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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Auto da Barca do Inferno - Gil Vicente [parte 4]


Levai o cabrão na trela!
Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:
CORREGEDOR Hou da barca!
DIABO Que quereis?
CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?
DIABO Oh amador de perdiz.
gentil cárrega trazeis!
CORREGEDOR No meu ar conhecereis
que não é ela do meu jeito.
DIABO Como vai lá o direito?
CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.
DIABO Ora, pois, entrai. Veremos
que diz i nesse papel...
CORREGEDOR E onde vai o batel?
DIABO No Inferno vos poeremos.
CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há-de ir um corregedor?
DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!
Ora, entrai, pois que viestes! 

CORREGEDOR Non est de regulae juris, não!
DIABO Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nacestes
pera nosso companheiro.
- Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes!
CORREGEDOR Oh! Renego da viagem
e de quem me há-de levar!
Há 'qui meirinho do mar?
DIABO Não há tal costumagem.
CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem,
nem hoc nom potest esse.
DIABO Se ora vos parecesse
que nom sei mais que linguagem...
Entrai, entrai, corregedor!
CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis -
Super jure magestatis
tem vosso mando vigor?
DIABO Quando éreis ouvidor
nonne accepistis rapina?
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for...
Oh! que isca esse papel
pera um fogo que eu sei!
CORREGEDOR Domine, memento mei!
DIABO Non es tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia.
CORREGEDOR Sempre ego justitia
fecit, e bem por nivel.
DIABO E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?
CORREGEDOR Isso eu não o tomava
eram lá percalços seus.
Nom som pecatus meus,
peccavit uxore mea.
DIABO Et vobis quoque cum ea,
não temuistis Deus.
A largo modo adquiristis
sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?
CORREGEDOR Vós, arrais, nonne legistis
que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...
DIABO Ora entrai, nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.
CORREGEDOR E na terra dos danados
estão os Evangelistas?
DIABO Os mestres das burlas vistas
lá estão bem fraguados.
Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal chegou um Procurador, carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:
CORREGEDOR Ó senhor Procurador!
PROCURADOR Bejo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz esse arrais? Que diz?
DIABO Que serês bom remador.
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando na bomba.
PROCURADOR E este barqueiro zomba...
Jogatais de zombador?
Essa gente que aí está
pera onde a levais?
DIABO Pera as penas infernais.
PROCURADOR Dix! Nom vou eu pera lá!
Outro navio está cá,
muito milhor assombrado.
DIABO Ora estás bem aviado!
Entra, muitieramá!
CORREGEDOR Confessaste-vos, doutor?
PROCURADOR Bacharel som. Dou-me à Demo!
Não cuidei que era extremo,
nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
CORREGEDOR Eu mui bem me confessei,
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor...

Porque, se o nom tornais,
não vos querem absolver,
e é mui mau de volver
depois que o apanhais.
DIABO Pois porque nom embarcais?
PROCURADOR Quia speramus in Deo.
DIABO Imbarquemini in barco meo...
Pera que esperatis mais?

Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:
CORREGEDOR Ó arrais dos gloriosos,
passai-nos neste batel!
ANJO Oh! pragas pera papel,
pera as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!
CORREGEDOR Oh! habeatis clemência
e passai-nos como vossos!
PARVO Hou, homens dos breviairos,
rapinastis coelhorum
et pernis perdigotorum
e mijais nos campanairos!
CORREGEDOR Oh! não nos sejais contrairos,
pois nom temos outra ponte!
PARVO Belequinis ubi sunt?
Ego latinus macairos.
ANJO A justiça divinal
vos manda vir carregados
porque vades embarcados
nesse batel infernal.
CORREGEDOR Oh! nom praza a São Marçal!
coa ribeira, nem co rio!
Cuidam lá que é desvario
haver cá tamanho mal!
PROCURADOR Que ribeira é esta tal!
PARVO Parecês-me vós a mi
como cagado nebri,
mandado no Sardoal.
Embarquetis in zambuquis!
CORREGEDOR Venha a negra prancha cá!
Vamos ver este segredo.
PROCURADOR Diz um texto do Degredo...
DIABO Entrai, que cá se dirá!
E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brízida Vaz, porque a conhecia:
CORREGEDOR Oh! esteis muitieramá,
senhora Brízida Vaz!
BRÍZIDA Já siquer estou em paz,
que não me leixáveis lá.
Cada hora sentenciada:
«Justiça que manda fazer....»
CORREGEDOR E vós... tornar a tecer
e urdir outra meada.

BRÍZIDA Dizede, juiz d'alçada:
vem lá Pêro de Lixboa?
Levá-lo-emos à toa
e irá nesta barcada.
Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse o Arrais, tanto que chegou:
DIABO Venhais embora, enforcado!
Que diz lá Garcia Moniz?
ENFORCADO Eu te direi que ele diz:
que fui bem-aventurado
em morrer dependurado
como o tordo na buiz,
e diz que os feitos que eu fiz
me fazem canonizado.
DIABO Entra cá, governarás
atá as portas do Inferno.
ENFORCADO Nom é essa a nau que eu governo.
DIABO Mando-te eu que aqui irás.
ENFORCADO Oh! nom praza a Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás...
E disse que a Deus prouvera
que fora ele o enforcado;
e que fosse Deus louvado
que em bo'hora eu cá nacera;
e que o Senhor m'escolhera;
e por bem vi beleguins.
E com isto mil latins,
mui lindos, feitos de cera.
E, no passo derradeiro,
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro;
nem guardião do mosteiro
nom tinha tão santa gente
como Afonso Valente
que é agora carcereiro.
DIABO Dava-te consolação
isso, ou algum esforço?
ENFORCADO Com o baraço no pescoço,
mui mal presta a pregação...
E ele leva a devação
que há-de tornar a jentar...
Mas quem há-de estar no ar
avorrece-lhe o sermão.
DIABO Entra, entra no batel,
que ao Inferno hás-de ir!
ENFORCADO O Moniz há-de mentir?
Disse-me que com São Miguel
jantaria pão e mel
tanto que fosse enforcado.
Ora, já passei meu fado,

e já feito é o burel.
Agora não sei que é isso:
não me falou em ribeira,
nem barqueiro, nem barqueira,
senão - logo ò Paraíso.
Isto muito em seu siso.
e era santo o meu baraço...
Eu não sei que aqui faço:
que é desta glória improviso?
DIABO Falou-te no Purgatório?
ENFORCADO Disse que era o Limoeiro,
e ora por ele o salteiro
e o pregão vitatório;
e que era mui notório
que àqueles deciprinados
eram horas dos finados
e missas de São Gregório.

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