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quarta-feira, 10 de abril de 2013

Microfísica do Poder - Michel Foucault - parte 6


SOBRE A PRISÃO


Magazine Littéraire:

Uma das preocupações de seu livro é denunciar as lacunas dos estudos históricos. Você observa,
por exemplo, que ninguém fez a história do exame. Ninguém pensou nisto, mas é impensável que
ninguém tenha pensado.

Michel Foucault:


Os historiadores, como os filósofos e os historiadores da literatura, estavam habituados a uma
história das sumidades. Mas hoje, diferentemente dos outros, aceitam mais facilmente trabalhar
sobre um material "não nobre". A emergência deste material plebeu na história já data bem de uns
cinqüenta anos. Temos assim menos dificuldades em lidar com os historiadores. Você não ouvirá
jamais um historiador dizer o que disse em uma revista incrível, Raison Présente, alguém, cujo
nome não importa, a propósito de Buffon e de Ricardo: Foucault se ocupa apenas de medíocres.

M.L.: Quando você estuda a prisão, lamenta; ao que parece, a ausência de material, por exemplo
de monografias sobre esta ou aquela prisão.

M.F.: Atualmente retoma-se muito a monografia, mas a monografia tomada menos como o estudo
de um objeto particular do que como uma tentativa de fazer vir novamente à tona os pontos em que
um tipo de discurso se produziu e se formou. O que seria hoje um estudo sobre uma prisão ou
sobre um hospital psiquiátrico? Fez-se centenas deles no século XIX, sobretudo acerca dos
hospitais, estudando-se a história das instituições, a cronologia dos diretores, etc. Hoje, fazer a
história monográfica de um hospital consistiria em fazer emergir o arquivo deste hospital no
movimento mesmo de sua formação, como um discurso se constituindo e se confundindo com o
movimento mesmo do hospital, com as instituições, alterando-as, reformando-as. Tentar-se-ia
reconstituir a imbricação do discurso no processo, na história. Um pouco na linha do que Faye fez
com relação ao discurso totalitário.



A constituição de um corpus coloca um problema para minhas pesquisas, mas um problema sem
dúvida diferente do da pesquisa lingüística, por exemplo. Quando queremos fazer um estudo
lingüístico, ou um estudo de mito, vemo-nos obrigados a escolher um corpus, a definir este corpus
e a estabelecer seus critérios de constituição. No domínio muito mais vago que estudo, o corpus é
num certo sentido indefinido: não se chegará jamais a constituir o conjunto de discursos formulados
sobre a loucura, mesmo limitando-nos a uma época e a um país determinados. No caso da prisão
não haveria sentido em limitarmo-nos aos discursos formulados sobre a prisão. Há igualmente
aqueles que vêm da prisão: as decisões, os regulamentos que são elementos constituintes da
prisão, o funcionamento mesmo da prisão, que possui suas estratégias, seus discursos não
formulados, suas astúcias que finalmente não são de ninguém, mas que são no entanto vividas,
assegurando o funcionamento e a permanência da instituição. E tudo isto que é preciso ao mesmo
tempo recolher e fazer aparecer. E o trabalho, em minha maneira de entender, consiste antes em
fazer aparecer estes discursos em suas conexões estratégicas do que constituí-los excluindo
outros discursos.

M.L.: Você determina, na história da repressão, um momento central: a passagem da punição à
vigilância.

M.F.: Sim. O momento em que se percebeu ser, segundo a economia do poder, mais eficaz e mais
rentável vigiar que punir. Este momento corresponde à formação, ao mesmo tempo rápida e lenta,
no século XVIII e no fim do fim do XIX, de um novo tipo de exercício do poder. Todos conhecem as
grandes transformações, os reajustes institucionais que implicaram a mudança de regime político,
a maneira pela qual as delegações de poder no ápice do sistema estatal foram modificadas. Mas
quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o
poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas
atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana. O século XVIII encontrou um
regime por assim dizer sináptico de poder, de seu exercício no corpo social, e não sobre o corpo
social. A mudança de poder oficial esteve ligada a este processo, mas através de decalagens.
Trata-se de uma mudança de estrutura fundamental que permitiu a realização, com uma certa
coerência, desta modificação dos pequenos exercícios do poder. Também é verdade que foi a
constituição deste novo poder microscópico, capilar, que levou o corpo social a expulsar elementos
como a corte e o personagem do rei. A mitologia do soberano não era mais possível a partir do
momento em que uma certa forma de poder se exercia no corpo social. O soberano tornava-se
então um personagem fantástico, ao mesmo tempo monstruoso e arcaico.

