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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 18]

Ia sempre receosa, numa inquietação de ser espreitada. Todas as manhãs pedia a Nossa Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para lisonjear os gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a assustava era o Largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica, costurando por trás da janela, exercia uma vigilância incessante. Fazia-se então pequenina no seu mantelete, e abaixando o guarda-sol sobre o rosto, entrava enfim na Sé, sempre com o pé direito.
Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida numa luz fosca, amedrontava-a; parecia-lhe sentir, na taciturnidade dos santos e das cruzes, uma repreensão ao seu pecado; imaginava que os olhos de vidro das imagens, as pupilas pintadas dos painéis se fixavam nela, com uma insistência cruel, e percebiam o arfar que ao seu seio dava a esperança do prazer. Às vezes mesmo, atravessada duma superstição, para dissipar o descontentamento dos santos, prometia dar-se nessa manhã toda à Totó, ocupar-se caridosamente só dela, e não se deixar tocar sequer no vestido pelo Sr. padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro o não encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Totó, postar-se à janela da cozinha, vigiando a porta maciça da sacristia, de que ela conhecia uma por uma as chapas negras de ferro.
Ele aparecia, enfim. Era então nos começos de março; já tinham chegado as andorinhas; ouviam-nas chilrear, naquele silêncio melancólico, esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas dos lugares úmidos cobriam os cantos de uma verdura escura. Amaro, às vezes muito galante, ia procurar uma florzinha. Amélia impacientava-se, rufava na vidraça da cozinha. Ele apressava-se; ficavam um momento à porta, apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam enfim ver a Totó - e dar-lhe os bolos que o pároco lhe trazia no bolso da batina.
A cama da Totó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu corpinho de tísica quase não fazia saliência enterrado na cova da enxerga, sob os cobertores enxovalhados que ela se entretinha a esfiar. Nesses dias tinha vestido um chambre branco, os cabelos reluziam-lhe de óleo; porque ultimamente, desde as visitas de Amaro, viera-lhe "uma birra de parecer alguém", como dizia encantado o tio Esguelhas, a ponto de se não querer separar dum espelho e dum pente que escondia debaixo do travesseiro e obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as bonecas que agora desprezava. 

Amélia sentava-se um instante aos pés do catre, perguntando-lhe se estudara o ABC, obrigando-a a dizer aqui e além o nome duma letra. Depois queria que ela repetisse sem errar a oração que lhe andava ensinando; - enquanto o padre, sem passar da porta, esperava, com as mãos no bolsos, enfastiado, embaraçado com os olhos reluzentes da paralítica que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe o corpo com pasmo e com ardor, e que pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto trigueiro tão chupado que se lhe via a saliência das maxilas. Não sentia agora nem compaixão nem caridade pela Totó; detestava aquela demora; achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amélia também pesavam aqueles momentos em que, para não escandalizar muito Nosso Senhor, se resignava a falar à paralítica. A Totó parecia odiá-la; respondia-lhe muito carrancuda; outras vezes persistia num silêncio rancoroso, voltada para a parede; um dia despedaçara o alfabeto; e encolhia-se toda encruada se Amélia lhe queria compor o xale sobre os ombros ou conchegar-lhe a roupa...
Enfim Amaro, impaciente, fazia um sinal a Amélia; ela punha logo diante da Totó o livro com estampas da Vida dos Santos.
- Vá, ficas agora a ver as figuras... Olha, este é S. Mateus, esta Santa Virgínia... Adeus, eu vou lá acima com o senhor pároco rezarmos para que Deus te dê saúde e te deixe ir passear... Não estragues o livro, que é pecado.
E subiam a escada, enquanto a paralítica, estendendo o pescoço sofregamente, os seguia, escutando o ranger dos degraus, com os olhos chamejantes que lágrimas de raiva enevoavam. O quarto, em cima, era muito baixo, sem forro, com um teto de vigas negras sobre que assentavam as telhas. Ao lado da cama pendia a candeia que pusera sobre a parede um penacho negro dó fumo. E Amaro ria sempre dos preparativos que fizera o tio Esguelhas - a mesa ao canto com o Novo Testamento, uma caneca de água, e duas cadeiras dispostas ao lado...
