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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 25]


Amélia, com a costura caída nos joelhos, sentindo os seus dois amigos ao pé, aqueles dois colossos de ciência e de santidade, abandonava-se ao encanto da hora suave, olhando a quinta onde as árvores jà empalideciam. Pensava no futuro; ele aparecia-lhe agora fácil e seguro; era forte, e o parto, com a presença do doutor, seria apenas uma hora de dores; depois, livre daquela complicação, voltaria para a cidade e para a mamã... E então uma outra esperança, que nascera das conversas constantes do abade sobre João Eduardo, vinha bailar-lhe na imaginação. Por que não?... Se o pobre rapaz a amasse ainda, e perdoasse!... Ele nunca lhe repugnara como homem, e seria um casamento esplêndido agora que ele tinha a amizade do Morgado. Dizia-se que João Eduardo ia ser o administrador da casa... E entrevia-se vivendo nos Poiais, passeando na caleche do Morgado, chamada para jantar por uma campainha, servida por um escudeiro de libré... Ficava muito tempo imóvel, banhada na doçura desta perspectiva, enquanto o abade e o doutor ao fundo do terraço pelejavam sobre a doutrina da Graça e da Consciência, e monotonamente a água das regas murmurava no pomar.
Foi por este tempo que D. Josefa, inquieta de não ver aparecer o senhor pároco, mandara expressamente o caseiro a Leiria, pedir a sua senhoria a esmola duma visita. O homem voltara com a espantosa notícia de que o senhor pároco partira para a Vieira, e não viria senão daí a duas semanas. A velha choramigou de desgosto. E Amélia, nessa noite, no seu quarto, não pôde adormecer - na irritação que lhe dava aquela ideia do senhor pároco a divertir-se na Vieira, sem pensar nela decerto, chalaceando com as senhoras na praia, e andando de serão em serão...
···

Com a primeira semana de Novembro vieram as chuvas. A Ricoça parecia agora mais lúgubre naqueles dias curtos, banhados de água, sob um céu de tempestade. O abade Ferrão, tolhido de reumatismo, já não aparecia na quinta. O doutor Gouveia, depois da visita de meia hora, abalava no seu velho cabriolé. A única distração de Amélia era estar à janela por dentro dos vidros: três vezes vira passar João Eduardo na estrada; mas ele ao avistá-la baixava os olhos ou refugiava-se mais sob o guarda-chuva.
A Dionísia vinha também frequentemente: devia ser a parteira, apesar do doutor Gouveia ter aconselhado a Micaela, matrona duma experiência de trinta anos. Mas Amélia "não queria mais gente no segredo", e além disso Dionísia trazia-lhe as notícias de Amaro, que ela sabia pela cozinheira. O senhor pároco tinha-se achado tão bem na Vieira que se ia demorar até Dezembro. Aquele "procedimento infame" indignava-a: não duvidava que o pároco queria estar longe quando chegassem os transes, os perigos do parto. Além disso era decidido de há muito que a criança havia de ser entregue a uma ama de ao pé de Ourém, que a criaria na aldeia: c agora o tempo chegava, c a ama não estava falada, e o senhor pároco apanhava conchinhas à beira-mar!...
- É indecente, Dionísia, exclama Amélia furiosa.
- Ah! não me parece bem, não. Que eu podia falar à ama... Mas bem vê, são coisas muito sérias... O senhor pároco é que se encarregou de tudo...
- É infame!
Além disso ela descuidara-se do enxoval - e ali estava na véspera de ter a criança, sem um trapo para a cobrir, sem dinheiro para lho comprar! A Dionísia tinha-lhe mesmo oferecido algumas peças de enxoval, que uma mulher que ela tivera em casa lhe deixara empenhadas. Mas Amélia recusara-se a que o seu filho usasse cueiros alheios, trazendo-lhe talvez um contágio de doença ou uma sorte infeliz.
E por orgulho não queria escrever a Amaro.
