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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A sauna - Lygia Fagundes Telles

Eucalipto - esse, principalmente esse o perfume de Rosa e do seu mundo de
infusões de plantas silvestres, filtros verdolengos e boiões de vidro
estagnados nas prateleiras. Esse o perfume verde-úmido que senti quando se
debruçou na janela para posar. Tinha chovido e um vapor morno subiu do
jardim com o sol. É o primeiro retrato que faço, preciso acertar, avisei e
ela se retraiu na janela. Então beijei-lhe a testa, Vamos, relaxa, não pense
no que eu disse mas pense nesta laranja que você vai segurar, assim, pode
falar se quiser mas não se mexa, quietinha segurando a laranja. Quando
esbocei o oval do seu rosto, estava tão séria que parecia posar para uma
foto frente-perfil datada. Rosa Retratada, eu disse e ela aproveitou o
sorriso para molhar os lábios com a ponta da língua. Continuaram sem brilho
os lábios anêmicos. Minha Rosa Anêmica, você precisa parar com essas
verduras, coma bifes sangrentos, você precisa de carne! O melhor retrato que
já fiz. Mas o que foi feito dele?, perguntou Marina. Deve estar com ela,
respondi. Por onde andam ambos é o que eu gostaria de saber, não foi há mais
de trinta anos?
- Tempo à beça!
O funcionário de avental branco pensou que eu estivesse me referindo ao
tempo de duração da sauna e quis me tranquilizar, que eu poderia sair antes
se quisesse.
- Não é nada não. Estava só pensando.

- É a primeira vez que o senhor vem aqui? - perguntou tirando do armário um
roupão branco. Colocou em cima os chinelos de plástico. - Temos alguns
artistas na nossa lista de clientes, a maior parte faz massagem. O senhor
não quer fazer uma massagem?
- Só sauna.
- Diz que em Tóquio esses institutos são servidos por meninas lindas de
morrer que fazem tudo com a gente. Aqui também se encontra esse gênero, mas
no Oriente é outra coisa. O senhor conhece Tóquio?
O tecido felpudo do roupão está morno. A música. E o perfume de eucalipto
mais forte. Tiro o lenço e enxugo a testa. Afrouxo o colarinho. Ser
simpático é retribuir-lhe o sorriso de Tóquio, é fácil ser simpático. E
difícil, já começa a ficar bastante difícil, a simpatia satura mais
depressa: um simpático pintor da moda. Não da primeira linha, mas a
burguesia média em ascensão pensa que é da primeira e compra o que eu
assinar. Mas enriqueci, não enriqueci? Não era isso o que eu queria, merda!
Então, não se queixe, tudo bem, qual é o problema?! Vou seguindo submisso o
avental branco, em lugares como este fico de uma submissão absoluta. .As
solas dos seus sapatos de borracha vão se colando à passadeira de oleado
verde.
- O senhor está com seu peso normal?
No inferno deve ter um círculo a mais, o dos perguntadores fazendo suas
perguntinhas, seu nome? sua idade? massagem ou ducha? fogueira ou forca? -
sem parar. Sem parar. Marina também já fez muita pergunta mas agora deu de
ficar me olhando. Tempo de perguntar e tempo de olhar, e esse olhar soma,
subtrai e soma de novo, ela é excelente em contas. O movimento aí das
mulheres devia aproveitá-la para a contabilidade. Mas parece que lá no
inferno o sistema é de entrevista. Perguntas. Num certo período perguntou
tanto sobre Rosa, ficou tão fixada, uma curiosidade tamanha por nós dois.
Teve um domingo que me obrigou a lhe mostrar a casa, queria ver a casa, o
jardim, quero ver a janela onde ela posou para o retrato! Onde era a casa
tinham construído um edifício sombrio, de terraços estreitos, com roupas
dependuradas nos varais. Pronto, era aí, eu disse. E se me veio um certo
alívio (passou, passou) tive a sensação meio angustiante de que alguma coisa
me fora tirada, o quê? Como se a casa guardasse o período daquelas primeiras
aspirações, tanta energia, planos, enquanto vivesse a casa esse passado
estaria intacto: Rosa Laboriosa fabricando perfumes e molduras, todos os
projetos ainda por fazer, meu fervor, minha sede de reconhecimento, vinte
anos? Tantas as combinações ali à espera. Este caminho? Aquele? O edifício
na minha frente era a resposta cor de pó com seus sulcos de goteiras e
escarros. Quis me arrancar dali mas Marina me reteve, vê lá se posso fugir
fácil assim. Se não fosse essa sua mania de ficar desparafusando o que deve
ficar parafusado, Olha aí, querida, era mesmo o que você queria ver? Não tem
mais casa, nem retrato, nem Rosa - está satisfeita? Ela acendeu um cigarro,
sinal de que estava disposta a conversar, acho que o que fica mesmo de um
longo casamento é a gente saber quando o outro quer falar ou ficar quieto.
Também acendi o meu e esperei. Quer dizer que Rosa vendeu a casa para você
poder viajar? Pergunta-afirmação, Marina é perita nesse tipo de pergunta.
Mas eu tinha acabado de receber meu prêmio de viagem, se esqueceu do prêmio?
Não tinha esquecido, mas se lembrava que num dos nossos primeiros encontros
em Paris, quando eu disse que pretendia ficar algum tempo além do prêmio,
acrescentei também que ia receber um dinheiro aí de uma casa que estava
sendo vendida, mas não era essa a casa? E não era esse o dinheiro que Rosa
ia me mandar? Moça sagaz essa Marina, quando nos casamos eu não fazia idéia
de que fosse tão sagaz assim. E que tivesse essa memória, acho que falei
demais, se me casasse de novo só abriria a boca para pedir o saleiro. No
segundo andar do edifício tinha uma toalha amarela secando no varal. E
fraldas, uma quantidade enorme de fraldas. Ou panos de prato? Você acha que
aquilo lá é pano de prato?-perguntei apontando o terraço desfraldado. Ela
atirou o cigarro pela janela e olhou: Fraldas. Liguei o rádio no painel do
carro que se iluminou para a voz que .vinha de rastros, Ne me quitte pas! ne
me quitte pas!... Ouvir isso assim cantado enternecia, dava vontade de
ficar. Mas ouvir não me deixes sem música! Rosa não pediu, mas pensou.
Desliguei o rádio. Com essa sua memória de computador, Marina - comecei
devagar, com esse poderoso arquivo espero que não se esqueça de que Rosa
estava grávida quando embarquei, não contei esse detalhe em Paris, contei
mais tarde, lembra agora? Sim, claro, e lembra ainda que não tínhamos o
dinheiro para o aborto, um pequeno pormenor, não tínhamos dinheiro, minha
querida, eu não conseguia vender nenhum quadro, Rosa tinha deixado o emprego
na farmácia, restou só uma casa com jardim, mas a gente não pode comer um
jardim, não pode fazer o aborto num jardim, pode? repeti segurando-a pelo
pulso com força, gostávamos desse gênero de brincadeira que podia acabar num
nariz escorrendo sangue. Ela se desvencilhou, Está me machucando, seu bruto!
Beijei-lhe o pulso. Abrandei a voz: Eu quis vender minha passagem e dar-lhe
o dinheiro para o médico mas Rosa não aceitou, já contei isso, não contei?
Ela acreditava em mim, ela me amava. Sabia o quanto era importante para a
minha carreira essa oportunidade de fazer um curso na Europa, conhecer
gente, fazer contactos. Insistiu em vender a casa que agora estava grande
demais, o tio no sanatório e eu longe, sem idéia do tempo que ia ficar por
lá, de que adiantava uma casa grande assim? E a gravidez adiantada e o
médico exigindo adiantado, tinha outra solução? Já sei, aborto não era
problema para você, uma pequena usineira flanando pelo mundo. Hoje pode
parecer ridículo à dona Marina um amor tão pobre como foi esse. Mas assim
foi. Agora tudo ficou simples, como líder libertadora você sabe que suas
irmãzinhas dispõem de pílulas, creches, psicólogas, pelo menos é o que
reivindicam nos discursos. Mas naquele tempo, já esqueceu? não tinha nem
pílula nem nada. E se ela insistiu em mandar o cheque depois do maldito
aborto foi porque queria que eu aproveitasse o prêmio, tinha fé no meu
trabalho como nunca ninguém teve. Frisei esse ninguém com tanta eloqüência e
não adiantou, Marina já não prestava a menor atenção em mim. Tirouo pente,
penteou-se. Procurou me ver através do espelhinho do carro: Ela trabalhava
numa farmácia, não trabalhava?