- É para a nossa conferência, para te ensinar os deveres de freira, dizia ele, galhofando.
- Ensina, então! murmurava ela, de braços abertos, pondo-se diante do padre, com um sorriso cálido onde brilhava um branquinho dos dentes, num abandono que se oferecia.
Ele atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabelos; às vezes mordia-lhe a orelha; ela dava um gritinho; e ficavam então muito quedos, escutando, com medo da paralítica embaixo. O pároco depois fechava as portadas da janela e a porta muito perra que tinha de empurrar com o joelho. Amélia ia-se despindo devagar; e com as saias caídas aos pés ficava um momento imóvel, como uma forma branca na escuridão do quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte. Ela então persignava-se depressa, e sempre ao subir para o leito dava um suspirozinho triste. 
Amélia só podia demorar-se até ao meio-dia. O padre Amaro por isso pendurava o seu cebolão no prego da candeia. Mas quando não ouviam as badaladas da torre, Amélia conhecia a hora pelo cantar dum galo vizinho.
- Devo ir, filho, murmurava toda cansada.
- Deixa lá... Estás sempre com a pressa...
Ficavam ainda uns momentos calados, numa lassidão doce, muito chegados um ao outro. Pelas vigas separadas do telhado mal junto viam aqui e além fendas de luz: ás vezes sentiam um gato, com as suas passadas fofas, vadiar, fazendo bulir alguma telha solta; ou um pássaro, pousando, chilreava e ouviam-lhe o frêmito das asas.
- Ai, são horas, dizia Amélia.
O padre queria detê-la; não se fartava de lhe beijar a orelhinha.
- Lambão! murmurava ela. Deixe-me!
Vestia-se à pressa no escuro do quarto; depois ia abrir a janela, vinha ainda abraçar o pescoço de Amaro, que ficara estatelado sobre o leito; e ia enfim arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralítica sentir embaixo, saber que tinham acabado a conferência.
Amaro não findava ainda de a beijocar: ela então, para acabar, fugia- lhe, ia escancarar a porta do quarto; o padre descia, atravessava em duas passadas a cozinha sem olhar para a Totó, e entrava na sacristia.
Amélia, essa, antes de sair, vinha ver a paralítica, saber se gostara das estampas. Encontrava-a às vezes com a cabeça debaixo dos cobertores, que entalava e prendia com as mãos para se esconder; outras vezes, sentada na cama, examinava Amélia com olhos em que se acendia uma curiosidade viciosa; chegava o rosto para ela, com as narinas dilatadas que pareciam cheirá-la; Amélia recuava, inquieta, corando também; queixava-se então de ser tarde, recolhia a Vida dos Santos, - e saía, amaldiçoando aquela criatura tão maliciosa na sua mudez.
···
Ao passar no largo, àquela hora, via sempre a Amparo à janela. Ultimamente mesmo julgara prudente contar-lhe em segredo a sua caridade com a Totó. A Amparo, mal a via, chamava-a; e debruçando-se toda na varanda:
- Então como vai a Totó?
- Lá vai.
- Já lê?
- Já soletra.
- E a oração a Nossa Senhora?
- Já a diz.
- Ai, que devoção a tua, filha!
Amélia baixava os olhos, modesta. E o Carlos, que estava também no segredo, deixava o balcão para vir à porta admirar Amélia.
- Vem da sua grande missão de caridade, hem? dizia, de olho arregalado, balanceando-se na ponta das chinelas.

- Estive um bocado com a pequena, a entretê-la...
- Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado! Pois vá, minha santa menina, recados à mamã.