Há assim correlação entre os dois processos, mas não uma correlação absoluta. Houve na
Inglaterra as mesmas modificações de poder capilar que na França. Mas lá o personagem do rei,


por exemplo, foi deslocado para funções de representação, em vez de ser eliminado. Assim não se
pode dizer que a mudança, ao nível do poder capilar, esteja absolutamente ligada às mudanças
institucionais a nível das formas centralizadas do Estado.

M.L.: Você mostra que a partir do momento em que a prisão se constituiu sob a forma de vigilância,
secretou seu próprio alimento, isto é, a delinqüência.

M.F.: Minha hipótese é que a prisão esteve, desde sua origem, ligada a um projeto de
transformação dos indivíduos. Habitualmente se acredita que a prisão era uma espécie de depósito
de criminosos, depósito cujos inconvenientes se teriam constatado por seu funcionamento, de tal
forma que se teria dito ser necessário reformar as prisões, fazer delas um instrumento de
transformação dos indivíduos. Isto não é verdade: os textos, os programas, as declarações de
intenção estão aí para mostrar. Desde o começo a prisão devia ser um instrumento tão
aperfeiçoado quando a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O
fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o próprio projeto. Desde 1820 se
constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para
fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade. Foi então que houve,
como sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um
inconveniente. A prisão fabrica delinqüentes, mas os delinqüentes são úteis tanto no domínio
econômico como no político. Os delinqüentes servem para alguma coisa. Por exemplo, no proveito
que se pode tirar da exploração do prazer sexual: a instauração, no século XIX, do grande edifício
da prostituição, só foi possível graças aos delinqüentes que permitiram a articulação entre o prazer
sexual quotidiano e custoso e a capitalização.

Outro exemplo: todos sabem que Napoleão III tomou o poder graças a um grupo constituído, ao
menos em seu nível mais baixo, por delinqüentes de direito comum. E basta ver o medo e o ódio
que os operários do século XIX sentiam em relação aos delinqüentes para compreender que estes
eram utilizados contra eles nas lutas políticas e sociais, em missões de vigilância, de infiltração,
para impedir ou furar greves, etc.

M.L.: Em suma, os americanos não foram, no século XX, os primeiros a utilizar a Máfia para este
gênero de trabalho.

M.F.: Não, absolutamente.

M.L.: Havia também o problema do trabalho penal: os operários temiam uma concorrência, um
trabalho a preço baixo que teria arruinado seu salário.

M.F.: Talvez. Mas eu me pergunto se o trabalho penal não foi organizado precisamente para
produzir entre os delinqüentes e os operários este desentendimento tão importante para o
funcionamento geral do sistema. O que temia a burguesia era esta espécie de ilegalismo sorridente
e tolerado que se conhecia no século XVIII. Não é preciso exagerar: os castigos do século XVIII
eram de grande selvageria. Mas não é menos verdadeiro que os criminosos, pelo menos alguns
dentre eles, eram tolerados pela população. Não havia uma classe autônoma de delinqüentes.
Alguém como Mandrin era recebido pela burguesia, pela aristocracia, bem como pelo campesinato,
pelos lugares em que passava, sendo protegido por todos. A partir do momento em que a
capitalização pôs nas mãos da classe popular uma riqueza investida em matérias-primas,
máquinas e instrumentos, foi absolutamente necessário proteger esta riqueza. Já que a sociedade
industrial exige que a riqueza esteja diretamente nas mãos não daqueles que a possuem mas
daqueles que permitem a extração do lucro fazendo-a trabalhar, como proteger esta riqueza?
Evidentemente por uma moral rigorosa: daí esta formidável ofensiva de moralização que incidiu
sobre a população do século XIX. Veja as formidáveis campanhas de cristianização junto aos
operários que tiveram lugar nesta época. Foi absolutamente necessário constituir o povo como um
sujeito moral, portanto separando-o da delinqüência, portanto separando nitidamente o grupo de
delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os
pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. Donde

o nascimento da literatura policial e da importância, nos jornais, das páginas policiais, das horríveis
narrativas de crimes.