Farmácia de homeopatia, você disse, aquelas coisas. Ganhavabem, era
independente, sustentava até o tio mudo, não sustentava? Então você apareceu
e foi morar com ela. Internaram o tio no asilo porque você precisava de mais
espaço para montar seu ateliê. Rosa deixou o emprego porque você precisava
de alguém para montar suas molduras, não foi? Espera, deixa eu falar,
naturalmente você começou a fazer sucesso, prêmios, exposições e justo justo
nesta hora aconteceu a maldita gravidez que iria se somar aos gastos da
viagem. Lógico, vender a casa. Quer dizer, ela ficou sem a casa, sem o
emprego, sem o nenê e sem você que já estava de partida. Ah, ia-me
esquecendo, e sem o velho tio que, apesar de mudo, parece que era uma boa
companhia, ao menos podia ouvir. Tudo somado, pode-se concluir que a sua
aparição não foi um bom negócio. Mas não se pode falar em termos de negócio,
você a amava e quando se ama - acrescentou ela, tirando um tablete de
chocolate do porta-luvas. Mastigou pensativa: Ainda uma coisa, conhecendo
minhas irmãzinhas como conheço, vou além, querido. Vou além. Acho que o
sonho da sua Rosa era ter esse filho, te amava e mulher assim apaixonada
logo pensa em filho, é na primeira coisa que pensa aos vinte anos, um filho.
Nunca se casaram, já sei, vi nos seus papéis, meu marido não é um bigamo.
Mas o fato de não ter casado não significa que ela não quisesse (fez uma
pausa para examinara unha lascada no porta-luvas) esse casamento, um monte
de filhos, tudo direitinho. Não era seu esquema esse, querido, ela sabia
perfeitamente e só se adaptou para não te perder. Para não te perder.
Ficaria muito espantada se soubesse que a idéia do aborto foi dela, foi
mesmo dela? - perguntou e voltou-se para o céu, num arroubo. Olha que tarde!
Um azul tão azul, vamos até a chácara? Desviei a cara porque senti que
estava escurecendo de ódio. Agora ia satisfeita, reconfortada com a certeza
de que eu seguiria minhocando, envenenado. Sozinho. É que já tinha acabado o
amor, eu disse calmo, entrávamos pelos portões da chácara. Que amor?,
perguntou ela com a candura do caseiro se o caseiro tivesse me ouvido.
- O senhor não gostaria de tomar um café? Foi feito há pouco.
O funcionário de avental aponta para um preto também de avental que vem
vindo com a bandeja. Tiro o paletó, deixo-o na cadeira e o funcionário vem
todo solícito me livrar do roupão dobrado com os chinelos em cima. Tenho a
impressão de que carrego esse roupão há horas. Há anos. Aceito o café para
descobrir no primeiro gole que não quero café, queria entrar nessa maldita
sauna e acabar com isso - por que fui inventar? Viro a xícara até aparecer a
poeira preta da borra acumulada no fundo me engrossando a língua. Devolvo a
xícara e agradeço, Estava ótimo. O perfume de eucalipto vem em ondas
cálidas. Afrouxo novamente o colarinho e me dirijo ao grande recipiente de
vidro com sua água mineral verde-azul. Mas o funcionário está atento, ele se
adianta na minha frente.
- Só uns goles, se não se importa.
Não me importo. Fico vendo a água subir em bolha silenciosa antes de
escorrer no copo de papel. Ela faz questão que eu me sinta um egoísta. Um
interesseiro, um egoísta. É preciso se conhecer, enfrentar sua verdade,
repetiu várias vezes nas nossas discussões. Ficou cheia de idéias, a pequena
Marina, mudou bastante, ih, como mudou! Líder feminista. Dirige com outras
delirantes um jornal, criam núcleos. Todas conscientizadas, muito
interessante. Ela e o bando, as caras despojadas de sábias do Sião falando
às criancinhas. Bastante esclarecidas, as moças. E Marina na frente, até meu
passado lá longe resolveu esclarecer. Libertação. Depois, ficam aí se
matando ou endoidando. Amasso o copo. Umas perfeitas tontas. Faço pontaria
no cesto mas erro o alvo. Fazendo polêmica com suas teorias espetaculosas,
ora, assumir. Assumir o quê? Rosa precisava era de um homem, como todas, até
as lésbicas que morrem enroladas no pai. Está bem, falhei. Espero que tenha
arranjado outro - um apoio, não é o que queria? O que todas querem? Rosa
Homeopata. Rosa é Frágil. Os olhos eram duas folhinhas de eucalipto - foi
como os desenhei no retrato, só descobri que eram bonitos quando comecei a
pintá-los. Ás vezes Marina repete a pergunta, Mas onde anda esse retrato? E
mais de uma vez (adoraria me pegar em contradição) repeti que dei o quadro à
Rosa, deve estar dependurado na sua sala de visitas, as visitas que chegam
ao sábado para o pôquer, casais do quarteirão com intimidade suficiente para
abrir a geladeira e emborcar sua latinha de cerveja. O mais entendido de
todos, que assiste na tevê ao programa de artes plásticas, fica admirando o
retrato. E faz sua avaliação que sobe atualizada, na medida em que o dólar
sobe, Esse retrato está valendo hoje uma pequena fortuna, sem dúvida, um dos
melhores quadros dele. Nessa época ele ainda não estava comercializado,
começo de carreira, não? - pergunta mascando o palito de fósforo que leva
ágil de um canto para outro da boca, a mulher
a avisou que mascar palito dá ferida mas ele não perde o costume. Os outros
convidados ficam ouvindo com o respeito com que ouvem o guia das excursões a
Buenos Aires. Ah, e a nova casa da Rosa (Marina me observando e sorrindo)
então não havia de ter o mesmo espírito da outra? O perfume de eucalipto
escapando dos vidros de água-de-colônia envelhecendo no porão, ela achava
que os perfumes deviam dormir algum tempo, como os vinhos. Os móveis
simples. Os grandes potes de avenca. As samambaias. Um abrigo para o carro
no lado direito do pequeno jardim, deve haver um carro sob o toldo de lona,
o dentista precisa de carro. Mas ela se casou com um dentista? interrompe
Marina que já não está mais sorrindo. É a minha hora de achar graça: Sei lá,
suponho que é dentista, tinha um que ela freqüentava quando a gente vivia
junto, um amiguinho da família com consultório no bairro. Por acaso era com
ele que eu tratava dos dentes? quis saber Marina. Com esse dentista. Não, eu
ia num outro, na cidade, respondi sabendo muito bem aonde ela queria chegar
quando me olhou, os lábios delgados um pouco contraldos. Reparo que seus
lábios estão mais finos ultimamente, o que lhe dá uma expressão fria.
Resultado da plástica que lhe aguçou o perfil, é isso? Mas que original.
Então uma feminista assim fanática não vai assumir a velhice feminina? Não
vai declarar seus cinqüenta anos? Queria muito ver esse retrato ela disse
voltando a ler sua tese, está sempre às voltas com teses, entesada na
própria ou na de alguma intelectual do núcleo, ô! a solidão. A solidão que
vem e me toma no seu bico e me larga em seguida, despenco sem ter onde me
segurar, nada, ninguém. No começo, ela se interessava pelo meu trabalho.
Depois foi se distanciando cada vez mais. Mais. Está bem, pulei a cerca
desde Paris e ela soube (a traição apodrece o amor, me disse), mas não é
ridículo? Querer que eu contasse a verdade toda vez que me deitei com
alguém, que eu chegasse e dissesse, olha, querida, estou vindo do
apartamento de Carla, ouvimos disco, bebemos e trepamos das três às seis.