Além disso as impertinências da velha tornavam-se odiosas. A pobre D. Josefa, privada dos auxílios devotos dum padre, um verdadeiro padre (não um abade Ferrão), sentia a sua velha alma indefesa exposta a todas as audácias de Satanás: a visão singular que tivera de S. Francisco Xavier nu, repetia-se agora com uma insistência pavorosa a respeito de todos os santos: era toda uma corte do Céu, arrojando túnicas e hábitos, e bailando-lhe na imaginação sarabandas em pelo: e a velha estava morrendo da perseguição destes espetáculos dispostos pelo demônio. Reclamara o padre Silvério, mas parecia que um reumatismo geral tolhia todo o clero diocesano; desde o princípio do Inverno o Silvério estava também de cama. O abade da Cortegassa, chamado urgentemente, veio - mas para lhe comunicar a receita nova que descobrira de fazer bacalhau à biscainha... Esta falta dum padre virtuoso dava-lhe um humor feroz, que recaia sobre Amélia numa chuva de impertinências.
E a boa senhora estava pensando seriamente em mandar a Amor pelo padre Brito - quando uma tarde, ao fim do jantar, inesperadamente, o senhor pároco apareceu!
Vinha magnífico, trigueiro do sol e do ar do mar, de casaco novo e botins de verniz. E palrando longamente acerca da Vieira, dos conhecidos que estavam, da pesca que fizera, dos soberbos quinos, fazia passar naquele triste quarto de doente velha todo um sopro vivificante da vida divertida à beira-mar. D. Josefa tinha duas lágrimas nas pálpebras do gozo de ver o senhor pároco, de o ouvir.
- E a mamã passa bem, disse ele a Amélia. Já tem os seus trinta banhos. Ganhou outro dia quinze tostões a uma batotinha que se arranjou... E por cá que têm feito?
Então a velha rompeu em queixumes amargos: Uma solidão! Um tempo de chuva! Uma falta de amizades! Ai! ela estava ali a perder a sua alma naquela quinta fatal...
- Pois eu, disse o padre Amaro traçando a perna, dei-me tão bem que estou com ideias de voltar para a semana.
Amélia, sem se conter, exclamou:
- Ora essa! outra vez!
- Sim, disse ele. Se o senhor chantre me der uma licença de um mês, vou lá passá-lo... Fazem-me uma cama na sala de jantar do padre-mestre, e tomo um par de banhos... Estava farto de Leiria, e daquele aborrecimento... '
A velha parecia desolada. O quê, voltar! Deixá-las ali a estarrecer de tristeza!
Ele galhofou:
- Ora, as senhoras não precisam cá de mim. Estão bem acompanhadas...
- Eu não sei, disse a velha com azedume, se os outros - acentuou com rancor a palavra - se os outros não precisam do senhor pároco... Eu é que não estou bem acompanhada, estou aqui a perder a minha alma... Que as companhias que ai vêm não dão honra nem proveito.
Mas Amélia acudiu para contrariar a velha:
- E de mais a mais o Sr. abade Ferrão tem estado doente... Está com reumatismo. Sem ele a casa parece uma prisão.
D. Josefa deu um risinho de escárnio. E o padre Amaro, erguendo- se para sair, lamentou o bom abade.
- Coitado! Santo homem... Hei de ir vê-lo em tendo vagar. Pois amanhã cá apareço, D. Josefa, e havemos de pôr essa alma em paz... Não se incomode, Sra. D. Amélia, eu sei agora o caminho.
Mas ela insistiu em o acompanhar. Atravessaram o salão sem uma palavra. Amaro calçava as suas luvas novas de pelica preta. E no alto da escada, muito cerimoniosamente, tirando o chapéu:
- Minha senhora...
E Amélia ficou petrificada vendo-o descer muito tranquilo - como se ela lhe fosse mais indiferente que os dois leões de pedra, que embaixo dormiam com o focinho nas patas.
Foi para o quarto chorar de bruços sobre a cama, de raiva e de humilhação. O infame! E nem uma palavra sobre o filho, sobre a ama, sobre o enxoval! Nem um olhar de interesse para o seu corpo desfigurado por aquela prenhez que ele lhe dera! Nenhuma queixa irritada por todos os desprezos que ela lhe mostrara! Nada! Calçava as luvas, com o chapéu do lado. Que indigno!
Ao outro dia o padre voltou mais cedo. Esteve muito tempo fechado no quarto com a velha.
Amélia, impaciente, rondava no salão com os olhos como carvões. Ele apareceu enfim, como na véspera, calçando as suas luvas com um ar próspero.