M.L.: Você mostra que as classes pobres eram as principais vitimas da delinqüência.

M.F.: E que quanto mais eram vítimas da delinqüência, mais dela tinham medo.

M.L.: No entanto era nestas classes que se recrutava a delinqüência.

M.F.: Sim, e a prisão foi o grande instrumento de recrutamento. A partir do momento que alguém
entrava na prisão se acionava um mecanismo que o tornava infame, e quando saía, não podia
fazer nada senão voltar a ser delinqüente. Caía necessariamente no sistema que dele fazia um
proxeneta, um policial ou um alcagüete. A prisão pro-fissionalizava. Em lugar de haver, como no
século XVIII, estes bandos nômades que percorriam o campo e que freqüentemente eram de
grande selvageria, existe, a partir daquele momento, este meio delinqüente bem fechado, bem
infiltrado pela polícia, meio essencialmente urbano e que é de uma utilidade política e econômica
não negligenciável.

M.L.: Você observa, com razão, que o trabalho penal tem a particularidade de não servir para nada.
Qual é então seu papel na economia geral?

M.F.: Em sua concepção primitiva o trabalho penal não é o aprendizado deste ou daquele ofício,
mas o aprendizado da própria virtude do trabalho. Trabalhar sem objetivo, trabalhar por trabalhar,
deveria dar aos indivíduos a forma ideal do trabalhador. Talvez uma quimera, mas que havia sido
perfeitamente programada e definida pelos quakers na América (constituição das workhouses) e
pelos holandeses. Posteriormente, a partir dos anos 1835-1840, tornou-se claro que não se
procurava reeducar os delinqüentes, torná-los virtuosos, mas sim agrupá-los num meio bem
definido, rotulado, que pudesse ser uma arma com fins econômicos ou políticos. O problema então
não era ensinar-lhes alguma coisa, mas ao contrário, não lhes ensinar nada para se estar bem
seguro de que nada poderão fazer saindo da prisão. O caráter de inutilidade do trabalho penal que
está no começo ligado a um projeto preciso, serve agora a uma outra estratégia.

M.L.: Não pensa você que hoje, e isto é um fenômeno marcante, se passa novamente do plano da
delinqüência ao plano da infração, do ilegalismo, fazendo-se assim o caminho inverso do feito no
século XVIII?

M.F.: Creio, efetivamente, que a grande intolerância da população com respeito ao delinqüente,
que a moral e a política do século XIX haviam tentado instaurar, está se desintegrando.
Aceitam-se cada vez mais certas formas de ilegalismo, de irregularidades. Não apenas aquelas
que outrora eram aceitas ou toleradas, como as irregularidades fiscais ou financeiras com as quais
a burguesia conviveu e manteve as melhores relações, mas esta irregularidade que consiste, por
exemplo, em roubar um objeto numa loja.

M.L.: Mas não foi porque as primeiras irregularidades fiscais e financeiras chegaram ao
conhecimento de todos que o instrumento geral em relação às "pequenas irregularidades" se
modificou. Há algum tempo uma estatística do jornal Le Monde comparava o dano econômico
considerável das primeiras e os poucos meses ou anos de prisão que lhes correspondiam, ao
pequeno dano econômico das segundas (até mesmo as irregularidades violentas como os
assaltos) e o número considerável de anos de prisão que estes valeram a seus autores. E o artigo
manifesta um sentimento escandalizado diante desta disparidade.

M.F.: Esta é uma questão delicada e que é atualmente objeto de discussão nos grupos de antigos
delinqüentes. E bem verdade que na consciência das pessoas, mas também no sistema
econômico atual, uma certa margem de ilegalismo se revela não custosa e perfeitamente tolerável.
Na América sabe-se que o assalto é um risco permanente corrido pelas grandes lojas. Calcula-se
aproximadamente quanto ele custa e percebe-se que o custo de uma vigilância e de uma proteção
eficazes será muito alto, e portanto não rentável. Deixa-se, então, roubar. O seguro cobre. Tudo
isto faz parte do sistema.