Estou sendo franco e por isso não foi uma traição, traição é o que se
esconde e eu fiz às claras, você tem que me aceitar e se deitar neste
instante comigo se neste instante eu tiver vontade de deitar com você - era
assim que eu devia agir para não poluir nosso amor? Camuflei como pude (a
gente pode tão mal), menti até à saturação. Perdi. Mas se tivesse sido
verdadeiro, o resultado do jogo seria outro? Quer que me analise, me
concentre. Que me conheça em profundidade, sem mistificação, sem mentira. Se
conseguir isso, afirma, poderia então voltar a pintar como no começo. Mas se
não faço outra coisa, porra. Isso de ficar me parafusando. Adianta? Tem dias
em que me sinto perfeito, outros dias, uma bela merda: nos dois estados não
consigo trabalhar. Preciso não me sentir nem eufórico nem deprimido, estar
assim, normal. Mediocremente profissional. Daí faço um quadro atrás do
outro. Perdi o fervor, Marina, é isso. Perdi o fervor. Muita técnica. Muitos
compradores, os compradores compram tudo, quem falou em crise? Mas é
diferente, eu sei. Você sabe também e me despreza, fiz todas as concessões.
Todos os arreglos. Acabei rico. E é nesse ponto que quero chegar, já não
preciso do sovina do seu pai, já precisei mas agora não preciso mais, fiquem
aí sacudindo seu dinheiro que eu sacudo o meu, Quem quer casar com dona
Baratinha que tem dinheiro na caixinha?, minha mãe cantarolava fazendo voz
aflautada, como devia ser a voz da barata que achou uma moeda na fresta do
assoalho. Minha mãe era a verdade. Você não quer a verdade, só a verdade,
nada além da verdade? Pois minha mãe existiu com seu vestido de andorinhas
num fundo azul-noite. Também é verdade que era delicada e que morreu cedo.
Mas, meu pai? Professor? Não, ele não era professor, querida, nem foi
baleado por causa de política, era um simples tira que vivia torturando os
presos, enquanto torturou pé-de-chinelo, tudo bem, mas se meteu com presos
políticos, insistiu no método de arrancar confissões e dentes com alicate e
acabou seqüestrado e moído de pancadas, reconheceram o cadáver devido a um
anelzinho de pedra vermelha que usava no dedo. Teve o que merecia, disse
minha irmã, a mocinha de cabelos cor de mel repartidos bem no meio, como as
santas, sobre o cabelo não menti mas menti quando disse que ela morreu
afogada quando o barco virou, sempre achei lindo isso das mocinhas morrerem
afogadas, como Ofélia, os cabelos se enredando nas ervas, carreguei na
descrição propositadamente, uma sugestão de Shakespeare ajuda no cotidiano.
Afogada. Afogou-se, sim, mas foi no puteiro lá da divisa do Paraguai, fugiu
com um campeão de caratê e um dia vieram me contar em voz baixa, com
discrição (essas notícias exigem respeito), que minha irmã tinha sido vista
na casa de uma cafetina instalada na fronteira, uma mulata chamada Albina,
Malvina, um nome assim. Ela e a colega já estavam com o pé na estrada depois
de uma briga com faca? baile de carnaval. Mas minha mãe era verdadeira com
seu vestido azul-noite e sua delicadeza. Aceita minha mãe, Marina? Serve
minha mãe?, pensei perguntar enquanto me aquecia na lareira, fazia muito
frio em Campos do Jordão, lá freqüentemente é frio e o frio estimula a
memória. Então me aproximei do fogo até sentir a cara esbraseada. Por que
não me deixa em paz?, tive vontade de gritar. Aqueci o conhaque no fundo do
copo. Mas será que eu quero mesmo ficar em paz?
- O sabonete - diz o funcionário me entregando um pequeno sabonete verde. -
E a chave do seu armário. Quer me acompanhar, por favor?
O sabonete com perfume de eucalipto. Enfio o sabonete e a chave dentro do
chinelo que se desequilibra e quase despenca do alto do roupão embolado: vou
empilhando os objetos que recebo como os sentenciados do cinema no primeiro
dia de presídio. A música nostálgica (não está mais alta?), também de
cinema, reconheço-a, é antigüíssima, ouvimos isso juntos, não ouvimos? Hem,
Rosa? Eu trabalhava no retrato, mas já entardecia, mais dez minutos e saímos
em seguida, tem aí uma fita que eu gostaria de ver, convidei e ela aceitou
mas não se mexeu, os cotovelos apoiados na janela, o olhar verde-água colado
em mim, às vezes eu me escondia atrás do jornal, do livro, da tela, sempre
atrás da tela e ainda assim, atrás do muro, me sentia observado. Sua face
foi se integrando na folhagem, escurecia rápido. Peguei o tubo verde e fui
espremendo até o Fim, quis tudo verde-folha, a janela, o vestido, também eu
sufocado numa alegria espessa como a tinta que só foi amadurecer na laranja
que ela segurava com a maior gravidade, Eu te amo, Rosa, está ouvindo? Eu te
amo!, gritei porque o retrato estava ficando como eu queria, antes de fazer
todos os outros que fiz já estava sabendo que esse seria o melhor. Comecei a
rir. Ela segurava a laranja com o ar responsável do Menino Jesus de capa de
cetim e coroa dourada, segurando na mão direita o cetro e na esquerda o
globo estrelado. Minha mãe pregou esse quadro na cabeceira da minha cama,
Olha, reza toda noite pra Ele não se distrair e deixar cair o mundo!
- Sabe o nome dessa música? - pergunto ao funcionário. Ele vai buscar
debaixo da cadeira o sabonete que escorregou da minha pilha. Devolve-me a
chave que caiu junto.
- Desconfio que é de um filme antigo. As músicas antigas tinham outro
gabarito, o senhor não acha?
Guardo o sabonete no bolso. Meu ódio por palavras como gabarito ou válido
chega a ser um ódio físico. As palavras da moda. As pessoas da moda. Depois,
vão-se gastando e sendo substituídas, tenho ouvido menos ilação, conotação,
eu também estou na moda. Ou estive.
O espaçoso vestiário metálico converge para um espelho de moldura branca
tomando toda a parede do fundo. Conforto e ordem para os clientes
aparentemente em ordem - penso e me desvio do homenzinho repleto que passa
por mim com a solenidade de um César no seu chambre branco, a toalha
enrolada no braço num panejamento de túnica. Procuro o número do meu
armário. A trilha sonora, evidente, posso assobiar junto. E faz acesso até
hoje, fita e música, uma love story da época, Rosa ficou lavada em lágrimas,
porque a bomba acertou em cheio no correspondente de guerra apaixonado pela
médica eurasiana. Tudo besteira, eu cochichei e Rosa me apertou o braço, que
eu .calasse o bico, o pedaço agora era tristíssimo, a moça subia na colina
onde sempre se encontravam e fazia aquela cara sublime diante da miragem do
amado com a música sublime subindo a todo o pano porque o amor, entende, o
verdadeiro amor!... Rosa Manhosa, eu disse quando saímos do cinema,
dando-lhe o lenço a mão porque estava se sentindo a própria eurasiana
prestes a me perder de novo. Levou-me a um restaurante vegetariano, era
vegetariana. Mas isto não é comida, protestei e ela sorriu e encomendou a
salada. Rosa Leguminosa. Temperava meus bifes quase sem olhar para a carne
desde que viu um boi indo para o matadouro. Falava pouco mas foi minuciosa
na descrição que fez do sofrimento do boi estampado no olho saltado assim
que sentiu o cheiro de sangue. Fincou as patas no chão, resistiu. Depois,
num cansaço, deixou-se levar de cabeça baixa. Mas eu também vi os bois
seguindo em fila no corredor estreito, e daí? perguntei-lhe. Também vi o
olho arregalado, em pânico. Esse olho. Não queria me lembrar e agora lembro,
o tio de Rosa, o mundo. Ele me olhou assim intenso na madrugada da
internação.
- Como está quente - eu disse, desabotoando a camisa.
O funcionário teve seu sorriso melífluo e me ofereceu um cabide para o
paletó.
- É a pré-sauna.
