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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 16]


Três encantadoras raparigas da Secção de Propaganda pela Voz Sintética caíram sobre ele quando ia a
sair do elevador.
- Oh! Helmholtz, meu querido, vem conosco fazer um piquenique nos prados de Exmoor!
Agarraram-se a ele, implorantes. Ele acenou negativamente com a cabeça e desnvencilhou-se delas,
abrindo passagem.
- Não, não.
- Não convidaremos outro homem. Mas Helmholtz não se deixou abalar pela deliciosa promessa.
- Não - repetiu -, tenho que fazer. - E continuou o seu caminho.
As raparigas arrastaram-se atrás dele. Apenas quando subiu para o helicóptero de Bernard e fechou a
porta elas abandonaram a perseguição. E não sem recriminações.
- Estas mulheres! - disse, enquanto o aparelho se elevava no ar. - Estas mulheres! - Sacudiu a cabeça,
franzindo o sobrolho. - São uma estopada!
Bernard exprimiu hipocritamente o seu acordo, mas teria desejado no momento em que pronunciava as
palavras ter tantas jovens como Helmholtz, e com a mesma facilidade. Foi tomado de um súbito e
urgente desejo de se gabar.
- Vou levar Lenina Crowne ao Novo México - disse no tom mais banal que lhe foi possível.
- Sério? - perguntou Helmholtz, com uma total ausência de interesse. Depois, após uma pequena pausa:
- Há uma semana ou duas que abandonei todas as minhas comissões e todas as minhas mulheres. Não
calcula que complicações eles arranjaram no Colégio. O que não impede que tenha valido a pena,
parece-me. Os efeitos... - Hesitou. - Bem! São bizarros, muito estranhos.
Uma insuficiência física podia produzir uma espécie de excesso mental. O processo era aparentemente
reversível. O excesso mental podia produzir, para fins pessoais, a cegueira e a surdez voluntárias da
solidão deliberadamente desejada, a impotência artificial do ascetismo.

O resto do caminho foi feito em silêncio. Uma vez chegados e confortavelmente instalados nos divãs
pneumáticos do quarto de Bernard, Helmholtz voltou à carga.
Falando muito lentamente, perguntou:
- já sentiu alguma vez a sensação de ter em si qualquer coisa que só espera que lhe seja dada uma
oportunidade para sair? Qualquer excesso de força para que não tenha utilização? Sabe bem como é;
como, por exemplo, o excedente de água que se precipita em cataratas em vez de passar pelas turbinas.
Dirigiu a Bernard Marx um olhar interrogador.
- Quer dizer: todas as emoções que se poderia experimentar se as coisas fossem outras?
Helmholtz negou com a cabeça.
- Não é bem isso. Penso numa sensação estranha que algumas vezes sinto, a sensação de ter alguma
coisa de importante a dizer e o poder de a exprimir, mas sem saber o quê e sem conseguir fazer uso
desse poder. Se houvesse alguma outra maneira de escrever. Ou outros assuntos a tratar... - Calou-se.
Depois continuou: - Você sabe bem que sou bastante hábil na invenção de frases, compreende, palavras
de tal natureza que o façam subitamente sobressaltar, como se tivesse sentado num alfinete, de tal
maneira parecem novas e produzem um efeito de superexcitação, se bem que se refiram a uma coisa
hipnopedicamente evidente. Mas isso não me parece suficiente. Não basta que as fórmulas sejam boas;
o que se faz deve ser também bom.
- Mas as coisas que você faz são boas, Helmholtz.
- Oh! No seu raio de ação. - Helmholtz encolheu os ombros. - Mas é um raio de ação muito pequeno.
O que faço não é, segundo me parece, bastante importante. Tenho a sensação de poder fazer qualquer
coisa muito mais importante. Sim, mais intensa, mais violenta. Mas o quê? Que há de mais importante
para dizer? E como se pode demonstrar violência sobre assuntos do gênero que se é obrigado a tratar?
As palavras podem ser semelhantes aos raios X se delas nos servirmos convenientemente. Atravessam
tudo. Lê-se e é-se atravessado. Esta é uma das coisas que tento ensinar aos meus alunos: escrever de
uma maneira perfurante. Mas que diabo de interesse pode haver em alguém ser atravessado por um
artigo sobre os cantos em comum ou sobre o último aperfeiçoamento dos órgãos de perfumes Além
disso, pode-se fazer que as palavras sejam verdadeiramente perfurantes - sabe como é, uma espécie de
raios X mais
duros -, quando se trata de assuntos deste gênero? Pode-se dizer alguma coisa a respeito de nada? Eis
ao que isto se reduz, no fim de contas. Esforço-me e torno-me a esforçar ...
- Chiu! - disse subitamente Bernard, erguendo um dedo em sinal de advertência. Depois escutou. -
Creio que está alguém atrás da porta - murmurou.
Helmholtz levantou-se, atravessou o quarto na ponta dos pés e, num movimento vivo e rápido, abriu a
porta para trás. Não havia ninguém, evidentemente.
- Estou desolado - disse Bernard, sentindo a desagradável sensação de ter sido ridículo. - Devo ter os
nervos um pouco excitados. Quando as pessoas se mostram cheias de suspeitas a nosso respeito,
começamos também a suspeitar delas. - Passou a mão pelos olhos e suspirou. A sua voz tornou-se
queixosa, justificou-se: - Se soubesse o que tenho suportado desde algum tempo para cá! - disse num
tom quase choroso. A pressão da sua piedade sobre si mesmo parecia uma fonte que repentinamente
começasse a jorrar. - Se soubesse!
Helmholtz Watson ouviu-o com uma certa sensação de vergonha.
«Pobre Bernard!», pensou. Mas ao mesmo tempo sentiu um pouco de constrangimento pelo seu amigo.
Teria desejado que Bernard desse provas de um pouco mais de amor-próprio.