- Então já? disse ela numa voz que tremia.
- Já, sim, minha senhora. Estive numa praticazinha com a D. Josefa.
Tirou o chapéu, cumprimentando muito profundamente:
- Minha senhora...

 Amélia, lívida, murmurou:
- Infame!
Ele olhou-a, como assombrado:
- Minha senhora... - repetiu.
E, como na véspera, desceu vagarosamente a larga escadaria de pedra.
O primeiro pensamento de Amélia foi denunciá-lo ao vigário-geral. Depois passou a noite escrevendo-lhe uma carta - três páginas de acusações e de lástimas. Mas toda a resposta de Amaro, ao outro dia, mandada verbalmente pelo Joãozito da quinta, foi "que talvez aparecesse por lá na quinta-feira".
Teve outra noite de lágrimas - enquanto na Rua das Sousas o padre Amaro esfregava as mãos, no regozijo do seu "famoso estratagema". E todavia não o concebera ele mesmo; tinha-lhe sido sugerido na Vieira, onde fora para desabafar com o padre-mestre e espalhar a mágoa nos ares da praia; fora lá que ele o aprendera, "o famoso estratagema", numa soirée, ouvindo dissertar sobre o amor o brilhante Pinheiro, premiado em direito e glória de Alcobaça.
- Eu nisso, minhas senhoras, dizia o Pinheiro, passando a mão pela cabeleira de poeta, ao semicírculo de damas que pendiam dos seus lábios de ouro - eu nisso sou da opinião de Lamartine (era alternadamente da opinião de Lamartine ou de Pelletan). Digo como Lamartine: a mulher é igual à sombra: se correis atrás dela, foge-vos; se fugis dela, corre atrás de vós!
Houve um muito bem, exclamado com convicção: mas uma senhora de grandes proporções, mãe de quatro deliciosos anjos todos Marias (como dizia o Pinheiro), quis explicações, porque nunca tinha visto fugir uma sombra.
O Pinheiro deu-as, cientificamente:
- É muito fácil de observar, Sra. D. Catarina. Coloque-se vossa excelência na praia, quando o sol começa a declinar, com as costas para o astro. Se vossa excelência caminha em frente, perseguindo a sombra, ela vai-lhe adiante, fugindo...
- Física recreativa, muito interessante! murmurou o escrivão de direito ao ouvido de Amaro.
Mas o pároco não o escutava; bailava-lhe já na imaginação "o famoso estratagema". Ah! mal voltasse a Leiria, havia de tratar Amélia como uma sombra e fugir-lhe para ser seguido... - E o resultado delicioso ali estava - três páginas de paixão, com manchas de lágrimas no papel.
Na quinta-feira apareceu, com efeito. Amélia esperava-o no terraço, donde estivera desde manhã vigiando a estrada com um binóculo de teatro. Correu a abrir-lhe o portãozinho verde no muro do pomar.
- Então, por aqui! disse-lhe o pároco, subindo atrás dela ao terraço.
- É verdade, como estou sozinha...
- Sozinha?
- A madrinha está a dormir e a Gertrudes foi à cidade... Tenho estado toda a manhã aqui ao sol.
Amaro ia penetrando pela casa, sem responder; diante duma porta aberta parou, vendo um grande leito de dossel, e em redor cadeiras de couro de convento.
- É o seu quarto aqui, hem?
- É.
Ele entrou familiarmente, com o chapéu na cabeça.
- Muito melhor que o da Rua da Misericórdia. E boas vistas... São as terras do Morgado, além...
Amélia cerrara a porta, e indo direita a ele, com os olhos chamejantes:
- Por que não respondeste a minha carta?
Ele riu:
- É boa! E por que não respondeste tu às minhas? Quem começou?
Foste tu. Dizes que não queres pecar mais. Também eu não quero pecar mais. Acabou-se...
- Mas não é isso! exclamou ela pálida de indignação. É que há a pensar na criança, na ama, no enxoval... Não é abandonar-me para aqui!...
Ele pôs-se sério, e com um tom ressentido:
- Peço perdão... Eu prezo-me de ser um cavalheiro. Tudo isso há de ficar arranjado antes de voltar para a Vieira...
- Tu não voltas pra Vieira!
- Quem é que diz isso?
- Eu, que não quero que vás!