Ele lidava com suas plantas, esse tio mudo. Quando Rosa aproximou-se,
endireitou o corpo (estava de joelhos) e lhe mostrou uma raiz morta que
acabara de desencavar. Ela ajoelhou-se ao seu lado, acariciou-lhe os cabelos
ralos. Limpou um pouco do barro seco que respingara em sua barba grisalha e
entrelaçou as mãos nos joelhos. Estava pálida quando começou dizendo que ele
devia ser internado para um tratamento, o lugar era muito bom, tinha
árvores, flores. Você vai gostar, tio. Ele ouviu e fez que sim com a cabeça,
fez que sim. Eu espiava da janela e quis me afastar da cena da sobrinha
sentimental, explicando ao tio velho que nossa casa não era o lugar ideal
para um velho mudo com mania de plantas. Fiquei. Entre os dois, o instante
de imobilidade e silêncio, ela olhando para a terra. Ele olhando para a
terra onde estavam ajoelhados. Depois, ele fechou os dedos em redor da raiz
que ainda segurava, e dedos e raiz, ficou tudo uma coisa só. Tinha as unhas
pretas, a terra era quase preta. As unhas de Rosa eram limpíssimas, mas ás
vezes guardavam traços da terra que vinha em meio das suas experiências.
Unhas fracas. Dentes fracos. E você permitiu que ela se tratasse com o amigo
do bairro que nem formado era, estranhou Marina. E agora já nem sei se foi
mesmo ela ou se sou eu que pensa nisso, tanta pergunta que começo a me
misturar com as dela. Marina, meu juiz. Vou respondendo: Exatamente, Rosa
era magrinha como um galho daquela planta que agora esqueci o nome, tinha no
nosso quintal várias prateleiras só com esses potes de folhinhas trementes
se estendendo nervosas para o lado da sombra. Ficam mais viçosas quando
cuidadas por freira, Rosa me contou e agora lembro: avenca. Marina
interessou-se (seu interesse por Rosa é permanente) e quis saber, Por que
freira? Lá sei, em geral as freiras são virgens e virgem tem poderes, as
raízes reconhecem as mãos himenizadas e agradecem, fortalecidas na aura de
castidade. Rosa Mística não tinha imagens em casa, as plantas eram suas
imagens: o tufo das violetas era Santa Teresinha. O eucalipto magrinho, São
Francisco de Assis. O ipê roxo já nem lembro que santo era - tudo assim
dentro de um ritual, de uma aura, ela via uma aura se irradiar das plantas,
brilhante se as plantas estavam saudáveis. Aura mortiça se estavam doentes
ou iam morrer, como acontece com a gente, igualzinho. Os bichos mais
evoluídos e algumas pessoas (os videntes) conseguem ver essa aura, Rosa
achava que o tio era vidente. Marina me atalhou, rápida: Esse tio era meio
louco ou apenas velho? Achei mais simples não resistir. Chega a ser
aterrorizante esse prazer de me entregar, deuses e gentes, pensem o que bem
entenderem, que estou me lixando com seus julgamentos. Apenas velho,
respondi. Implicou comigo, achei que queria me matar e a maneira que
descobri para me ver livre dele foi essa, o asilo. O curioso é que quando me
entrego, Marina se desinteressa e passa para outro assunto, queria saber
mais sobre as avencas: por acaso não ficaram debilitadas com a minha
chegada? A Rosa, não era virgem? Um ponto que a impressionou foi esse, o
fato de uma moça com mais de vinte anos, independente, com cursos e ainda
virgem. Lembrei-lhe que naquele tempo usava as moças pobres se guardarem, as
ricas podiam ter seus amiguinhos e se casar sem problemas, mas Rosa
Preconceituosa era da pequena burguesia. E do reino vegetal, as virgens
vegetais ultrapassam as de outros reinos, a primeira vez foi tão difícil,
Marina, mas tão difícil que precisei sair de madrugada e não encontrava
farmácia aberta. Andei feito doido quase uma hora, fazia um frio cão. Quando
voltei, ela tomava tranqüilamente um daqueles seus chazinhos de ervas, me
ofereceu uma xícara. Rosa Encadeada! - chamei e ela riu mas depois chorou,
eu não conseguia esconder minha irritação. A pobrezinha, disse Marina.
Fiquei pensando, por que não se enternece comigo? Por que nunca se
enterneceu comigo? Minha mãe teria ficado com pena de mim e não de Rosa, era
para o meu lado que sempre inclinava a cabeça. Mas Marina não é minha mãe
nem mãe de ninguém , não tivemos filhos. Seria por isso que ficou assim
dura? Mas as amigas com filhos também são do mesmo tipo, agressivas,
irônicas. Vai ver, é esse movimento cretino que está cretinizando o
mulherio. Não querem machos e viram machonas, ô! onde estão as
mulheres-gueixas? O funcionário aí disse que em Tóquio. Nós não sustentamos
sempre vocês? Arrumar emprego, é se mudar para a rua, merda. E ter enfarte
que nem nós, é dizer palavrão - mas é isso que vocês querem? Marido, filho,
casamento, tudo atirado às traças. O importante agora é a irmã. Antes,
nossas empregadas podiam beber querosene e Marina no cabeleireiro, no
desfile de alguma bicha, a empregada está morrendo, Marina! E ela mandava o
motorista levar flores. Agora mudou tudo, se preocupa, se responsabiliza, se
questiona. Adotou aí uma pequena puta que adora ser puta, assim que olhei
para a adotada, pensei, vigarice pura. Mas o núcleo decidiu que deve
orientá-la, educá-la, diz que é uma vítima do sistema - e olha aí outra
palavra no auge, sistema. Adotou uma modelo que adora posar nua, se amanhã
se casar com o rei da soja, vai continuar posando nua porque simplesmente
gosta de mostrar o rabo. Direito dela, tudo bem, mas o que não entendo é
ficar fazendo depois aquelas caras de mulher-objeto miseravelmente
explorada. Mulher-objeto. E o que tem ser objeto? Se é um objeto útil, não
estaria cumprindo sua função? O caso da prima, esse então é de chorar de
rir. A prima fazendeira sempre foi infeliz com o marido, nenhum problema,
iam se agüentando. Depois da orientação grupal, separou-se e está agora mais
infeliz ainda porque de infeliz rica passou a ser infeliz pobre. Ela vai se
equilibrar, Marina diz com tamanha segurança que dá gosto ouvir. Confia em
todos, menos em mim. Se enternece com a primeira que vem contar sua
historinha, se enterneceu com Rosa, até com Rosa, nenhum ciúme póstumo, mas
ternura, admiração, sei lá. Aquela noite, por exemplo. Eu me sentindo
estuprado numa luta que de prazer ficou sendo de resistência, desafio, meu
vexame na farmácia, as coisas que pedi às três da madrugada para que o homem
não desconfiasse, escova de dente, talco, sabonete. Ah, ia-me esquecendo, o
senhor tem vaselina pura?
Ele então sorriu. Marina também, mas o sorriso de Marina foi pouco
espontâneo, já não acha tanta graça em mim.
Guardo a roupa no armário. Calço os chinelos. Antes de vestir o roupão
enfrento o espelho inteiro e nu. Ainda em forma, por que não? E o meu golfe?