Frente a este ilegalismo, que atualmente parece se difundir, se está diante de uma colocação em
questão da linha de separação entre infração tolerável, e tolerada, e delinqüência infamante, ou se


está diante de uma simples distensão do sistema que, dando-se conta de sua solidez, pode aceitar
dentro de seus limites algo que enfim não o compromete?

Há também, sem dúvida, uma modificação na relação que as pessoas mantêm com a riqueza. A
burguesia não tem mais em relação à riqueza esta ligação de propriedade que possuía no século

XIX. A riqueza não é mais aquilo que se possui, mas aquilo de que se extrai lucro. A aceleração no
fluxo da riqueza, suas capacidades cada vez maiores de circulação, o abandono do
entesouramento, a prática do endividamento, a diminuição da parte de bens fundiários na fortuna,
fazem com que o roubo não apareça aos olhos das pessoas como algo mais escandaloso que a
escroqueria ou que a fraude fiscal.
M.L.: Há também uma outra modificação: o discurso sobre a delinqüência, simples condenação no
século XIX ("ele rouba porque é mau"), torna-se hoje uma explicação ("ele rouba porque é pobre"
e também "é mais grave roubar quando se é rico do que quando se é pobre").

M.F.: Sim, há isto e se fosse apenas isto poderíamos nos sentir seguros e otimistas. Mas será que
não existe, misturado a isto, um discurso explicativo que, ele próprio, comporta um certo número de
perigo? Ele rouba porque é pobre, mas você sabe muito bem que nem todos os pobres roubam.
Assim, para que ele roube é preciso que haja nele algo que não ande muito bem. Este algo é seu
caráter, seu psiquismo, sua educação, seu inconsciente, seu desejo. Assim o delinqüente é
submetido a uma tecnologia penal, a da prisão, e a uma tecnologia médica, que se não é a do
asilo, é ao menos o da assistência pelas pessoas responsáveis.

M.L.: Entretanto a ligação que você faz entre técnica e repressão penal e médica ameaça
escandalizar algumas pessoas.

M.F.: Há quinze anos atrás se chegava a fazer escândalo ao dizer coisas como essas. Observei
que mesmo hoje os psiquiatras jamais me perdoaram a História da Loucura. Há quinze dias recebi
ainda uma carta de injúrias. Mas penso que este gênero de análise, mesmo que ainda possa ferir
alguém, sobretudo os psiquiatras que arrastam a tanto tempo sua má-consciência, é hoje melhor
admitido.

M.L.: Você mostra que o sistema médico sempre foi auxiliar do sistema penal, mesmo hoje em que

o psiquiatra colabora com o juiz, com o tribunal e com a prisão. Com relação a certos médicos mais
jovens, que tentaram se afastar destes compromissos, esta análise é talvez injusta.
M.F.: Talvez. Aliás, em Vigiar e Punir eu apenas traço algumas indicações preliminares. Preparo
atualmente um trabalho sobre as perícias psiquiátricas em assuntos penais. Publicarei processos,
alguns remontando ao século XIX, mas também outros mais contemporâneos, que são
verdadeiramente estupefantes.

M.L.: Você distingue duas delinqüências: a que acaba na polícia e a que se dilui na estética, Vidocq
e Lacenaire.

M.F.: Parei minha análise nos anos 1840, que aliás me parecem muito significativos. E nesta época
que se inicia a longa concubinagem entre a policia e a delinqüência. Fez-se o primeiro balanço do
fracasso da prisão: sabe-se que a prisão não reforma, mas fabrica a delinqüência e os
delinqüentes. E este o momento em que se percebe os benefícios que se pode tirar desta
fabricação. Estes delinqüentes podem servir para alguma coisa, pelo menos para vigiar os
delinqüentes. Vidocq é um caso característico disto. Ele vem do século XVIII, do período
revolucionário e imperial em que foi contrabandista, um pouco proxeneta, desertor. Ele fazia parte
destes nômades que percorriam as cidades, os campos, os exércitos, que circulavam. Velho estilo
de criminalidade. Depois ele foi absorvido pelo sistema. Foi para um campo de trabalhos forçados,
de onde saiu alcagüete, tornou-se policial e finalmente chefe de segurança. E ele é,
simbolicamente, o primeiro grande delinqüente que foi utilizado como delinqüente pelo aparelho de
poder.