Pusera-lhe fortemente as mãos nos ombros, retendo-o, apoderando-se dele: e ali mesmo, sem reparar na porta apenas cerrada, abandonou-se-lhe como outrora.
···
Dai a dois dias o abade Ferrão apareceu restabelecido do seu ataque de reumatismo. Contou a Amélia a bondade do Morgado, que chegara a mandar-lhe todas as tardes, num aparelho de lata com água quente, uma galinha cozida em arroz. Mas era sobretudo a João Eduardo que devia a caridade melhor; todas as suas horas vagas as passava ao pé da cama, lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar, ficando com ele até à uma hora da noite num zelo de enfermeiro. Que rapaz! Que rapaz!
E de repente, tomando as mãos ambas de Amélia, exclamou:
- Diga-me, dá licença que eu lhe conte tudo, que lhe explique?... Que arranje que ele perdoe, e esqueça... E que se faça este casamento, se faça esta felicidade?
Ela balbuciou espantada, toda escarlate:
- Assim de repente... Não sei... Hei de pensar...
- Pense. E Deus a alumie! disse o velho com fervor.
Era nessa noite que Amaro devia entrar pelo portalzinho do pomar de que Amélia lhe dera a chave. Infelizmente tinham esquecido a matilha do caseiro. E apenas Amaro pôs o pé dentro do pomar rompeu pelo silêncio da noite escura um tão desabrido ladrar de cães - que o senhor pároco abalou pela estrada, batendo o queixo de terror.

XXIII

Amaro nessa manhã mandou à pressa chamar a Dionísia, apenas recebeu o seu correio. Mas a matrona que estava no mercado veio tarde, quando ele à volta da missa acabava de almoçar.
Amaro queria saber ao certo e imediatamente para quando estava a coisa...
- O bom sucesso da pequena?... Entre quinze a vinte dias... Por quê, há novidade?
Havia; e o pároco leu-lhe então em confidência uma carta que tinha ao lado.
Era do cônego, que escrevia da Vieira, dizendo "que a S. Joaneira tinha já trinta banhos e queria voltar! Eu, acrescentava, perco quase todas as semanas três, quatro banhos, de propósito para os espaçar e dar tempo, porque cá a minha mulher já sabe que eu sem os meus cinquenta não vai. Ora já tenho quarenta, veja lá você. Demais por aqui começa a fazer frio deveras. Já se tem retirado muita gente. Mande-me pois dizer pela volta do correio em que estado estão as coisas". E num post-scriptum dizia: "Tem você pensado que destino se há de dar ao fruto?"
- Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a Dionísia.
E Amaro ali mesmo escreveu a resposta ao cônego, que a Dionísia devia levar ao correio: "A coisa pode estar pronta daqui a vinte dias. Suspenda por todo o modo a volta da mãe! Isso de modo nenhum! Diga-lhe que a pequena não escreve nem vai, porque a excelentíssima mana passa sempre adoentada".
E traçando a perna:
- E agora, Dionísia, como diz o nosso cônego, que destino se há de dar ao fruto?
A matrona arregalou os olhos de surpresa:
- Eu pensei que o senhor pároco tinha arranjado tudo... Que se ia dar a criança a criar fora da terra...
- Está claro, está claro, interrompeu o pároco com impaciência. Se a criança nascer viva é evidente que se há de dar a criar, e que há de ser fora da terra... Mas aí é que está! Quem há de ser a ama? É isso que eu quero que você me arranje. Vai sendo tempo...
A Dionísia pareceu muito embaraçada. Nunca gostara de inculcar amas. Ela conhecia uma boa, mulher forte e de muito leite, pessoa de confiança; mas infelizmente entrara no hospital, doente... Sabia de outra também, até tivera negócios com ela. Era uma Joana Carreira. Mas não convinha porque vivia justamente nos Poiais, ao pé da Ricoça.
- Qual não convém! exclamou o pároco. Que tem que viva na Ricoça?... Em a rapariga convalescendo as senhoras vêm para a cidade, e não se fala mais na Ricoça.


Mas a Dionísia procurava ainda, arranhando devagar o queixo. Também sabia de outra. Essa morava para o lado da Barrosa, a boa distância... Criava em casa, era o seu ofício... Mas nessa nem falar!