Meu tênis, porra. Talvez um pouco de estômago. Pego a dobra com dois dedos,
está aqui o excesso. Encolho a barriga e viro de perfil até ver meu queixo
duplo com o rabo do olho. Olho tem rabo?, perguntei à minha mãe e ela me
beijou, Seu bobinho, seu bobinho! Rosa fazia um pouco a minha mãe. Tínhamos
quase a mesma idade, mas me sentia como um casulo dentro do seu amor, eu
disse à Marina. Nevava quando entramos no café (Place
Saint-André-des-Arts?). Até o último dia correndo eficientíssima com seu
casaco preto e seu enjôo, já começava a enjoar. Mas não venha me dizer que
ela está te esperando, que vai voltar para o Brasil na semana que vem,
Marina me atalhou e mudamos de assunto, havia tanta algazarra no café, tanto
calor. Bebemos o vinho de um só trago, glu-gluglu, esfregamos as mãos
geladas e aspiramos a fumaça fumegante do sanduíche, que bom estar aqui! Que
bom que você ainda está livre, ela disse e nunca Rosa ficou tão longe como
nessa hora, Sim vivemos alguns anos juntos, mas quando embarquei, já estava
tudo acabado ou quase. Marina pediu mais vinho. Mais sanduíches, ô alívio,
afinal encontrara alguém em disponibilidade, seu mais recente amor fora um
suíço com duas famílias, duas pátrias. E agora, um descompromissado, e
pintor! No encontro no dia seguinte, fez uma ou duas perguntas sobre Rosa,
mas perguntas ligeiras, ocasionais. Achei que eram ocasionais, não estava
afeito à sua técnica. Ou ainda não desenvolvera essa técnica, uma perfeição:
mesmo quando ela está na superfície de um ocioso movimento de chave de
parafuso desinteressado em afundar, ela afunda. Queixa-se da minha atitude
na defensiva, mas não tenho mesmo que me defender? Não posso ser nítido como
pede que seja, é possível contar um fato com nitidez? As coisas devem se
contadas com aparato para que não fiquem mesquinhas. Cruéis. Se descrevo um
crime e digo que a mulher apontou e deu um tiro no coração do amante, se
menciono simplesmente o gesto, sem a ambigüidade, sem a circunstância que é
todo o labirinto dando voltas e voltas até desembocar nesse alvo... Está
certo, vou tentar ser reto, quando conheci Rosa, ela era noiva de um amigo e
companheiro de quarto, eu morava numa pensão. Ele foi providencial para mim,
sem sua ajuda eu teria voltado para Goiás, Goiás Velho, sim senhora, é longe
Goiás, não? Longe à beça. Então ele pagou minha parte na pensão e me
forneceu cigarros, tinta. No dia em que viajou pro Recife (era de lá, ia ao
enterro do pai) me pediu que eu fosse avisar a noiva, ela o esperava para o
jantar. E não tinha telefone. Fui, jantei seu jantar e ceei sua noiva -
nitidamente a coisa se passou assim. Pronto, viro um mau caráter total
porque nesse tom também o episódio do tio fica abominável. Esse tio mudo que
cuidava do jardim, a casa ficava no meio de um jardim e ele morava num
barracão no fundo do quintal, o barracão que transformei no meu estúdio. Um
dia sonhei com ele, com esse estranho mudo que conversava com as plantas.
Chegava às vezes a rir quando elas diziam alguma gracinha, ria baixinho, mas
ria. Se entendem na perfeição, Rosa veio me dizer: ele toca nelas e através
dos dedos se comunicam até às raízes, já reparou que as flores desabrocham
mais depressa quando ele está por perto? Que morrem sem sofrimento quando
ele toma sua corola nas mãos? Inútil explicar-lhe que a discreta loucura do
tio estava se fortalecendo como as raízes, no escuro. Tive então que
exagerar, recorrer à ênfase para provar que de repente ele poderia ficar
perigoso. Como naquela manhã em que me olhou enquanto segurava um daqueles
seus ferros de jardinagem, cheguei a recuar. Você tinha saído, Rosa,
estávamos só os dois. Então me fechei no barracão até que ele se afastasse,
fiquei lá dentro pintando até você chegar, evidente, não fez nada assim de
concreto, mas senti a ameaça. O perigo. Ela sacudia a cabeça, negando,
negava sempre, o tio, perigoso? O tio?! Um velho tão inofensivo como as
samambaias, as begônias, que ameaça podia haver numa roseira? Talvez tivesse
medo, isso sim, talvez eu o intimidasse, o deixasse inseguro. Então se
refugiava em suas plantas. Mas lá também tem plantas, querida, eu disse. Lá
nesse asilo que andei vendo, já providenciei tudo, ele vai ficar feliz na
companhia de outros velhos, velho precisa de velho em redor. Um mês depois
eu o levava. Foi sem resistência. Na hora de subir no táxi, me olhou
demoradamente. Tomei-o pelo braço, impelindo-o suave mas firme, pensei que
fosse reagir, se desvencilhar. Sentou-se no banco e ficou olhando em frente,
as mãos escondidas no meio das pernas, tinha muito esse gesto para
aquecê-las. Rosa chorava trancada no banheiro, fazia algum tempo que se
fechava no banheiro para comer doce escondido ou chorar, já estava
engordando. Voltei e ela ainda trancada lá dentro. Bati na porta, não seja
criança, Rosa, ele está felicíssimo, venha tomar um vinho, aura positiva,
você não disse que somos nós que determinamos nossa aura? Eu mesmo preparei
os sanduíches enquanto falava sem parar, animadíssimo: o barracão ia ficar
ótimo com a reforma, nós dois podíamos pintar tudo, arrumaria minha cama num
canto para poder trabalhar até tarde, dormir até tarde, talvez pudesse expor
em setembro, setembro era primavera, um mês de sorte, podíamos dar uma festa
no meu próprio estúdio e depois pensar naquele giro pela Amazônia tantos
projetos, hein Rosa. Incluindo aquele curso que quero um dia fazer na
Europa, sei que vai acontecer! Ela ouvia em silêncio. Bebia em silêncio, os
olhos inchados de tanto chorar. Fui buscar seus chocolates e caramelos que
comia escondido, pronto, coma o que quiser, Rosa Adocicada, Rosa Louca!
Acordei tarde no dia seguinte. A mesa estava posta mas não a encontrei. Fui
para o jardim: lá estava ela ajoelhada no canteiro das begônias,
consolando-as. Chega disso, Rosa, vem que eu preciso que me arme uma
moldura, chamei. Ela limpou no avental as mãos sujas de terra.
Amarro o cinto do roupão. O tecido esponjoso, morno, retém nas dobras o
perfume de eucalipto. Os vidros luminosos de tão transparentes. O licor
transparente. A alegria com que veio me contar sua descoberta, era um licor
verde com um leve toque de menta, me trouxe num cálice, Prova! O simples
perfume já excitava antes mesmo do calor se irradiar da boca para o peito,
para o sexo, mas é um licor afrodisíaco, eu disse. Podemos ficar ricos com
essa fórmula, um licor de monges! Ela riu e vi a luz do licor nos seus
olhos.
- Eu já tinha ouvido falar muito no seu nome mas nunca vi nenhum quadro seu,
só assim em revistas. O senhor vai fazer alguma exposição?
Sigo o avental branco. Noto que seus pés são enormes mas pisam com mansidão.
- Só em Washington.
Não ficou rica nem com essa fórmula nem com as outras, não tinha o menor
senso prático, as pessoas em redor ganhando, ficando conhecidas. Ela não.
Acabou cedendo até a fórmula da água-de-colônia à italiana que batizou com
novo nome (Petronius?) e pôs para vender em toda parte. Por que fez isso,
Rosa?, perguntei me controlando para não sacudir até despetalar a Rosa
Obesa, estava quase obesa. Ela colava nos frascos caseiros os pequeninos
rótulos com o antigo nome escrito com sua letrinha verde: Rosana. Homenagem
à mãe que lecionava botânica, conheceu o marido num centro de pesquisas
vegetais, uma família rara, todos naturalistas. Contei a Marina (mas o que
não lhe contei?) o caso dessa mãe que viveu além da data marcada porque Rosa
a fazia tomar chá de ipê roxo, quando a morte veio buscá-la, encontrou o tio
mudo guardando a árvore e a árvore guardando a doente. Então parece que o
tio mudo trocou com a morte algumas palavras e a morte fez meia-volta e só
voltou dez anos depois. A mudez eloqüente, acrescentei, mas Marina não riu,
estava muito compenetrada tecendo seu tapete, nesse tempo fazia dessas
coiselhas para ocupar as mãos enquanto a mente ia longe, ocupada com outros
tecidos. Vejo que a agulha não segue metódica o desenho: sem explicação,
retrocede para um arabesco que ficou para trás, corre por ali e de repente
reaparece de novo na mancha lilás na extremidade do pano, a lei é a das
cores? Agora Marina quer saber nas minúcias o que aconteceu nessa noite em
que cheguei com o recado do meu amigo: o jantar arrumado para ele. Ela
esperando. E você chega - e daí? Daí fiquei, como não podia deixar de ser.
Tinha chovido, a casa longe, cheguei escorrendo água. Não deixou que eu
ficasse com aquela roupa, me fez vestir o macacão do tio enquanto secava
minha calça com o ferro. A chuva não parava e eu estava febril, acabei
dormindo nas almofadas que arrumou na sala. Antes de dormir, me fez tomar um
chá quente de flor de laranjeira.
