muitos quartos. Aberta a porta, sobe-se
um degrau, e
está-se dentro do anexo. Em frente da entrada há uma escada
íngreme. à esquerda, um corredorzito leva a um quarto
que vai ser o quarto de dormir e de estar do casal Frank
e a um outro quartinho : o quarto de trabalho e de
dormir das duas meninas Frank. Ao lado direito da
escada há um quarto sem janelas com lavatório e
um W. C. com uma outra porta que dá para o nosso
quarto.,
Quando se sobe a escada e se abre a porta de cima
fica-se admirado ao ver numa casa tão velha, um quarto
tão grande, bonito e airoso. Neste quarto há um fogão
de gás e uma banca. Aqui estava instalado, até há pouco,
o laboratório da firma. Agora serve de cozinha, de sala
e de quarto de dormir do casal van Daan.
Um quartinho minúsculo de passagem o ladeia também
de Peter van Daan. Como na casa, aqui há águas-furtadas e um
sótão. Vês, agora fiz-te a
apresentação de todo o nosso anexo.
Tua Anne.
Estivemos ocupados durante todo o dia. Até quarta feira nem tempo tive para pensar nesta
grande reviravolta que se deu na
minha vida. Só então, pela primeira vez desde que aqui
chegamos, consegui arranjar tempo para ficar em mim,
para te descrever o que tinha acontecido e para falar no
que ainda poderá vir a acontecer.
Tua Anne.

Sexta-feira, 10 de Julho de 1942
Querida Kitty:
Se calhar aborreci-te mesmo, com a descrição extensa
da casa. Mas acho que deves saber onde nos aninhamos.
E agora deixa-me continuar, pois ainda não acabei. Quando
chegamos a Prinsengracht, a Miep fez-nos subir depressa
para o anexo e fechou a porta atrás de nós. Cá estávamos.
Margot tinha chegado muito mais depressa de bicicleta
e já estava à nossa espera. O nosso quarto de estar e os
outros também pareciam arrumos atravancados. A desordem
era indescritível! Os caixotes e as malas que, no decorrer
dos últimos meses, se tinham mandado para aqui,
alastravam numa grande confusão. O quartinho, apinhado
até ao teto com camas e roupas brancas. Se queríamos
dormir à noite em camas bem feitas, tínhamos de deitar
já mãos à obra. A mãe e a Margot não foram capazes de
mexer numa palha. Atiraram-se para cima dos colchões;
sentiam-se muito infelizes. O pai e eu, os dois
"arrumadores" da família, desatamos a trabalhar. Despejamos as
malas e os caixotes, colocamos tudo nos sítios próprios,
martelamos, esfregamos, e quando a noite chegou caímos, mais
mortos que vivos, nas camas limpinhas. Não tomamos uma só
refeição quente durante todo o dia. Também não era
preciso. A mãe e a Margot estavam nervosas de mais para comer e o pai e eu não tivemos tempo.
Na terça-feira de
manhã continuamos. A Elli e a Miep fizeram as compras
com os nossos talões de racionamento, o pai melhorou
a ocultação das luzes que tinha ficado imperfeita e
esfregamos os azulejos da cozinha. Estivemos todos bem.
Tua Anne.

Sábado, 11 de Julho de 1942
Querida Kitty :
O pai, a mãe e a Margot ainda não conseguiram habituar-se
ao sino da - Torre-Oeste -, que toca de quarto em
quarto de hora. Eu já me habituei, até acho bonito. Principalmente de noite tem algo de calmante
para mim.
Decerto gostavas de saber se este refúgio me agrada.
Para ser franca, ainda não sei. Creio que nunca me sentirei
aqui como em nossa casa. Mas com isto não quero dizer
que o acho lúgubre ou triste. Por vezes quer-me parecer
que estou numa pensão estranha. Uma concepção singular do
"mergulhar" não achas? Esta casa é realmente um esconderijo ideal. Apesar de ser um bocado
úmida, torta e
sinuosa, será difícil encontrar coisa mais confortável em
Amsterdã ou mesmo em toda a Holanda.
O nosso quarto até agora estava nu completamente.
O pai trouxe toda a minha coleção de postais de estrelas
de cinema e de vistas, e eu transformei-os, com cola e
pincel, em lindos quadros para as paredes. Agora o quarto
tem um aspecto alegre. Logo que cheguem os van Daans
havemos de construir armarinhos para as paredes e outras
coisas úteis com a madeira que está no sótão.
A Margot e a mãe vão-se habituando. Ontem, pela
primeira vez, a mãe quis cozinhar. Sopa de ervilhas!
Mas enquanto tagarelava em baixo esqueceu-se da sopa
por completo, e esta esturrou toda, as ervilhas ficaram
negras como carvão e era impossível despegá-las do fundo
da panela. É pena que eu não possa contar esta história
ao meu professor Kepler... teoria da hereditariedade.
Ontem à noite fomos todos ao escritório particular para
ouvir a emissão da B. B. C. Estava com muito medo de
que alguém na vizinhança pudesse dar por ela e supliquei
ao pai que voltasse conosco para cima. A mãe compreendeu-me
e veio comigo. Estamos sempre com receio de que
alguém nos possa ver ou ouvir. Logo no primeiro dia
fizemos cortinas. São simplesmente retalhos de diferentes
formas e cores, ajuntados e cosidos pelo pai e por mim.
Estas peças de luxo estão pregadas aos caixilhos das janelas
com "punaises" e aí ficarão enquanto durar o nosso
"mergulho".
à direita da nossa habitação há uma grande casa
comercial e à esquerda uma carpintaria. Nestes edifícios
não fica ninguém depois das horas de trabalho, mas nunca
se sabe ao certo se os nossos ruídos não chegam a ouvir-se.
Por isso proibimos a Margot, que anda terrivelmente
constipada, de tossir de noite. Coitada da rapariga,
volta e meia obrigam-na a engolir codaína. Na terça-feira
chegarão os van Daans. Estou contente. Será mais agradável assim e menos monótono. Esta
calma enerva-me, principalmente
de noite; muito gostava eu que algum dos nossos protetores
também aqui dormisse. Aflige-me a ideia de não se
poder sair daqui e tenho medo de que nos descubram
e nos fuzilem. É isto que pesa sobre mim de um modo
horrível. Durante o dia não nos podemos mexer à vontade.
não podemos pisar o chão com força e temos quase de
cochichar em vez de falar, pois lá em baixo, no armazém,
não nos devem ouvir. Desculpa. Estão a chamar-me.
Tua Anne.

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