CAPÍTULO QUINTO
Depois das oito horas da tarde, começou a escurecer. Os alto-falantes da torre do edifício principal do
clube de Stoke Poges começaram, numa voz de tenor, que tinha qualquer coisa de não humano, a
anunciar o encerramento dos campos de golf. Dos prados do Trust das Secreções Internas e Externas
chegavam os mugidos desses milhares de animais que forneciam, com as suas hormonas e o seu leite,
as matérias-primas destinadas à grande fábrica de Farnham Royal. Um constante zumbido de
helicópteros enchia o crepúsculo. Com intervalos regulares de dois minutos e meio, uma campainha e
silvos agudos anunciavam a partida de mais um dos comboios ligeiros em monocarril que reconduziam
do seu campo próprio à capital os jogadores de golf das castas inferiores.
Lenina e Henry subiram para o seu aparelho e partiram. A duzentos e cinquenta metros, Henry
diminuiu um pouco a velocidade das hélices do helicóptero. Conservaram-se, assim, suspensos um
minuto ou dois sobre a paisagem que desaparecia nas sombras. A floresta de Burnham Beeches
estendia-se, como um vasto e obscuro lago, em direção ao extremo brilhante do céu ocidental. Rubra
no horizonte, a luz que ainda restava do pôr do sol diminuía de intensidade para cima, passando do
alaranjado ao amarelo e a um pálido e líquido verde. Ao norte, além e por cima das árvores, a Fábrica
de Secreções Internas e Externas projetava uma luz elétrica e crua por cada uma das janelas dos seus
vinte andares. Por baixo deles estendiam-se as construções do clube de golf, as enormes casernas das
castas inferiores e, do outro lado do muro de separação, as casas mais pequenas reservadas aos sócios
Alfas e Betas. As vias de acesso à estação do monocarril estavam enegrecidas pela atividade das
castas inferiores, semelhante à das formigas. De sob a cúpula de vidro um comboio iluminado saiu para
o espaço livre. Seguindo-lhe
o percurso, em direção ao sudoeste, pela planície sombria, os seus olhos foram atraídos pelos
majestosos edifícios do crematório de Slough. A fim de garantir a segurança dos aviões, em voo
noturno, as suas quatro altas chaminés estavam iluminadas por projetores e coroadas por sinais
vermelhos de perigo. Era um ponto de referência.
- Por que razão essas chaminés têm em volta aquelas coisas que parecem varandas? - perguntou
Lenina.

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