Meu amigo precisou se demorar no Recife, tinha irmãos pequenos, inventário,
uma embrulhada. Então passei a visitá-la diariamente. E ela não fez nenhuma
questão de casamento?, perguntou Marina só por hábito, sabe perfeitamente
que eu não pensava sequer em casar. Mas se casou comigo, retrucou com a cara
que conheço bem. Não demora e dá aquele salto com a agulha, mas eu me
adianto: com você foi diferente, querida. Filha única, pai riquíssimo. Um
avarento que não diz bom-dia de graça, esse pormenor é interessante, mas e a
esperança? Não soma nisso? Ela riu abrindo o tapete nos joelhos. Nunca perdi
essa esperança, nunca. Já estamos ficando meio velhos, é verdade, mas
sustentar a chama como seu pai vem sustentando não é a mais valiosa doação?
E nem vai morrer nada, chá de ipê roxo, Marina, ele não soube desse ipê?,
pergunto e vejo que a agulha parece gracejar quando envereda sinuosa até uma
zona que já não alcanço, ô! Marina. Por que falamos tanta tolice que começa
inocente e vai se turvando? Você provoca. Eu respondo mais ou menos no mesmo
tom. Mas e se eu quiser esquecer? Você não deixa. Por que você não deixa?
Aonde está querendo chegar? Ela dobrou o tapete. Guardou as linhas. Pode ter
sido devido à fumaça (acendeu um cigarro) mas tive a impressão de que seus
olhos se umedeceram. Acho que você nunca amou ninguém a não ser você mesmo,
ela disse apertando as palmas das mãos contra os olhos. Amei você - quis
dizer e não tive forças. Ela sabe que se a tivesse encontrado como encontrei
tantas outras se aventurando em Paris, não a teria levado até a embaixada
para o casamento. Usava roupetas pobres porque era interessante ser pobre,
mas eu estava ciente de que o pai era dono de fábricas de tecido, da avareza
soube bem mais tarde. Amei Rosa - podia ter dito. Mas sabe também que se
Rosa tivesse ganho com suas fórmulas, se ficasse aquele tipo de mulher que
se leva pelo braço assim na frente, como um troféu, eu não viajaria sozinho.
Nunca amei ninguém a não ser a mim mesmo? Mas se também não me amo, você
sabe que vivo fugindo de mim. Ou não?
Aperto o roupão contra o peito, onde o suor já escorre despudorado. Subo na
balança, o funcionário do pé grande dá as ordens e vou obedecendo, agora é
para pesar? Então vamos pesar. Fico sabendo que estou com três quilos a
mais, Uma parte desses três quilos o senhor vai perder daqui a pouco, ele
anuncia e respondo que já estou perdendo, a sauna começou na entrada. Ele
anota na ficha o meu peso. A balança que Rosa comprou para se controlar não
controlou porra nenhuma, como impedir que se trancasse no banheiro com seus
chocolates, seus bolos. Rosa!, eu chamava e ela abria a torneira, abria o
chuveiro, mas estava era mastigando. Ou se masturbando. Masturbando?,
estranhou Marina. Você acha que ela se masturbava? Melhor esgotar o tema
inesgotável, melhor dizer logo que já fazia tempo que nem nos tocávamos
mais, a gravidez foi só bebedeira, loucura. Já estava gordíssima quando
aconteceu, tão acidental. Mas tão inoportuno que eu tive que lhe dizer, A
ocasião não é ideal, Rosa. Detesto essa palavra ideal, mas foi a única que
me ocorreu na hora. Então ela vestiu o casaco preto e saiu, em todos os
acontecimentos vestia esse casaco que eu não podia nem mais ver, pensava que
com ele disfarçava sua gordura. Não disfarçava, ô!, Marina, preciso mesmo
continuar? Foi na noite do meu vernissage. Ela me preparou um lanche e
depois fiquei bebendo, ainda era cedo. Podia ouvi-la no quarto ao lado,
trabalhando nas molduras, gostava de trabalhar de noite, com música e
mastigando seus biscoitos. Quando tomei o último gole de uísque e disse vou
indo, ela me apareceu com o tal casaco. A bolsa preta: Eu também vou. Fiquei
sem saber o que dizer. É que fazia meses que a gente não saía mais juntos,
eu tinha meus amigos, meus compromissos, ninguém perguntava por ela, ficou
naturalmente excluída. Mas não se importava com isso, tinha engordado e era
bastante lúcida para saber que nenhuma roupa lhe caía bem. Então se vestia
sem vaidade, cheguei um dia a pensar que fazia questão de parecer mais feia.
Ela sabia da sua amante? perguntou Marina. Encarei-a: Mas quem disse que eu
tinha uma amante? Marina sustentou o olhar. Irritou-se. Mas você tinha ou
não tinha uma amante? E então? Ela não suspeitava? Suspeitava, respondi e
esperei as perguntas detalhistas. Não perguntou. Ali estava ela de bolsa e
casaco preto, prossegui contando. Pronta para ir também. Me ocorreu na hora
um pormenor tão tolo, se o casaco ficaria melhor abotoado ou desabotoado.
Tive um sentimento de culpa, mas por que deixei que engordasse assim? E
aquelas roupas medonhas. Abracei-a. No dia seguinte mesmo lhe daria dinheiro
para uns vestidos, Quero você elegante de novo, vamos jogar no telhado esse
casaco e essa bolsa, hem, Rosa? Ela apertava na mão a alça da bolsa preta
como há alguns anos (quantos?) apertara a laranja. Olhei o retrato. Olhei-a:
ambas com os olhos verde-água colados em mim. Minha Rosa, eu disse, estou
muito contente porque você vai comigo, tudo 0 que sou devo a você, lembra?
Não quero mais que faça a Rosa Obscura, todos vão gostar de te ver, mesmo
que eu não venda um mísero quadro, vamos comemorar depois, ceia, boate, uma
farra completa! Mas você está gelada, toma antes um gole, vamos esquentar,
toma este uísque! Abri uma lata de amêndoas, ela gostava dessas amêndoas, É
cedo ainda, melhor chegar quando todos já estiverem lá. Mas não fique assim
tensa, tire o casaco, venha aqui no meu braço. Sentamos na esteira, bebemos
no mesmo copo e quando ela riu. beijei-a. Senti um resquício de sabor de
baunilha em sua língua, Você andou comendo pudim, confessa! Ela negava e
ria, há muito tempo que não ria e fiquei feliz. Rosa Risonha, ali ao meu
lado como antigamente. Tirei-lhe os sapatos. Quando tirei sua blusa, o bico
do seu seio se retraiu e se fechou como a folha da plantinha que dormia
quando tocada, não era sensitiva? Dorme - Maria vinha da minha infância.
Beijei o outro seio que também se fechou, Acorda-Rosa! Seus olhos
escureceram. Abriu-se sem resistência. Nunca a penetrei antes assim tão
fundo, nunca a tive tão completa num gozo que já era sofrimento. Como se
adivinhasse (Marina ouvindo, pálida) que era a nossa última vez. Cobri-a com
o casaco e deixei-a dormindo. Ou fingindo dormir. Na rua, comecei a correr.
Se pegasse um táxi, chegaria sem atraso. Fui indo estonteado pela noite de
estrelas com a lua no fundo e pensei na minha mãe com seu vestido da mesma
cor da noite, Está me vendo, mãe? gritei e descobri que na morte ela se
integrara ao globo estrelado que o Menino Jesus segurava, eu não precisava
mais ter medo de que o globo caísse porque ela já fazia parte dele, Você
está aí?, gritei e no delírio senti que meu sangue latejava da mesma cor da
noite, intenso. Livre. Cheguei bêbado mas lúcido na exposição latejante, da
porta me veio o bafo ardente. Entrei azul e grave, a glória é azul, Marina.
Azul, azul.
- Se precisar de alguma coisa, tem a campainha - avisou o funcionário
abrindo a porta de vidro opaco.
O vapor me sufoca. Fecho os olhos que ardem lacrimejantes: foi como se um
tampão de gaze úmida se colasse à minha cara. - Está muito forte para o
senhor? - ele pergunta.