- Mulher fraca, doente?
A Dionísia chegou-se ao pároco, e baixando a voz:
- Ai, menino, eu não gosto de acusar ninguém. Mas, está provado, é uma tecedeira de anjos!
- Uma quê?
- Uma tecedeira de anjos!
- O que é isso? Que significa isso? perguntou o pároco.
A Dionísia gaguejou-lhe uma explicação. Eram mulheres que recebiam crianças a criar em casa. E sem exceção as crianças morriam... Como tinha havido uma muito conhecida que era tecedeira, e as criancinhas iam para o Céu... Daí é que vinha o nome.
- Então as crianças morrem sempre?
- Sem falhar.
O pároco passeava devagar pelo quarto, enrolando o seu cigarro.
- Diga lá tudo, Dionísia. As mulheres matam-nas?
Então a excelente matrona declarou que não queria acusar ninguém! Ela não fora espreitar. Não sabia o que se passava nas casas alheias. Mas as crianças morriam todas...
- Mas quem vai então entregar uma criança a uma mulher dessas?
A Dionísia sorriu, apiedada daquela inocência de homem.
- Entregam, sim senhor, às dúzias!
Houve um silêncio. O pároco continuava o seu passeio do lavatório para a janela, de cabeça baixa.
- Mas que proveito tira a mulher, se as crianças morrem? perguntou de repente. Perde as soldadas...
- É que se lhe paga um ano de criação adiantado, senhor pároco. A dez tostões ao mês, ou quartinho, segundo as posses...
O pároco, agora encostado à janela, rufava devagar nos vidros.
- Mas que fazem as autoridades, Dionísia?
A boa Dionísia encolheu silenciosamente os ombros.
O pároco então sentou-se, bocejou, e estirando as pernas disse:
- Bem, Dionísia, vejo que a única coisa a fazer é falar à tal ama que vive ao pé da Ricoça, à Joana Carreira. Eu arranjarei isso...
A Dionísia falou ainda nas peças de enxoval que já tinha comprado por conta do pároco, dum berço muito barato em segunda mão que vira no Zé Carpinteiro - e ia sair com a carta para o correio, quando o pároco erguendo-se e galhofando:
- Ó tia Dionísia, essa coisa da tecedeira de anjos é uma história, hem?
Então a Dionísia escandalizou-se. O senhor pároco sabia que ela não era mulher de intrigas. Conhecia a tecedeira de anjos há mais de oito anos, de lhe falar e de a ver na cidade quase todas as semanas. Ainda no sábado passado a vira sair da taberna do Grego... O senhor pároco já tinha ido à Barrosa?
Esperou a resposta do pároco, e continuou:
- Pois bem, sabe o começo da freguesia. Há um muro caído. Depois é um caminho que desce. Ao fundo desse corregozito encontra um poço atulhado. Adiante, retirada, há uma casita que tem um alpendre. É lá que ela vive... Chama-se Carlota... Isto é para lhe mostrar que sei, amiguinho!
O pároco ficou toda a manhã em casa, passeando pelo quarto, alastrando o chão de pontas de cigarros. Ali estava agora diante daquele episódio fatal, que até aí fora apenas um cuidado distante - dispor do filho!
Era bem grave entregá-lo assim a uma ama desconhecida, na aldeia. A mãe, naturalmente, havia de querer ir a todo o momento vê-lo, a ama poderia falar aos vizinhos. O rapaz viria a ser, na freguesia, o filho do pároco... Algum invejoso, que lhe cobiçasse a paróquia, poderia denunciá-lo ao senhor vigário-geral. Escândalo, sermão, devassa: e, se não fosse suspenso, poderia como o pobre Brito ser mandado para longe, para a serra, outra vez para os pastores... Ah! se o fruto nascesse morto! Que solução natural e perpétua! E para a criança, uma felicidade! Que destino podia ele ter neste duro mundo? Era o enjeitado, era o filho do padre. Ele era pobre, a mãe pobre... O rapaz cresceria na miséria, vadiando, apanhando o estrume das bestas, remeloso e tosco... De necessidade em necessidade iria conhecendo todas as formas do inferno humano: os dias sem pão, as noites regeladas, a brutalidade da taberna, a cadeia por fim. Uma enxerga na vida, uma vala na morte... E se morresse - era um anjinho que Deus recolhia ao Paraíso...