Quanto a Lacenaire, ele é o sinal de um outro fenômeno, diferente, mas ligado ao primeiro. O
fenômeno do interesse estético, literário, que se começa a atribuir ao crime, a heroificação estética
do crime. Até o século XVIII os crimes eram heroificados apenas de duas maneiras: de um modo
literário quando se tratava dos crimes de um rei, ou de um modo popular que se encontra nos
canards, os folhetins que contam as aventuras de Mandrin ou de um famoso assassino. Dois
gêneros que absolutamente não se comunicam.

Por volta de 1840 surge o herói criminoso, herói porque criminoso, que não é nem aristocrata, nem
popular. A burguesia se dá agora seus próprios heróis criminosos. E neste mesmo momento que
se constitui este corte entre os criminosos e as classes populares: o criminoso não deve ser um
herói popular, mas um inimigo das classes pobres. A burguesia, por seu lado, produz uma estética
em que o crime não é mais popular, mas uma destas belas artes de cuja realização ela é única
capaz. Lacenaire é o tipo deste novo criminoso. E de origem burguesa ou pequeno burguesa. Seus
pais fizeram maus negócios, mas ele foi bem educado, foi ao colégio, sabe ler e escrever. Isto lhe
permitiu desempenhar em seu meio um papel de líder. A maneira com que fala dos outros
delinqüentes é característica: são animais estúpidos, covardes e desajeitados. Ele, Lacenaire, era

o cérebro lúcido e frio. Constitui-se assim o novo herói que apresenta todos os signos e todas as
garantias da burguesia. Isto vai nos levar a Gaboriau e ao romance policial, no qual o criminoso é
sempre proveniente da burguesia. No romance policial não se vê jamais o criminoso popular. O
criminoso é sempre inteligente, mantendo com a polícia uma espécie de jogo em mesmo pé de
igualdade. O divertido é que Lacenaire, na realidade, era lamentável, ridículo e desajeitado. Ele
sempre havia sonhado em matar, mas não o conseguia fazer. A única coisa que sabia fazer era, no
Bois de Boulogne, chantagear os homossexuais que seduzia. O único crime que havia cometido se
dera sobre um velhinho com que havia feito algumas porcarias na prisão. E foi por um triz que
Lacenaire não foi assassinado por seus companheiros de detenção em La Force já que estes lhe
acusavam, sem dúvida com propriedade, de ser um alcagüete.
M.L.: Você diz que os delinqüentes são úteis, mas não se pode pensar que a delinqüência faz parte
mais da natureza das coisas do que da necessidade político-econômica? Porque se poderia
pensar que, para uma sociedade industrial, a delinqüência é uma mão-de-obra menos rentável
que a mão-de-obra operária.

M.F.: Por volta dos anos 1840 o desemprego e o sub-emprego são uma das condições da
economia. Havia mão-de-obra para dar e vender. Mas pensar que a delinqüência faz parte da
ordem das coisas também faz parte, sem dúvida da inteligência cínica do pensamento burguês do
século XIX. Seria preciso ser tão ingênuo quanto Baudelaire para imaginar que a burguesia é tola e
pudica. Ela é inteligente e cínica. Basta apenas ler o que ela dizia de si mesma e, ainda melhor, o
que dizia dos outros. A sociedade sem delinqüência foi um sonho do século XVIII que depois
acabou. A delinqüência era por demais útil para que se pudesse sonhar com algo tão tolo e
perigoso como uma sociedade sem delinqüência. Sem delinqüência não há policia. O que torna a
presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinqüente? Você
fala de um ganho prodigioso. Esta instituição tão recente e tão pesada que é a policia não se
justifica senão por isto. Aceitamos entre nós esta gente de uniforme, armada enquanto nós não
temos o direito de o estar, que nos pede documentos, que vem rondar nossas portas. Como isso
seria aceitável se não houvesse os delinqüentes? Ou se não houvesse, todos os dias, nos jornais,
artigos onde se conta o quão numerosos e perigosos são os delinqüentes?

M.L.: Você é muito rude em relação à criminologia e seu discurso tagarela, ramerrão.