O tampão vai se diluindo, rarefeito. Escorre no suor. Respiro o eucalipto
que sopra em lufadas quentes do chão, do teto. Abro os olhos. Tento ritmar a
respiração sacudida pela tosse.
- Espera... Prefiro entrar aos poucos. Agora está bem, está bem assim.
No nevoeiro denso, vou distinguindo os bancos de madeira, manchas dispostas
em círculo, como num anfiteatro. No primeiro circulo, completamente nu, está
o homem que passou por mim no vestiário: é lustroso e sem alento, espiando a
barriga desabada em pregas sucessivas até a prega mais funda que quase lhe
cobre o sexo, pequeno como o de um menino, mas escuro. Procuro me sentar a
uma certa distância, que o gordo não cisme de enredar conversa. Mas ele
também quer sossego, porque as energias aqui são todas canalizadas no suor.
Estamos imóveis, só o suor ocorre veloz formando pequenas poças nos bancos.
No chão. Poças isoladas umas das outras como ilhas. Os vasos comunicantes.
Mas por que Marina disse isso? Que nunca amei ninguém. Não te amei, Marina?
Nem no começo? A vontade de te montar e ser montado, aquela ânsia. A
satisfação que me estufava o peito quando entrava com você numa sala, não lá
sua beleza, que você não era bonita, mas tão elegante. Raçuda. Então eu te
levava pelo braço, é minha. É minha. Sofreu m meus casos, quase nos
separamos no episódio Carla, quer dizer que não amei a Carla? E Rosa, também
não? Me manchei com o sangue dela e você diz que não foi amor.
- Eu tomaria uns três litros d’água. Fácil - murmura o homem levantando a
cabeça e olhando o teto. Tem olhos de peixe com saudade do mar. - Um litro
atrás do outro.
Suas pernas são lisas como cera derretendo em camadas que empaparam o roupão
e agora se estendem num friso escuro que infiltra nas gretas do lajedo. Não
é verdade que me envergonhasse dela, tão fina, tão sensível. Tão mais rica
do que todo aquele mulherio brilhante que me cercava, foi o que expliquei a
Marina, não é que me envergonhasse de levá-la às festas ou me envergonhava?
Gostava de tê-la em casa, com seu cabelo preso nuca e aqueles aventais de
laboratório. Rosa Particular. As tentativas que fiz para deixá-la menos
desajeitada. Menos suburbana. E agora que falo nessas tentativas, será que
fiz tantas assim? Ou achei conveniente aquele seu retraimento,
principalmente quando desandou a engordar? Não sei por que engordou assim,
eu avisei. Chocolates, biscoitos, mastigava o dia inteiro. Posso ser
calculista. Mas ninguém é só cálculo. Ninguém é só interesse. Abro o roupão.
As gotas de suor se cruzam no meu to e acabam por se juntar em riozinhos que
deslizam abrindo ninho por entre os pêlos do ventre. Fico olhando meu sexo
emurchecido como aquelas raízes que o tio mudo ia desencavar, escuta,
Marina, então não amei? Como é que você pode dizer isso? Acho que nunca me
entreguei totalmente, isso não, sempre ficava uma parte menor ou maior? de
mim mesmo que olhava com lucidez a outra parte possuída. Essa história
também de amar o próximo como a mim mesmo, não amei coisa nenhuma.
Abstrações bestas, fantasias. Sempre recebi muito mais do que dei, concordo,
estou sendo honesto. Passo a língua nos lábios: eucalipto e sal. Amei meu
trabalho, eu trabalhava com tanto amor, lembra? Se ao menos tivéssemos tido
filhos, Marina. Mas você nunca pôde ter filhos, espero que não me culpe
também por isso. Então estamos sós, sem desejo. Sem fervor, quer dizer, sem
fervor, eu, porque você está toda fervorosa com suas irmãzinhas, seu jornal.
Libertação. Vai acabar se libertando de mim. Sabe, Marina, eu esperava que
envelhecêssemos juntos, o sexo apaziguado, não mais traições, só aquela
ternura tranqüila, sem ressentimentos. Sem mágoas. Com os nossos filhos.
Sempre achei besteira essa conversa de filhos que logo se casam e querem ver
a gente pelas costas, planejando discretamente (bem discretamente) um asilo
para a nossa velhice quando formos velhos, os sacanas. Como fiz com o tio. E
agora sinto falta deles, desses filhos que não tive. Podia ter tido com
Rosa. Mas a idéia me apavorou tanto, depressa, Rosa, vai abortar correndo,
correndo! Você estava certa, Marina, ela resistiu, queria um filho nosso.
Também obriguei Carla, Você está louca, Carla? Mãe solteira - é isso o que
você quer ser? É o que seria. Mas Carla, eu não vou me separar da Marina, se
pensa que com isso vai me pegar pelo pé... Então ela pediu uísque, estávamos
num bar. Não, não é isso, me respondeu. Não é isso que eu quero. Também nem
quero mais esse filho que um dia pode me olhar como você está me olhando. A
Carla. Era corajosa, devia fazer parte aí desse seu movimento. Enxugo o
peito onde o suor brota mais quente, em cócega desesperante. Nem completo o
gesto e novas gotas já nascem em lugar das outras. Arranco o roupão. O vapor
ardente sopra dos quatro cantos da sauna como da boca do dragão, tinha
sempre um dragão nas histórias da minha mãe, com homens maus castigados até
o fim, o castigo quente era obrigatório. Fecho os olhos e a vejo vir vindo
com seu vestido azul-noite. E minha mãe? Também não amei minha mãe? As
lágrimas escorrem e se misturam ao suor que me inunda a boca, estou chorando
como nunca chorei e quero chorar mais, suar mais, verter tudo nesta porra de
sauna, e minha mãe?...
- O seu tempo já se esgotou - diz o funcionário abrindo a porta. Aproxima-se
do homem gordo. Recua, tosse: - Mas pode ficar mais uns minutos, o senhor é
que sabe.
O homem se levanta com dificuldade. Apanha o roupão caído debaixo do banco,
veste-o num movimento penoso e vai saindo curvado, arrastando os pés
descalços, esqueceu os chinelos.
- Chega. Por hoje chega.
Vem pela fresta da porta uma lufada fria de ar. E a música. Me encolho,
cubro a cara com as mãos e apóio os cotovelos nos joelhos. Agora o
funcionário se dirige a mim. Respondo por entre a fresta das mãos, Estou
ótimo. Ele agradece e avisa que virá me chamar quando se esgotar meu tempo.
Fecha a porta. Me descubro. As lágrimas correm mais espaçadamente,
revigoradas em seu trajeto pelas veredas de suor. Fico olhando num só ponto,
Marina diz que é assim e Marina sabe, olhar um ponto em frente (escolho a
campainha) e no silêncio, sem mentira, sem disfarce, ir se desvencilhando
das camadas e camadas que se acumularam as horas nuas, foi um livro? Um
filme? Deixar ir caindo o que não for verdadeiro. Mas será que eu posso
fazer essa seleção, eu?! Tudo está tão misturado, Marina. E você fala em
eleger a verdade como aquela gente da inquisição, acho que você veio desse
tempo, devia ser um inquisidor-mor de barrete marrom. Eu era um moedeiro
falso, queimado na fogueira que você mesma ajudou a armar. Então nos
encontramos em Paris todos esses séculos depois e vim me derreter aqui,
concentrado num só ponto até escorrer minha última lágrima. Ficar sozinho
mesmo, você aconselha. Mas não sou boa companhia, você sabe, quando fico
assim quieto a onda trevosa começa a subir lá dentro, miasmas de lembranças
que nem têm mais forma de tão comprimidas, não distingo caras, palavras, mas
só treva grudenta invadindo os vãos, as brechas. O corpo sem ar e com todo o
ar do
espaço, rolando em abandono sem ter onde agarrar e sendo abarrado. Sendo
agarrado. O bico, o pássaro desce e me levanta pelo bico e depois nem fica
comigo, me solta sem apoio, num desvalimento tão desvalido, estou morrendo,
não é isto morrer? Olho o ponto vermelho e não faço nenhum movimento, minha
vontade é sair desembestado, quero beber, conversar com o funcionário de
avental, aceito o cafezinho, aceito a festa, a música, a puta, deitar com a
primeira puta, jantar o primeiro convite! E estou quieto. Se a felicidade
está no movimento, permaneço imóvel, podre de infeliz e imóvel até escorrer
a camada final. Lá bem no centro, como num furacão, tem uma zona de trégua.