E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem posto, tecedeira de anjos... Com razão. Quem prepara uma criança para a vida com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos e para as lágrimas... Mais vale torcer-lhe o pescoço, e mandá-la direita para a eternidade bem-aventurada! Olha ele! Que vida a sua, nesses trinta anos atrás! Uma infância melancólica, com aquela pega da marquesa de Alegros; depois a casa na Estrela, com o alarve do tio toucinheiro; e daí as clausuras do seminário, a neve constante de Feirão, e ali em Leiria tantos transes, tantas amarguras... Se lhe tivessem esmagado o crânio ao nascer, estava agora com duas asas brancas, cantando nos coros eternos.
Mas enfim não havia que filosofar: era partir para Poiais e falar à ama, à Sra. Joana Carreira.
Saiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa. Ao pé da ponte veio-lhe porém de repente a ideia, a curiosidade de ir à Barrosa ver a tecedeira... Não lhe falaria: examinaria apenas a casa, a figura da mulher, os aspectos sinistros do sítio... Demais como pároco, como autoridade eclesiástica, devia observar aquele pecado organizado num recanto de estrada, impune e rendoso. Podia mesmo denunciá-lo ao senhor vigário-geral ou ao secretário do governo civil...
Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas. Por aquela tarde suave e lustrosa fazia-lhe bem um passeio a cavalo. Não hesitou, então; foi alugar uma égua à estalagem do Cruz; e daí a pouco, de espora no pé esquerdo, choutava a direito pelo caminho da Barrosa.
Ao chegar ao córrego, de que lhe falara a Dionísia, apeou, foi andando com a égua pela arreata. A tarde estava admirável; muito alto no azul, uma grande ave fazia semicírculos vagarosos.
Encontrou enfim o poço atulhado ao pé de dois castanheiros onde pássaros ainda chilreavam; adiante, num terreno plano, muito isolada, lá estava a casa com o seu alpendre; o sol declinando batia-lhe na única janela do lado, acendendo-a num resplendor de ouro e brasa; e, muito delgado, elevava-se da chaminé um fumo claro no ar sereno.
Uma grande paz estendia-se em redor; no monte, escuro da rama dos pinheiros baixos, a capelinha da Barrosa punha a alvura alegre da sua parede muito caiada.
Amaro ia imaginando então a figura da tecedeira; sem saber por quê, supunha-a muito alta, com um carão trigueiro onde dois olhos de bruxa refulgiam.
Defronte da casa prendeu a égua à cancela, e olhou pela porta aberta: era uma cozinha térrea, de grande lareira, com saída para o pátio estradado de mato onde dois bacorinhos fossavam. Na prateleira da chaminé rebrilhava a louça branca. Dos lados pendiam grandes caçarolas de cobre, dum lustro de casa rica. Num velho armário meio aberto branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem que uma claridade parecia sair do asseio e do arranjo das coisas.
Amaro então bateu forte as palmas. Uma rola pulou assustada, dentro da sua gaiola de vime pendurada da parede. Depois chamou alto:
- Sra. Carlota!
Imediatamente do lado do pátio uma mulher apareceu, com um crivo na mão. E Amaro, surpreendido, viu uma agradável criatura de quase quarenta anos, forte de peitos, ampla de encontros, muito branca no pescoço, com duas ricas arrecadas, e uns olhos negros que lhe lembraram os de Amélia ou antes o brilho mais repousado dos da S. Joaneira.
Assombrado, balbuciou:
- Creio que me enganei... Aqui é que mora a Sra. Carlota?
Não se enganara, era ela; mas com a ideia que a figura medonha "que tecia os anjos" devia estar algures, agachada num vão tenebroso da casa, perguntou ainda:
- Vossemecê vive aqui só?
A mulher olhou-o desconfiada:
- Não senhor, disse por fim, vivo com o meu marido...
Justamente o marido saía do pátio, - medonho, esse, quase anão, com a cabeça embrulhada num lenço e muito enterrada nos ombros, a face de uma amarelidão de cera oleosa e lustrosa; no queixo anelavam-se os pelos raros duma barba negra; e sob as arcadas fundas sem sobrancelhas, vermelhejavam dois olhos raiados de sangue, olhos de insônia e de bebedeira.