M.F.: Você já leu alguma vez os textos dos criminologistas? Eles não têm pé nem cabeça. E o digo
com espanto, e não com agressividade, porque não consigo compreender como o discurso da
criminologia pôde permanecer neste ponto. Tem-se a impressão de que o discurso da criminologia
possui uma tal utilidade, de que é tão fortemente exigido e tornado necessário pelo funcionamento
do sistema, que não tem nem mesmo necessidade de se justificar teoricamente, ou mesmo
simplesmente de ter uma coerência ou uma estrutura. Ele é inteiramente utilitário. E creio que é
necessário procurar porque um discurso "científico" se tornou tão indispensável pelo
funcionamento da penalidade no século XIX. Tornou-se necessário por este álibi, que funciona
desde o século XVIII, que diz que se se impõe um castigo a alguém, isto não é para punir o que ele


fez, mas para transformá-lo no que ele é. A partir deste momento, atribuir juridicamente uma pena,
ou seja, proclamar a alguém "vamos cortar sua cabeça, atirá-lo na prisão, ou mesmo
simplesmente aplicar-lhe uma multa porque você fez isto ou aquilo" é um ato que não tem mais
nenhuma significação. A partir do momento em que se suprime a idéia de vingança, que outrora
era atributo do soberano, do soberano lesado em sua própria soberania pelo crime, a punição só
pode ter significação numa tecnologia de reforma. E os juizes, eles mesmos, sem saber e sem se
dar conta, passaram, pouco a pouco, de um veredicto que tinha ainda conotações punitivas, a um
veredicto que não podem justificar em seu próprio vocabulário, a não ser na condição de que seja
transformador do indivíduo. Mas os instrumentos que lhes foram dados, a pena de morte, outrora o
campo de trabalhos forçados, atualmente a reclusão ou a detenção, sabe-se muito bem que não
transformam. Dai a necessidade de passar a tarefa para pessoas que vão formular, sobre o crime e
sobre os criminosos, um discurso que poderá justificar as medidas em questão.

M.L.: Em suma, o discurso criminológico é útil apenas para dar boa consciência aos juizes?

M.F.: Sim, ou antes indispensável para permitir que se julgue.

M.L.: Em seu livro sobre Pierre Riviére é um criminoso que fala e que escreve. Mas, diferentemente
de Lacenaire, em seu crime ele foi até o fim. Primeiramente, gostaria de saber como você
encontrou este espantoso texto?

M.F.: Por acaso. Procurando sistematícamente as perícias médico-legais, psiquiátricas em nível
penal, nas revistas dos séculos XIX e XX.

M.L.: Já que é rarissimo que um camponês analfabeto ou semi-alfabetizado se dê ao trabalho de
escrever assim quarenta páginas para explicar e contar seu crime.

M.F.: É uma história absolutamente estranha. Pode-se dizer no entanto, e isto me espantou, que
nessas circunstâncias escrever sua vida, suas lembranças, o que lhe aconteceu, constituía uma
prática da qual se encontra um grande número de testemunhos, precisamente nas prisões. Um
certo Appert, um dos primeiros filantropos a percorrer uma quantidade de campos de trabalho
forçado e de prisões, fez os detentos escreverem suas memórias, das quais publicou alguns
fragmentos. Na América encontram-se também, neste mesmo papel, médicos e juizes. Era a
primeira grande curiosidade com relação a estes indivíduos que se desejava transformar e, para
cuja transformação, seria necessário produzir um determinado saber, uma determinada técnica.
Esta curiosidade em relação ao criminoso não existia de maneira nenhuma no século XVIII, quando
se tratava apenas de saber se o culpado havia realmente feito aquilo de que se lhe acusava. Uma
vez estabelecido isto, o preço estava fixado.

A questão "quem é este indivíduo que cometeu este crime?" é uma nova questão. Ela não é
suficiente, no entanto, para explicar a estória de Pierre Riviêre. Porque Pierre Riviére, e ele o diz
claramente, quis começar a escrever suas memórias antes de cometer seu crime. Não quisemos
de maneira nenhuma fazer neste livro uma análise psicológica, psicanalítica ou lingüística de Pierre
Riviére, mas sim fazer aparecer a maquinaria médica e judiciária que cercou a estória. Em relação
ao resto, deixamos a tarefa de falar aos psicanalistas e aos criminologistas. O que é espantoso é
que este texto, que lhes havia deixado sem voz na época, deixou-os no mesmo mutismo hoje.

