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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 15]

O terraço do edifício principal estava efervescente com a chegada e a partida dos helicópteros.
- Safa! - disse Lenina. - Estou muito contente por não ser uma Gama.
Dez minutos mais tarde estavam em Stoke Poges e tinham começado a primeira volta de golf de
obstáculos.
Conservando os olhos baixos a maior parte do tempo e desviando-os imediatamente se, por acaso,
caíam sobre os seus semelhantes, Bernard apressou-se a atravessar o terraço. Parecia-se com um
homem que fosse perseguido, mas perseguido por inimigos que não queria ver, temendo que eles lhe
parecessem ainda mais temíveis do que havia imaginado, e que, portanto, lhe fizessem experimentar
uma sensação de maior culpa e de ainda mais profunda solidão.
«Esse antipático Benito Hoover!» E, no entanto, o rapaz agira, em suma, com boa intenção. O que era
ainda pior, considerando as coisas sob um certo ponto de vista. Os que tinham boas intenções
conduziam-se da mesma maneira que os que tinham más. A própria Lenina fazia-o sofrer. Lembrou-se
dessas semanas de tímida indecisão, durante as quais tinha contemplado, desejado, desesperando de
vir alguma vez a ter coragem para a convidar. Ousaria ele correr o risco de ser humilhado por uma
recusa depreciativa? Mas se ela dissesse sim, que delirante felicidade! E eis que ela lho havia dito. E
ele continuava miserável, miserável porque ela tinha achado que estava uma magnífica tarde para o
golf de obstáculos, porque ela fora, sem nenhuma explicação, ter com Henry Foster, porque ela achara
engraçado que não se falasse em público dos seus assuntos pessoais. Miserável, numa palavra, porque
ela se conduzira como o devia fazer toda a jovem inglesa sã e virtuosa, e não de qualquer outra maneira
anormal e extraordinária.