Voltava-se então para dentro, para o praticante:
- Veja o Sr. Augusto aquilo... Em lugar de passar o seu tempo, como as outras, em namoros, faz-se anjo da guarda! Passa a flor dos anos com uma entrevada! Veja o senhor se a filosofia, o materialismo, e essas porcarias são capazes de inspirar ações deste jaez... Só a religião, meu caro senhor! Eu queria que os Renans e essa cambada de filósofos vissem isto! Que eu, tenha o senhor em vista, admiro a filosofia, mas quando ela, por assim dizer, vai de mãos dadas com a religião... Sou homem de ciência e admiro um Newton, um Guizot... Mas (e grave o senhor estas palavras) se a filosofia se afasta da religião... (grave bem estas palavras) dentro de dez anos, Sr. Augusto, está a filosofia enterrada!
E continuava a mexer-se pela farmácia a passos lentos, de mãos atrás das costas, ruminando o fim da filosofia.
XVII

Foi aquele o período mais feliz da vida de Amaro.
"Ando na graça de Deus", pensava ele às vezes à noite, ao despir- se, quando por um hábito eclesiástico, fazendo o exame dos seus dias, via que eles se seguiam fáceis, tão confortáveis, tão regularmente gozados. Não houvera, nos últimos dois meses, nem atritos nem dificuldades no serviço da paróquia; todo o mundo, como dizia o padre Saldanha, andava dum humor de santo. D. Josefa Dias arranjara-lhe muito barata uma cozinheira excelente, e que se chamava Escolástica. Na Rua da Misericórdia tinha a sua corte admiradora e devota; cada semana, uma ou duas vezes, vinha aquela hora deliciosa e celeste na casa do tio Esguelhas; e para completar a harmonia até a estação ia tão linda, que já no Morenal começavam a abrir as rosas.
Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ninguém da sacristia suspeitava os seus rendez-vous com Amélia. Aquelas visitas à Totó tinham entrado nos costumes da casa; chamavam-lhe "as devoções da pequena"; e não a interrogavam com particularidades, pelo princípio beato que as devoções são um segredo que se tem com Nosso Senhor. Só às vezes alguma das senhoras perguntava a Amélia - como ia a doente; ela assegurava que estava muito mudada, que começava a abrir os olhos à lei de Deus; então, muito discretamente, falavam de coisas diferentes. Havia apenas o plano vago de irem um dia, mais tarde, quando a Totó soubesse bem o seu catecismo e pela eficácia da oração se tivesse tomado boa, admirar em romaria a obra santa de Amélia e a humilhação do Inimigo.
Amélia mesmo, perante esta confiança tão larga na sua virtude, propusera um dia a Amaro, como muito hábil - dizer às amigas que o senhor pároco às vezes vinha assistir à prática piedosa que ela fazia à Totó...
- Assim, se alguém te surpreendesse a entrar para a casa do tio Esguelhas, já não havia suspeitas.
- Não me parece necessário, disse ele. Deus está conosco, filha, é claro. Não queiramos intrometer-nos nos seus planos. Ele vê mais longe que nós...
Ela concordou logo - como em tudo que saía dos seus lábios. Desde a primeira manhã, na casa do tio Esguelhas, ela abandonara-se-lhe absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: não havia na sua pele um cabelinho, não corria no seu cérebro uma idéia a mais pequenina, que não pertencesse ao senhor pároco. Aquela possessão de todo o seu ser não a invadira gradualmente; fora completa, no momento que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ela. Parecia que os beijos dele lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era como uma dependência inerte da sua pessoa. E não lho ocultava; gozava em se humilhar, oferecer-se sempre, sentir-se toda dele, toda escrava; queria que ele pensasse por ela e vivesse por ela; descarregara-se nele, com satisfação, daquele fardo da responsabilidade que sempre lhe pesara na vida; os seus juízos agora vinham-lhe formados do cérebro do pároco, tão naturalmente como se saísse do coração dele o sangue que lhe corria nas veias. "O senhor pároco queria ou o senhor pároco dizia" era para ela uma razão toda suficiente e toda poderosa. Vivia com os olhos nele, numa obediência animal: tinha só a curvar- se quando ele falava, e quando vinha o momento a desapertar o vestido.
Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ela desforrava-o de todo um passado de dependências - a casa do tio, o seminário, a sala branca do Sr. conde de Ribamar... A sua existência de padre era uma curvatura humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediência ao senhor bispo, à câmara eclesiástica, aos cânones, à Regra que nem lhe permitia ter uma vontade própria nas suas relações com o sacristão. E agora, enfim, tinha ali aos seus pés aquele corpo, aquela alma, aquele ser vivo sobre quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por profissão, louvando, adorando e incensando Deus, - era ele também agora o Deus duma criatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ela ao menos, era belo, superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra como os mais sábios. Ela mesma, um dia, dissera-lhe, depois de ter estado um momento pensativa:
- Tu podias chegar a papa!
- Desta massa se fazem, respondeu ele com seriedade.
Ela acreditava-o - com um receio, todavia, que as altas dignidades o afastassem dela, o levassem para longe de Leiria. Aquela paixão, em que estava abismada e que a saturava, tomara-a estúpida e obtusa a tudo o que não respeitava ao senhor pároco ou ao seu amor. Amaro de resto não lhe consentia interesses, curiosidades alheias à sua pessoa. Proibia-lhe até que lesse romances e poesias. Para que se havia de fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ela falara, com algum apetite, dum baile que iam dar os Vias-Claras, ofendeu-se como duma traição. Fez- lhe em casa do tio Esguelhas acusações tremendas: era uma vaidosa, uma perdida, uma filha de Satanás!...
- Mas mato-te! Percebes? Mato-te! exclamou agarrando-lhe os pulsos, fulminando-a com o olhar aceso.
Tinha um medo, que o pungia, de a ver subtrair-se ao seu império, perder-lhe a adoração muda e absoluta. Pensava às vezes que ela se fatigaria, com o tempo, dum homem que não lhe satisfazia as vaidades e os gostos de mulher, sempre metido na sua batina negra, com a cara rapada e a coroa aberta. Imaginava que as gravatas de cores, os bigodes bem torcidos, um cavalo que trota, um uniforme de lanceiros exercem sobre as mulheres uma fascinação decisiva. E se a ouvia falar de algum oficial do destacamento, de algum cavalheiro da cidade, eram ciúmes desabridos...
- Gostas dele? Hem! É pelos trapos, pelo bigode?...
- Gosto dele! Oh, filho, eu nunca vi o homem!
Mas escusava de falar da criatura, então! Era ter curiosidade, pôr o pensamento noutro! Dessas faltas de vigilância sobre a alma e a vontade é que se aproveitava o demônio!...
Viera assim a ter um ódio a todo o mundo secular - que a poderia atrair, arrastar para fora da sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos complicados, toda a comunicação com a cidade. Convenceu mesmo a mãe que a não deixasse ir só à Arcada e às lojas. E não cessava de lhe representar os homens como monstros de impiedade, cobertos de pecados como duma crosta, estúpidos e falsos, votados ao Inferno! Contava-lhe horrores de quase todos os rapazes de Leiria. Ela perguntava-lhe aterrada, mas curiosa:
- Como sabes tu?
- Não te posso dizer, respondia com uma reticência, indicando que lhe fechava os lábios o segredo da confissão.
E ao mesmo tempo martelava-lhe os ouvidos com a glorificação do sacerdócio. Desenrolava-lhe com pompa a erudição dos seus antigos compêndios, fazendo-lhe o elogio das funções da superioridade do padre. No Egito, grande nação da antigüidade, o homem só podia ser rei se era sacerdote! Na Pérsia, na Etiópia, um simples padre tinha o privilégio de destronar os reis, dispor das coroas! Onde havia uma autoridade igual à sua? Nem mesmo na corte do Céu. O padre era superior aos anjos e aos serafins - porque a eles não fora dado como ao padre o poder maravilhoso de perdoar os pecados! Mesmo a Virgem Maria, tinha ela um poder maior que ele, padre Amaro? Não: com todo o respeito devido à majestade de Nossa Senhora, ele podia dizer com S. Bernardino de Sena: "O sacerdote excede-te, ó mãe amada!" - porque, se a Virgem tinha encarnado Deus no seu castíssimo seio, fora só uma vez, e o padre, no santo sacrifício da missa, encarnava Deus todos os dias! E isto não era argúcia dele, todos os santos padres o admitiam...