Calma. Respiro melhor, está passando. A angústia da agonia está passando.
Coordenar a respiração até que o ar consiga varar o funil obstruído, soprar
o coração ainda assustado, me comovo com meu coração que treme como um
pequeno pássaro, com medo daquele outro, enorme, que me arrebatou há pouco.
Acaricio-o de leve, fique tranqüilo. Entrelaço as mãos no ventre - o gesto
da minha mãe. Mas ela não ficava olhando para as mãos, ficava olhando para
dentro. Não foi como eu contei, Marina, você sabe que não foi. Pediu que eu
mesmo dissesse, pois estou dizendo: ela me espera para o jantar, a minha
noiva, mas tenho que seguir imediatamente, ele disse. Aquele meu amigo. Vá e
avise que meu pai morreu, mas avise com jeito, ela é tão sensível! Pode
deixar, respondi, sou jeitoso. Quando atravessei o jardim, tinha decidido,
vou me instalar aqui. Até meu resfriado, lembra? Se ela se comover comigo,
um pobre pintor desconhecido e de Goiás Velho - o que comove mais ainda, se
for tocada pela minha pobreza. Pelo meu desamparo, e se for do tipo
maternal, se quiser ser minha mãezinha. Aceitei a roupa seca. Aceitei o chá.
Rosa-Chá - eu disse e ficamos sorrindo das outras rosas que viriam depois. É
fácil representar, Marina, mas quero insistir num ponto, não foi só
representação, você gosta de nitidez e ninguém é líquido nem sólido:
pastoso. As coisas são embrulhadas, até o dragão tem o seu lado, me pergunto
agora mesmo, sem cinismo: não era amor? Não acabou sendo amor? Nunca se sabe
na hora. Nem depois. A noite do vernissage, sim, representei, eu não queria
que ela fosse comigo, o queria mostrar minha mulher, uma gorda de casaco
preto. as engordou quando se sentiu rejeitada. Estou bloqueado, eu dizia e
ia trepar lá fora com outras mulheres e nem disfarçava, ela sabia. Sabia.
Quando chegou aquela noite e disse, Vou com você, pensei na mesma hora,
dou-lhe um porre, vai beber tanto que só vai acordar no dia seguinte. Mas no
meio (não estou dizendo?) veio o desejo. Não estava programado aquele amor
dolorido, doce, a exposição me esperando, as estrelas e ela dormindo em
seguida, cúmplice da minha fuga, a Rosa Generosa, estou certo de que fingiu
que dormia. Totalmente a meu serviço, a Rosa Rejeitada, deixou seus tubinhos
e passou a cuidar das minhas molduras, tinha talento também para a madeira.
Nunca pudemos ter empregada, ela sozinha dava conta da casa, do jardim. A
alegria que me tomava às vezes só de pensar que estava à minha espera, sem
ressentimento. O olhar limpo, as mãos limpas. Os vidros verdes e o perfume.
A sopa verde e meu bife sangrento, era calma. Minha Rosa Tranqüila, eu lhe
dizia baixinho, se você me abandonar, me mato. E estava sendo sincero e por
isso me pergunto se não era amor, um amor calculado, mas amor - existe, sim.
A gravidez foi o imprevisto. Nem o retrato ficou com ela que também o
retrato acabei vendendo, tive uma oferta alta e não resisti. Véspera da
viagem. Faço outro, Rosa, prometi antes de embarcar, faço dúzias depois!
Não, não está na sua sala de visitas com as visitas que não chegam para o
pôquer, invenção essa história do dentista, quero dizer, de fato ele tratou
dos dentes dela, mas depois nunca mais se viram, ela não saía quase. Uma
droga de dentista que a fez sofrer, vivia com os dentes encrencados, o
dentista bom era o meu. Véspera da viagem. Então ela saía sem parar, tinha o
aborto. A mudança. E tinha que providenciar o seu quarto no apartamento de
uma conhecida. Uma tarde (foi a última?) voltei mais cedo, o embarque era
naquela noite: estava ali, quieta, olhando suas plantas, parada no meio do
jardim. Não me viu chegar e continuou de braços pendidos ao lado do corpo,
as mãos abertas em leque sobre o canteiro - era um gesto de despedida. Não
podia levá-la e foi dizer-lhes isso, dizia adeus ao seu São Francisco de
Assis, à sua Santa Teresinha - ô! Marina, a vontade que tive de gritar
quando a vi assim, apaga tudo, Rosa, não tem mais viagem, nem aborto, nem
mudança, vamos ficar! Ficar. Mas que filho da puta você virou para permitir
uma coisa dessas, fiquei repetindo só para mim enquanto a tomei pela mão,
Vamos? Sua mão estava gelada. O táxi está esperando, Rosa, estamos
atrasados. Ela fechou no peito a gola do casaco preto, Sim, vamos. O táxi
esperando, eu estava com pressa, Marina, e minha carreira? Meu prêmio? Você
me esperando em Paris, Place Saint-André-des-Arts. Duas semanas depois da
minha chegada, recebi a ordem de pagamento do cheque que prometeu para
encompridar minha viagem, mas não recebi nenhuma carta. Nem sequer um
bilhete. Escrevi para o endereço que tinha me dado e a carta me foi
devolvida, Endereço desconhecido. Recorri aos nossos amigos, que eram só
meus: não, ninguém tinha idéia de onde ela poderia estar, era esquiva, não?
Mesmo depois do nosso casamento ainda renovei as buscas, saudade, remorso ou
simples curiosidade? Não sei. Rosa Desaparecida. Desaparecida. Desaparecida.
Tentei refazer o retrato e ficou uma imitação pobre: apenas uma moça na
janela segurando uma laranja e não a Rosa segurando o meu mundo, foi o meu
mundo que ela segurou. quando lhe dei a laranja, Segura assim, não se mexa.
Apodreceu. Tentei um segundo retrato e acabei rasgando tudo, estava só e
bêbado quando chamei o Diabo, Quero pintar como pintava, me faça pintar como
antes e lhe dou já minh,alma! Será que você não quer a minha alma? Mas é uma
alma tão porcaria assim que nem você aceita? Quando Marina chegou, contei
que quis fazer o maldito do retrato e o Diabo nem deu sinal de vida. Ele já
tem alma demais, ela disse, está querendo se desfazer das que tem.
Apodreceu. A laranja. Não, não se refaz nada, meio século já se esvaiu e
evaporou, quanto ainda me resta? E se eu tentar de novo, você acha que é
tarde? Escuta, Marina, se eu
tentar novamente? Me responda, Marina, e se eu recomeçar? Se você me
ajudasse, se tivesse confiança em mim, eu poderia voltar a trabalhar a
sério, largo tudo isso, vai ser uma alegria vencer essa vaidade, essa ânsia,
trabalhar em silêncio, só nós dois, ficaremos juntos e quem sabe na
solidão?! A fé. O amor, e se voltar o amor, não é possível isso? Responda,
Marina, responda! Já não aconteceu antes?
- Se quiser me chamar, basta apertar a campainha - diz o funcionário abrindo
a porta ao novo cliente que entra pisando firme, majestoso. - Não está muito
forte, não? Por obséquio, a sua toalha.
Faz um gesto na minha direção, E suficiente? Calço os chinelos e me enrolo
no roupão. Enxugo os olhos. A cara.
- É suficiente.
Aproxima-se para me ver melhor. Tenho vontade de rir: já devo ter me
derretido inteiro, as manchas azuis dos meus olhos boiando lá adiante, na
correnteza - ô!, Marina. Você também está sorrindo, tem razão, tantas vezes
prometi exatamente essas mesmas coisas, tantos projetos. Fidelidade.
Disciplina e solidão - lembra? Verdadeiros delírios de intenções, palavras.
Não tem o futuro, não vamos falar em futuro que isso não existe. Só tem
agora. Agora. Respondo só por agora.
- Então? - pergunta o funcionário enquanto me conduz de volta.
Sorrio para os seus pés enormes e comunico que estou um tanto enfraquecido,
mas limpo.

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