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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Carta a Marx - Daniel Piza

Querido Karl,

Sei que deve parecer estranho que alguém mande uma carta para um morto, mesmo porque aí onde você está não deve haver luz suficiente para enxergar estas palavras.  Mas, como você pode imaginar, muita gente continua a querer ressuscitá-lo do nosso eterno, como um Lázaro ateu - ou  melhor, como um Moisés ateus, pois o que se espera de você são mandamentos verbais definitivos. Certamente o número de pessoas que andaram batendo à porta de seu caixão deve ter diminuído sensivelmente nos últimos anos, mas decidi alertá-lo de que sua tão desejada paz não parece estar a caminho, não.  Não se engane com o aparente silêncio que o rodeia.  O espectro do consumismo ronda sua lápide.

Por aqui está tudo muito diferente e confuso.  As flutuações financeiras obrigam as economias a reequilíbrios  mais difíceis do que os dos bailarinos russos.  Quarteirão com Queijo, videogame. Os filipinos falam inglês, os japoneses usam bermuda e os brasileiros acham que estão numa "nice" com sua "bike".  As empresas estão tão boazinhas que o operário, quando fica triste, pode pregar um pininho vermelho no quadro de avisos para solicitar carinho e compreensão dos colegas e superiores. Desde 1989 não resta nenhum comunista sobre a Terra, e mesmo alguns que se dizem "socialistas" não estão muito convictos do que pretendem colocar no lugar.  Até a múmia de Lenin saiu da cena pública, e Fidel Castro andou aparecendo sem uniforme.





Mas nem tudo mudou, e é por isso que estou lhe escrevendo - me dando ao trabalho  de escrever uma carta em vez de um e-mail, porque imagino que você não tenha computador aí.  (Se quiser, tenho o telefone de um contrabandista bastante correto. Posso falar com ele para lhe dar um desconto.)  Como disse, o sistema financeiro anda fazendo uma barulheira dos diabos - e isso, caro Marx, tem feito pessoas invocarem seu santo nome em vão.  Eles dizem que, mais do que um panfletário do socialismo, você foi um crítico do capitalismo, um pensador tipo David Ricardo ou Adam Smith - a quem você tanto respeitava - que analisou crua e friamente o sistema do capital.  Dizem que você, como um Jesus Cristo ateu, mostrou que a ganância  cumulativa dos ricos leva a um empobrecimento cada vez maior dos pobres. Em suas palavras, que os donos dos meios de produção obrigam os trabalhadores a produzir mais em menos tempo, lucrando com o aumento da produtividade, e que este aumento da produtividade não faz aumentar os salários. Essa exploração, acredita-se, foi definida com um conceito bastante sutil, "mais-valia", que você retirou de Ricardo e preencheu de denúncia social, num livro inacabado cujo título é O Capital.

Dizem mais, Karl: dizem que, em contrapartida ao empobrecimento da classe dominada, você previu, como um profeta Ezequiel ateu, que a classe dominante levaria a Taxa Geral de Lucro a um ponto tal que cartelizaria toda a economia e a condenaria à atrofia e, pois, à morte. Não, não, nem todo mundo leu em A Ideologia Alemã que, nesse estágio, ou o proletariado teria consciência e assumiria o controle dos meios produtivos, ou tudo iria por água abaixo.  Karl, lamento informar, mas há muitas outras coisas que você escreveu e quase ninguém leu, ou que quem leu fingiu não entender.  Você foi à favor daquela corrida cobiçosa para o Oeste americano, em que índios mexicanos foram mortos por pessoas cujo único interesse era enriquecer às custas dos outros.  Você jamais acreditou no estabelecimento do socialismo-seguido-de-comunismo num país subdesenvolvido, em que as forças de produção não estivessem livres e prósperas, atuando a todo vapor.  Você nunca disse que uma classe de intelectuais auto-eleitos poderia conduzir a economia a um nível em que o trabalho assalariado estivesse extinto, por força exclusiva de vontade política.  Mas um monte de pessoas - incontáveis mesmo, Karl - não deu ouvidos a suas ressalvas. Quiseram "queimar etapas históricas", que você voraz leitor de Hegel, não pensava que pudessem ser queimadas pelo homem.