- Hem, que te parece?
- Oh, filho! murmurava ela pasmada, desfalecida de voluptuosidade.
Então deslumbrava-se com citações venerandas: S. Clemente, que chamou ao padre "o Deus da Terra"; o eloqüente S. Crisóstomo, que disse "que o padre é o embaixador que vem dar as ordens de Deus". E Santo Ambrósio que escreveu: "Entre a dignidade do rei e a dignidade do padre há maior diferença que a que existe entre o chumbo e o ouro!"
- E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te parece?
Ela atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar, possuir nele o "ouro de Santo Ambrósio", o "embaixador de Deus", tudo o que na Terra havia mais alto e mais nobre, o ser que excede em graça os arcanjos!
Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a influência da sua, voz - que a faziam crer na promessa que ele lhe repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ela o interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tomá-la pela mão para a acompanhar e desfazer todas as dúvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do Céu; e que na sua sepultura, como sucedera em França a uma rapariga amada por um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que a virgindade não se estraga nos braços santos dum padre...
Isto encantava-a. Àquela idéia da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava toda pensativa, num antegosto de felicidades místicas, com suspirinhos de gozo. Afirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.
Amaro galhofava.
- A falar da morte, com essas carnezinhas...
Engordara com efeito. Estava agora duma beleza ampla e toda igual. Perdera aquela expressão inquieta que lhe punha nos lábios uma secura e lhe afilava o nariz. Nos seus beiços havia um vermelho quente e úmido; o seu olhar tinha risos sob um fluido sereno; toda a sua pessoa uma aparência madura de fecundidade. Fizera-se preguiçosa: em casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar longamente com um sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um momento, a agulha, o pano que ela costurava, toda a sua pessoa. Estava revendo o quarto do sineiro, o catre, o senhor pároco em mangas de camisa.
Passava os seus dias esperando as oito horas, em que ele aparecia regularmente com o cônego. Mas os serões agora pesavam-lhe. Ele recomendara-lhe muita reserva; ela exagerava-a, por um excesso de obediência, a ponto de nunca se sentar ao pé dele ao chá, e de nem mesmo lhe oferecer bolos. Odiava então a presença das velhas, a gralhada das vozes, as pachorras do quino; tudo lhe parecia intolerável no mundo, exceto estar só com ele... Mas depois, em casa do sineiro, que desforra! Aquele rosto todo alterado, aquelas sufocações de delírio, aqueles ais agonizantes, depois a imobilidade da morte, assustavam às vezes o padre. Erguia-se no cotovelo, inquieto:
- Estás incomodada?
Ela abria os olhos espantados, como ressurgindo de muito longe; e era realmente bela, cruzando os braços nus sobre o peito descoberto, dizendo lentamente com a cabeça que não...

XVIII

Uma circunstância inesperada veio estragar aquelas manhãs em casa do sineiro. Foi a extravagância da Totó. Como disse o padre Amaro, "a rapariga saia-lhes um monstro"!
Tinha agora por Amélia uma aversão desabrida. Apenas ela se aproximava da cama, atirava a cabeça para debaixo dos cobertores, torcendo- se com frenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amélia fugia, impressionada com a idéia de que o diabo que habitava a Totó, recebendo o cheiro que ela trazia da igreja nos vestidos, impregnados de incenso e salpicados de água benta, se espolinhava de terror dentro do corpo da rapariga...
Amaro quis repreender a Totó, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas, a sua ingratidão demoníaca para com a menina Amélia que vinha entretê-la, ensiná-la a conversar com Nosso Senhor... Mas a paralítica rompeu num choro histérico; depois, de repente, ficou imóvel, hirta, esbugalhando os olhos em alvo, com uma escuma branca na boca. Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama de água; Amaro, por prudência, recitou os exorcismos... E Amélia desde então resolveu "deixar a fera em paz". Não tentou mais ensinar-lhe o alfabeto, nem orações a Santa Ana.