- Para o seu serviço, vossa senhoria quer alguma coisa? disse, muito colado à saia da mulher.
Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando uma história que ia forjando laboriosamente. Era uma parente que ia ter o seu bom sucesso. O marido não pudera vir falar-lhes porque estava doente... Queria uma ama para lhes ir para casa, e tinham-lhe dito...
- Não, fora de casa, não. Cá em casa - disse o anão que não se despegava das saias da mulher, mirando o pároco de lado com o seu medonho olho injetado.
Ah, então tinham-no informado mal... Sentia; mas o que o parente queria era uma ama para casa.
Veio dirigindo-se para a égua, devagar; parou, e abotoando o casacão:
- Mas em casa recebem crianças para criação?... - perguntou ainda.
- Convindo o ajuste, disse o anão que o seguia.
Amaro arranjou a espora no pé, deu um puxão ao estribo, demorando-se, rondando em tomo da cavalgadura:
- É necessário trazer-lha cá, já se sabe.
O anão voltou-se, trocou um olhar com a mulher que ficara à porta da cozinha.
- Também se lhe vai buscar, disse.
Amaro batia palmadas no pescoço da égua.
- Mas sendo a coisa de noite, agora com esse frio, é matar a criança...
Então os dois, falando ao mesmo tempo, afirmaram que não lhe fazia mal. Havendo, já se sabe, carinho e agasalho...
Amaro cavalgou vivamente a égua, deu as boas-tardes e trotou pelo córrego.
···
Amélia agora começava a andar assustada. De dia e de noite só pensava naquelas horas, que se avizinhavam, em que devia sentir chegarem as dores. Sofria mais que durante os primeiros meses; tinha tonturas, perversões de gosto - que o doutor Gouveia observava, franzindo a testa descontente. As noites eram más, numa turbação de pesadelos. Já não eram as alucinações religiosas: isso cessara numa súbita aplacação de todo o terror devoto: não sentiria menos temor de Deus, se já fosse uma santa canonizada. Eram outros medos, sonhos em que o parto se lhe representava de modos monstruosos: ora era um ser medonho que lhe saltava das entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era uma cobra infindável que lhe saía de dentro, durante horas, como uma fita de léguas, enrolando-se no quarto em roscas sucessivas que ganhavam a altura do teto; e acordava em tremuras nervosas que a deixavam prostrada.
Mas ansiava por ter a criança. Estremecia à ideia de ver um dia inesperadamente a mãe aparecer na Ricoça. Ela escrevera-lhe, queixando-se do senhor cônego que a retinha na Vieira, dos temporais que já reinavam, da solidão que se ia fazendo na praia. Além disso D. Maria da Assunção voltara; felizmente, uma noite providencialmente gelada dera-lhe durante a jornada uma inflamação dos brônquios - e estava de cama para semanas, segundo dizia o doutor Gouveia. O Libaninho, esse, também viera à Ricoça; e saíra lastimando-se de não ter visto a Amelinha "que tinha nesse dia enxaqueca".
- Se isto demora mais quinze dias, vem-se a descobrir tudo, dizia ela, choramigando, a Amaro.
- Paciência, filha. Não se pode forçar a natureza...
- O que tu me tens feito sofrer! suspirava ela, o que tu me tens feito sofrer!
Ele calava-se resignado - muito bom, muito temo agora com ela. Vinha-a ver quase todas as manhãs, porque não queria pelas tardes encontrar o abade Ferrão.
Tranquilizara-a a respeito da ama, dizendo-lhe que falara à mulher da Ricoça inculcada pela Dionísia. Era uma escolha rica a Sra. Joana Carreira! Mulher forte como um carvalho, com barricas de leite, e dentes de marfim...
- Fica-me tão longe para vir ver depois a criança... - suspirava ela.
Tomavam-na agora pela primeira vez entusiasmos de mãe. Desesperava-se em não poder ela mesma costurar o resto do enxoval. Queria que o rapaz - porque havia de ser um rapaz! - se chamasse Carlos. Cismava-o já homem, e oficial de cavalaria. Enternecia-se com a esperança de o ver gatinhar...
- Ai, eu é que o queria criar, se não fosse a vergonha!...
- Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.
Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os dias era a ideia de ele ser um enjeitadinho!