Abriu a porta do seu hangar privativo e ordenou a dois empregados Deltas-Menos que estavam
preguiçando que trouxessem o seu aparelho para o terraço. Os hangares eram servidos por um único
grupo Bokanovsky, e esses homens eram gêmeos, identicamente pequenos, negros e detestáveis.
Bernard deu as suas ordens no tom ríspido, um pouco arrogante, e mesmo ofensivo, daquele que não se
sente muito seguro da sua superioridade. Ter relações com representantes das classes inferiores era
sempre, para Bernard, uma sensação desagradável. Pois, qualquer que tivesse sido a causa (e podia ser
muito bem que os rumores que corriam a respeito do álcool do seu pseudo-sangue fossem exatos -
apesar de tudo, acontecem sempre acidentes), o físico de Bernard não era muito melhor que o de um
Gama-Médio. Tinha oito centímetros a menos que a altura regulamentar dos Alfas e era
proporcionalmente delgado. O contacto com representantes das classes inferiores lembrava-lhe sempre
dolorosamente essa insuficiência física. «Eu sou eu, e bem gostaria de o não ser. » O sentimento do eu
era nele intenso e desolador. Cada vez que tinha de olhar para um Delta à altura dos seus olhos, em vez
de baixar o olhar, sentia-se humilhado. Tratá-lo-ia essa criatura com o respeito devido à sua casta? Esta
pergunta obcecava-o. E não sem razão, pois os Gamas, os Deltas e os epsilões tinham sido
condicionados até um certo ponto de maneira a associar a massa corporal com a superioridade social.
De fato, um ligeiro preconceito hipnopédico em favor da estatura era universal. Daí o riso das
mulheres a quem ele fazia propostas, as partidas que lhe pregavam os seus iguais. Sob o efeito da
troça, sentia-se um pária e, sentindo-se um pária, conduzia-se como tal, o que fortalecia a prevenção
contra ele e intensificava o desprezo e a hostilidade que os seus defeitos físicos despertavam. Coisa
que, por sua vez, aumentava o sentimento que experimentava de ser estranho e solitário. Um temor
crônico de ser desprezado fazia-o evitar os seus iguais e tomar em relação aos inferiores uma atitude
cheia de dureza e de exacerbado sentimento do seu eu. Como invejava amargamente homens como
Henry Foster e Benito Hoover! Homens que nunca eram obrigados a dirigirem-se a um Epsilão
gritando para serem obedecidos; homens para quem a sua posição era uma coisa evidente; homens que
se moviam no sistema de castas como um peixe na água, tão perfeitamente à vontade que não tinham
consciência nem de si mesmos, nem do elemento benfazejo e confortável em que viviam.
Indolentemente e de má vontade, pareceu-lhe, os empregados
gêmeos empurraram o seu helicóptero do hangar para o terraço.
- Despachem-se! - disse Bernard, irritado. Um deles lançou-lhe um olhar. Seria troça o que ele
distinguia nesses olhos, cinzentos e vazios? - Despachem-se! - gritou mais alto. A sua voz tinha um
timbre desagradavelmente rouco.
Subiu para o helicóptero e um minuto depois voava para sul, em direção ao rio.
As diversas Secções de Propaganda e o Colégio dos Engenheiros em Emoção estavam instalados no
mesmo edifício de sessenta andares de Fleet Street. No subsolo e andares inferiores encontravam-se
as tipografias e os escritórios dos três grandes jornais de Londres: O Rádio Horário, jornal para as
castas superiores; A Gazeta dos Gamas, verde-pálido, e, em papel cor de caqui e exclusivamente em
palavras de uma sílaba, O Espelho dos Deltas. Depois seguiam-se os Escritórios de Propaganda.
pela Televisão, pelo Cinema Perceptível, pela Voz e pela Música Sintéticas, que ocupavam vinte e dois
andares. Por cima estavam os laboratórios de estudos e câmaras acolchoadas onde os registradores de
sons e os compositores sintéticos efetuavam seu delicado trabalho. Os dezoito últimos andares eram
ocupados pelo Colégio de Engenheiros em Emoção.
Bernard pisou no terraço da Casa de Propaganda e desceu do aparelho.
- Telefone ao senhor Helmholtz Watson - ordenou ao porteiro - e diga-lhe que o senhor Bernard Marx
o espera no terraço.
Sentou-se e acendeu um cigarro. Helmholtz estava a escrever quando recebeu o telefonema.
- Diga-lhe que vou imediatamente - respondeu. E desligou o aparelho. Em seguida, virando-se para a
sua secretária, continuou no mesmo tom oficial e impessoal: - Deixo ao seu cuidado a arrumação
dos meus trabalhos. - E, fingindo não reparar no seu sorriso luminoso, levantou-se e dirigiu-se em
passo rápido para a porta.
Era um homem solidamente constituído, de peito amplo, largas costas, maciço e, no entanto, vivo
de movimentos, elástico e ágil. O pilar redondo e sólido do pescoço sustentava uma cabeça de forma
admirável. Os cabelos eram escuros e encaracolados, as feições fortemente marcadas. O seu gênero
vigoroso e imperativo, era belo e tinha nitidamente o aspecto (como a sua secretária nunca se cansava
de lhe dizer) de um Alfa-Mais até ao mais ínfimo pormenor. Exercia a profissão de regente de
conferências no Colégio dos Engenheiros em Emoção (Secção de Escrita) e no intervalo das suas
atividades educativas era, efetivamente, engenheiro em emoção. Escrevia regularmente no Rádio
Horário, compunha cenários para filmes perceptíveis e possuía um dom incomparável para descobrir
fórmulas e slogans hipnopédicos.
"Competente", tal era a opinião dos chefes a seu respeito. "Talvez (e agitavam a cabeça, baixando
a voz significativamente) um pouco competente em demasia. "
Sim, um pouco competente em demasia. Eles tinham razão. Um excesso mental tinha produzido em
Helmholtz Watson efeitos muito análogos aos que, em Bernard Marx, eram resultado de um defeito
físico. Uma insuficiência óssea e muscular tinha isolado Bernard dos seus semelhantes e o sentimento
que ele possuía de ser um indivíduo à parte era considerado, segundo as normas correntes, um excesso
mental, o que, por sua vez, se tornava uma causa de afastamento mais acentuado. O que tão
desagradavelmente dera a Helmholtz consciência de si próprio e de estar totalmente só era um excesso
de capacidade. Estes dois homens tinham em comum a consciência de serem indivíduos. Mas enquanto
Bernard, o fisicamente deficiente, sofrera toda a sua vida pela consciência de ser um indivíduo à parte,
Helmholtz Watson, pelo contrário, só muito recentemente, tendo conhecimento do seu excesso mental,
compreendera igualmente o que o diferenciava daqueles que o rodeavam. Esse campeão de bola
escalator, esse amante infatigável (dizia-se que se tinha deitado com seiscentas raparigas diferentes em
menos de quatro anos), esse admirável homem de comissões, esse camarada por todos apreciado,
compreendeu subitamente que o desporto, as mulheres, as atividades de comando, nada mais eram, no
que lhe dizia respeito, senão coisas sem importância. Na realidade e no fundo, interessava-se por
qualquer outra coisa. Mas qual? Qual? Era esse o problema que Bernard vinha discutir com ele, ou,
melhor, visto que era Helmholtz quem dizia sempre tudo o que havia a dizer, ouvir discutir o seu amigo
uma vez mais.

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