Mas, por escrúpulo, iam sempre ao entrar vê-la um instante. Não passavam da porta da alcova, perguntando-lhe de alto "como ia". Nunca respondia. E eles retiravam-se logo aterrados com aqueles olhos selvagens e brilhantes, que os devoravam, indo de um a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando-se com uma faiscação metálica nos vestidos de Amélia e na batina do padre, como para lhe adivinhar o que estava por baixo, numa curiosidade ávida que lhe dilatava desesperadamente as narinas e lhe arreganhava os beiços lívidos. Mas era a mudez, obstinada e rancorosa, que os incomodava sobretudo. Amaro, que não acreditava muito em possessos e endemoninhados, via ali os sintomas de loucura furiosa. Os sustos de Amélia aumentaram. - Felizmente que as pernas inertes cravavam a Totó ali na enxerga! Senão, Jesus, era capaz de lhes entrar no quarto e mordê-los num acesso!
Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer da manhã, "depois daquele espetáculo"; e decidiu então, daí por diante, subir para o quarto sem falar à Totó.
Foi pior. Quando a via atravessar da porta da rua para a escada, a Totó debruçava-se para fora do leito, agarrada às bordas da enxerga, num esforço ansioso para a seguir, para a ver, com a face toda descomposta do desespero da sua imobilidade. E Amélia ao entrar no quarto sentia vir debaixo uma risadinha seca, ou um ui! prolongado e uivado que a gelava...
Andava agora aterrada: viera-lhe a idéia que Deus estabelecera ali, ao lado do seu amor com o pároco, um demônio implacável para a escarnecer e apupar. Amaro, querendo-a tranqüilizar, dizia-lhe que o nosso santo padre Pio IX, ultimamente, declarara pecado crer em pessoas possessas...
- Mas para que há rezas, então, e exorcismos?
- Isso é da religião velha. Agora vai-se mudar tudo isso... Enfim a ciência é a ciência...
Ela pressentia que Amaro a enganava - e a Totó estragava a sua felicidade. Enfim Amaro achou o meio de escaparem à "maldita rapariga": era entrarem ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar a cozinha para subir a escada, e a posição da cama da Totó, na alcova, não lhe permitia vê-los, quando eles cautelosamente passassem pé ante pé. Era fácil, de resto, porque à hora do rendez-vous, entre as onze e o meio-dia, nos dias da semana, a sacristia estava deserta.
Mas sucedia que, quando eles entravam em pontas de pés e mordendo a respiração, os seus passos, por mais sutis, faziam ranger os velhos degraus da escada. E então a voz da Totó saía da alcova, uma voz rouca e áspera, berrando:
- Passa fora, cão! passa fora, cão!
Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a paralítica. Amélia tremia, toda branca.
E a criatura uivava de dentro:
- Lá vão os cães! lá vão os cães!
Eles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se por dentro. Mas aquela voz de um desolamento lúgubre, que lhes parecia vir dos infernos, chegava-lhes ainda, perseguia-os:
- Estão a pegar-se os cães! Estão a pegar-se os cães!
Amélia caía sobre o catre, quase desmaiada de terror. Jurava não voltar àquela casa maldita...
- Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre furioso. Onde nos havemos de ver então? Queres que nos deitemos nos bancos da sacristia?
- Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava Amélia, apertando as mãos.
- Nada! É doida... E o pobre tio Esguelhas tem tido um desgosto... Enfim, que queres que lhe faça?
Ela não respondia. Mas em casa, quando se ia aproximando o dia do rendez-vous, começava a tremer à idéia daquela voz que lhe atroava sempre nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror ia-a despertando lentamente do adormecimento de todo o ser, em que caíra nos braços do pároco. Interrogava-se agora: não andaria cometendo um pecado irremissível? As afirmações de Amaro, assegurando-lhe o perdão do Senhor, já não a tranqüilizavam. Ela bem via, quando a Totó uivava, uma palidez cobrir o rosto do pároco, como correr-lhe no corpo um calafrio do inferno entrevisto. E se Deus os desculpava - por que deixava assim o demônio atirar- lhes, pela voz da paralítica, a injúria e o escárnio?