O pior, Karl, é que entre essas pessoas havia um bocado de homem inteligentes.  Alguns deles estão vivos, mas eles renegam o passado ou dizem não estar arrependidos.  "Pega bem" ter sido rebelde na juventude, você sabe como é.  Garante vagas no Congresso Nacional e jetons bastante polpudos.  E para que olhar para trás com os olhos críticos?  O passado  só existe na memória e, portanto, deve ser idílico.  Os milhões de homens mortos, de livros censurados e de famintos multiplicados não - eles estavam querendo o bem universal, o paraíso terreno, e foram as forças do conservadorismo que solaparam seus ideais, mas as intenções eram as melhores possíveis. Justificam qualquer violência.

E esse é meu medo agora, Karl.  Há quem ache que você está vivo poque o capitalismo continua aí, enriquecendo os ricos e empobrecendo os pobres, causando desemprego, miséria e ressentimento. A tal globalização não passa de um avanço nesse processo, uma forma de neocolonialismo virtual.  Não faz diferença nenhuma para o moscovita ter ou não ter um McDonald´s na esquina e um Nike no pé: ele continua a ser explorado. Agora, em vez de derrubarem napalms na cabeça dos asiáticos, as superpotências estão lançando derivativos contra pobres coitados, derrubando Estados Nacionais com a especulação digital e manipulando suas políticas econômicas com multinacionais hiperpoderosas.  Para completar, o esporte é o ócio do povo, Michael Jordan e Ronaldo ganham salários astronômicos dos Grandes Capitalistas Mundiais para ocultar, em rede internacional de TV a cabo, a opressão sofrida pela maioria silenciosa.  (Esses ruídos de pagode que você deve ouvir de vez em quando são apenas outro mecanismos de cooperação das massas.  Elas são ideologicamente silenciosas.)

Piores ainda Karl - embora você não possa entender, porque escrevia com penas de nanquim -, são essas maquininhas que eles colocam nas casas das pessoas para que elas não saiam e não vejam os meninos de rua abordando as BMWs, para que não conheçam o lado verdadeiro do progresso.  Se alguém disser que a tecnologia, especialmente a partir de agora, pode aumentar a produtividade e permitir um acesso maior das classes inferiores aos bens de consumo, será xingado, Karl.  E é tudo culpa sua! Sim, é claro que quando aquela prefeita petista disse que "por definição todo empresário é ladrão" não sabia que repetia seu inimigo Bakunin, o anarquista.  Foi como ela entendeu a mais-valia. Mas quem mandou você se meter a fazer previsões, a trocar o diagnóstico e, ainda por cima, receitar o remédio?  Sei que você escreveu muito pouco sobre o socialismo e que sua ascensão inevitável, mas quem mandou você escrever tanto sobre o capitalismo e sua queda inevitável? Você iria se espantar ao saber que indústrias estão entre as que mais rendem hoje: turismo, comunicações, entretenimento - que produzem exatamente mercadorias.

Agora tome: já estão dizendo aí que essas "megacorporações"globalizadas demonstram que você estava certo sobre a cartelização do capitalismo, etc.  Felizmente, eles agora têm uma dificuldade a mais: não sabem o que sugerir para substituir o capitalismo, a menos que aprendam com o inimigo e, num passe de mágica política, deem um novo nome a uma velha ambição - "neo-socialismo", "Consenso de Moscou" ou coisa que o valha. Mas, sei bem o que você quis fazer: como nos chamados "economistas liberais" já havia críticas  sensatas e recorrentes ao capitalismo, você decidiu radicalizar para ficar na história  - ops, perdoe, na História.  Azar o seu, você que não entendeu que a história é um pesadelo e que, bom filho de rabinos, pensou que a redenção não tardaria.  Então, aguente: a história vai de novo bater à sua porta e não deixá-lo descansar. Só não diga que não o avisei.

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