Um dia veio ao abade com um plano extraordinário "que Lhe inspirara Nossa Senhora": ela casaria já com João Eduardo, mas o rapaz devia por uma escritura adotar o Carlinhos! Que para que o anjinho não fosse um enjeitado, casava até com um calceteiro da estrada! E apertava as mãos do abade, numa suplicação loquaz. Que convencesse João Eduardo, que desse um papá ao Carlinhos! Queria ajoelhar aos pés dele, do senhor abade, que era o seu pai e o seu protetor.
- Oh, minha senhora, sossegue, sossegue. Esse é também o meu desejo, como lhe disse. E há de arranjar-se, mas mais tarde, disse o bom velho, atarantado daquela excitação.
Depois, daí a dias, foi outra exaltação: descobrira de repente, uma manhã, que não devia trair Amaro, "porque era o papá do seu Carlinhos". E disse-o ao abade; fez corar os sessenta anos do bom velho, palrando muito convencidamente dos seus deveres de esposa para com o pároco.
O abade, que ignorava as visitas do pároco todas as manhãs, assombrou-se.
- Minha senhora, que está a dizer? que está a dizer? Caia em si... Que vergonha!... Imaginei que lhe tinham passado essas loucuras.
- Mas é o pai do meu filho, senhor abade, disse ela, olhando-o muito séria.
Fatigou então Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe cada meia hora que era o "papá do seu Carlinhos".
- Bem sei, filha, bem sei, dizia ele impaciente. Obrigado. Não me gabo da honra...
Ela chorava, então, aninhada no sofá. Era necessária toda uma complicação de carícias para acalmar. Fazia-o sentar num banquinho junto dela; tinha-o ali como um boneco, contemplando-o, coçando-lhe devagarinho a coroa; queria que se tirasse a fotografia ao Carlinhos para a trazerem ambos numa medalha ao pescoço; e se ela morresse, ele havia de levar o Carlinhos à sepultura, ajoelhá-lo, pôr-lhe as mãozinhas, fazê-lo rezar pela mamã. Atirava-se então para a almofada, tapando o rosto com as mãos:
- Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre de mim!
- Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.
Ah, aquelas manhãs na Ricoça! Eram para ele como uma penalidade injusta. Ao entrar tinha de ir à velha escutar-lhe as lamúrias. Depois, era aquela hora com Amélia, que o torturava com as pieguices dum sentimentalismo histérico, - estirada no sofá, grossa como um tonel, com a face intumescida, os olhos papudos...
Numa dessas manhãs, Amélia, que se queixava de cãibras, quis dar um passeio pelo quarto apoiada a Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu velho robe de chambre, quando se sentiram, embaixo no caminho, passos de cavalos; chegaram à janela - mas Amaro recuou vivamente, deixando Amélia que embasbacara com a face contra a vidraça. Na estrada galhardamente montado numa égua baia, passava João Eduardo de paletó branco e chapéu alto; ao lado trotavam os dois Morgaditos, um num pônei, outro acorreado num burro; e atrás, a distância, num passo de respeito e de cortejo, um criado de farda, de bota de cano e esporões enormes, com uma libré muito larga que lhe fazia na ilharga rugas grotescas, e no chapéu a roseta escarlate. Ela ficara assombrada, seguindo-os até que as costas do lacaio desapareceram à esquina da casa. Sem uma palavra, veio sentar- se no sofá. Amaro, que continuava passeando pelo quarto, teve então um risinho sarcástico:
- O idiota, de lacaio à retaguarda!
Ela não respondeu, muito escarlate. E Amaro, chocado, saiu atirando com a porta, foi para o quarto de D. Josefa contar-lhe a cavalgada, e vituperar o Morgado.
- Um excomungado de criado de farda! exclamava a boa senhora, com as mãos apertadas na cabeça. Que vergonha, senhor pároco, que vergonha para a nobreza destes reinos!
Desde esse dia Amélia não tornou a choramigar, se pela manhã o senhor pároco não vinha. Quem esperava agora com impaciência era o Sr. abade Ferrão, pela tarde. Apoderava-se dele, queria-o numa cadeira junto ao canapé: e depois de rodeios demorados de ave que tenteia a presa, caía sobre a pergunta fatal - se tinha visto o Sr. João Eduardo?

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