Ajoelhava então aos pés da cama, arremessava orações sem fim para Nossa Senhora das Dores, pedindo-lhe que a alumiasse, que lhe dissesse o que era aquela perseguição da Totó, e se era sua intenção divina mandar- lhe assim um aviso medonho. Mas Nossa Senhora não lhe respondia. Não a sentia como outrora descer do Céu às suas orações, entrar-lhe na alma aquela tranqüilidade suave como uma onda de leite que era uma visitação da Senhora. Ficava toda murcha, torcendo as mãos, abandonada da graça. Prometia então não voltar a casa do sineiro; - mas quando o dia chegava, à idéia de Amaro, do leito, daqueles beijos que lhe levavam a alma; daquele fogo que a penetrava, sentia-se toda fraca contra a tentação; vestia-se, jurando que era a última vez; e ao toque das onze partia, com as orelhas a arder, o coração tremendo da voz da Totó que ia ouvir, as entranhas abrasando-se no desejo do homem que a ia atirar para cima da enxerga.
Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos.
Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se á autoridade sagrada da sua batina. Ele então, vendo-a chegar tão pálida e tão transtornada, galhofava para a tranqüilizar. Não, era uma tolice, se iam agora estragar o regalozinho daquelas manhãs, porque havia uma doida na casa! Prometera-lhe de resto procurar outro sítio para se verem; e mesmo com o fim de a distrair, aproveitando a solidão da sacristia, mostrava-lhe às vezes os paramentos, os cálices, as vestimentas, procurando interessá-la por um frontal novo ou por uma antiga renda de sobrepeliz, provando-lhe, pela familiaridade com que tocava nas relíquias, que era ainda o senhor pároco e não perdera o seu crédito no Céu.
Foi assim que uma manhã lhe fez ver uma capa de Nossa Senhora, que havia dias chegara de presente duma devota rica de Ourém. Amélia admirou-a muito. Era de cetim azul, representando um firmamento, com estrelas bordadas, e um centro, de lavor rico, onde flamejava um coração de ouro cercado de rosas de ouro. Amaro desdobrara-a, fazendo cintilar junto da janela os bordados espessos.
- Rica obra, hem? centos de mil-réis... Experimentamo-la ontem na imagem... Vai-lhe como um brinco. Um bocadito comprida, talvez... - E olhando Amélia, numa comparação da sua alta estatura com a figura atarracada da imagem da Senhora: - A ti é que te havia de ficar bem. Deixa ver...
Ela recuou:
- Não, credo, que pecado!
- Tolice! disse ele adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro de cetim branco, duma alvura de nuvem matutina. Não esta benzida... É como se viesse da modista.
- Não, não, dizia ela frouxamente, com os olhos jà1uzidios de desejo. Ele então zangou-se. Queria talvez saber melhor do que ele o que era pecado, não? Vinha agora a menina ensinar-lhe o respeito que se deve aos vestuários dos santos?
- Ora não seja tola. Deixe ver.
Pôs-lha aos ombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata lavrada. E afastou-se para a contemplar toda envolvida no manto, assustada e imóvel, com um sorriso cálido de gozo devoto.
- Oh filhinha, que linda que ficas!
Ela então, movendo-se com uma cautela solene, chegou-se ao espelho da sacristia - um antigo espelho de reflexo esverdeado, com um caixilho negro de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz. Mirou-se um momento, naquela seda azul-celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo das estrelas, com uma magnificência sideral. Sentia-lhe o peso rico. A santidade que o manto adquirira no contato com os ombros da imagem penetrava-a duma vo1uptuosidade beata. Um fluido mais doce que o ar da terra envolvia-a, fazia-lhe passar no corpo a carícia do éter do Paraíso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou mais alto, no Céu...
Amaro babava-se para ela:
- Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhoras!
Ela deu uma olhadela viva ao espelho. Era, decerto, linda. Não tanto como Nossa Senhora... Mas cora o seu rosto trigueiro, de lábios rubros, a1umiado por aquele rebrilho dos olhos negros, se estivesse sobre o altar, com cantos ao órgão e um culto sussurrando em redor, faria palpitar bem forte o coração dos fiéis...
Amaro então chegou-se por detrás dela, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda - e estendendo os lábios por sobre os dela, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos de Amélia cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para trás, pesada de desejo. Os beiços do padre não se desprendiam, ávidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração dela apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre, descorada e morta de gozo.
Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as pálpebras como acordada de muito longe; uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:
- Oh! Amaro, que horror, que pecado!...
- Tolice! disse ele.
Mas ela desprendia-se do manto, toda aflita:
- Tira-mo, tira-mo! gritava, como se a seda a queimasse.
Então Amaro fez-se muito sério. Realmente não se devia brincar com coisas sagradas...
- Mas não está benzida... Não tem dúvida...
Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lençol branco, colocou-o no gavetão, sem uma palavra. Amélia olhava-o petrificada; e só os seus lábios pálidos se moviam numa oração.
Quando ele lhe disse, enfim, que eram horas de irem a casa do sineiro - recuou, como diante do demônio que a chamasse.
- Hoje não! exclamou, implorando-o.
Ele insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ela bem sabia que não era pecado, quando as coisas não estavam benzidas... Era ser muito pobre de espirito... Que demônio, só meia hora, ou um quarto de hora!
Ela, sem responder, ia-se aproximando da porta.
- Então não queres?
Ela voltou-se, e com uns olhos suplicantes:
- Hoje não!
Amaro encolheu os ombros. E Amélia atravessou rapidamente a igreja, de cabeça baixa e olhos nas lajes, como se passasse entre as ameaças cruzadas dos santos indignados.
···
No dia seguinte de manhã, a S. Joaneira, que estava na sala de jantar, sentindo o senhor cônego subir soprando forte, veio encontrá-lo à escada e fechou-se com ele na saleta.
Queria contar-lhe a aflição que tivera de madrugada. A Amélia acordara de repente aos gritos, que Nossa Senhora lhe estava a pousar o pé no pescoço! que sufocava! que a Totó a queimava por detrás! e que as labaredas do Inferno subiam mais alto que as torres da Sé!... Enfim um horror!... Viera encontrá-la em camisa a correr pelo quarto, como doida. Daí a pouco caíra para o lado com um ataque de nervos. Toda a casa estivera em alvoroço... A pobre pequena lá estava de cama, e em toda a manhã apenas tocara numa colher de caldo.
- Pesadelos, disse o cônego. Indigestão!
- Ai, senhor cônego, não! exclamou a S. Joaneira, que parecia acabrunhada, sentada diante dele na borda duma cadeira. É outra coisa: são aquelas desgraçadas visitas à filha do sineiro!
E então desabafou, com a efusão labial de quem abre os diques a um descontentamento acumulado. Nunca quisera dizer nada, porque enfim reconhecia que era uma grande obra de caridade. Mas, desde que aquilo começara, a rapariga parecia transtornada. Ultimamente, então, andava de todo. Ora alegrias sem razão, ora umas trombas de dar melancolia aos móveis. De noite sentia-a passear pela casa até tarde, abrir as janelas... Às vezes tinha até medo de lhe ver o olhar tão esquisito: quando vinha de casa do sineiro era sempre branca como a cal, a cair de fraqueza. Tinha de tomar logo um caldo... Enfim, dizia-se que a Totó tinha o demônio no corpo. E o senhor chantre, o outro que tinha morrido (Deus lhe fale na alma), costumava dizer que, neste mundo, as duas coisas que se pegavam mais às mulheres eram tísicas e demônio no corpo. Parecia-lhe, pois, que não devia consentir que a pequena fosse a casa do sineiro, sem estar certa que aquilo nem lhe prejudicava a saúde, nem lhe prejudicava a alma. Enfim, queria que uma pessoa de juízo, de experiência, fosse examinar a Totó...

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