M.L.: Encontrei na História da Loucura uma frase em que você diz que convém "desvencilhar as
cronologias e as sucessões históricas de toda perspectiva de progresso".

M.F.: E algo que devo aos historiadores das ciências. Tenho esta precaução de método, este
ceticismo radical mas sem agressividade, que se dá por princípio não tomar o ponto em que nos
encontramos por final de um progresso que nos caberia reconstituir com precisão na história. Isto
é, ter em relação a nós mesmos, a nosso presente, ao que somos, ao aqui e agora este ceticismo
que impede que se suponha que tudo isto é melhor ou que é mais do que o passado. O que não
quer dizer que não se tente reconstituir os processos geradores, mas sem atribuir-lhes uma
positividade, uma valoração.


M.L.: Enquanto que a ciência baseou-se desde há muito no postulado de que a humanidade
progredia.

M.F.: A ciência? Mais precisamente a história da ciência. E não digo que a humanidade não
progrida. Digo que considero um mau método colocar o problema "por que progredimos?" O
problema é "como isto se passa?" E o que se passa agora não é forçosamente melhor, ou mais
elaborado, ou melhor elucidado do que o que se passou antes.

M.L.: Suas pesquisas referem-se a coisas banais ou banalizadas porque não são vistas. Por
exemplo, eu estou impressionado com o fato de que as prisões estão dentro das cidades e que
ninguém as vê. Ou que quando se as vê, se pergunte distraidamente se se trata de uma prisão, de
uma escola, de uma caserna ou de um hospital. O acontecimento não é fazer saltar aos olhos o
que ninguém via? E isto, de uma certa maneira, tanto em estudos bem detalhados, como a
situação do regime fiscal e do campesinato do Baixo Languedoc entre 1880 e 1882, quanto em um
fenômeno capital que ninguém enfocava, como a prisão.

M.F.: Num certo sentido a história foi feita assim. Fazer aparecer o que não se via pode ser devido
à utilização de um instrumento de aumento, ao fato de que em lugar de se estudar as instituições
da monarquia entre o século XVI e o fim do século XVIII, se possa perfeitamente estudar a
instituição do Conselho Superior entre a morte de Henrique IV e a ascenção de Luis XIII. Ficou-se
no mesmo domínio de objeto, mas o objeto cresceu.

Mas fazer ver o que não se via pode ser mudar de nível, se dirigir a um nível que até então não era
historicamente pertinente, que não possuía nenhuma valorização, fosse ela moral, estética, política
ou histórica. Que a maneira pela qual se trata os loucos faça parte da história da razão, isto é hoje
evidente. Mas não o era há cinqüenta anos atrás, quando a história da razão era Platão, Descartes,
Kant ou ainda Arquimedes, Galileu e Newton.

M.L.: Há ainda entre a razão e a desrazão um jogo de espelhos, uma antinomia simples, o que não
existe quando você escreve: "Faz-se a história das experiências feitas com os cegos de nascença,
os meninos-lobo ou a hipnose. Mas quem fará a história mais geral, mais vaga, mais determinante
também, do exame... Porque nesta técnica sutil se encontram engajados todo um domínio de
saber, todo um tipo de poder".

M.F.: De uma maneira geral, os mecanismos de poder nunca foram muito estudados na história.
Estudaram-se as pessoas que detiveram o poder. Era a história anedótica dos reis, dos generais.
Ao que se opôs a história dos processos, das infra-estruturas econômicas. A estas, por sua vez, se
opôs uma história das instituições, ou seja, do que se considera como superestrutura em relação à
economia. Ora, o poder em suas estratégias, ao mesmo tempo gerais e sutis, em seus
mecanismos, nunca foi muito estudado. Um assunto que foi ainda menos estudado é a relação
entre o poder e o saber, as incidências de um sobre o outro. Admite-se, e isto é uma tradição do
humanismo, que a partir do momento em que se atinge o poder, deixa-se de saber: o poder
enlouquece, os que governam são cegos. E somente aqueles que estão à distância do poder, que
não estão em nada ligados à tirania, fechados em suas estufas, em seus quartos, em suas
meditações, podem descobrir a verdade.

Ora, tenho a impressão de que existe, e tentei fazê-la aparecer, uma perpétua articulação do
poder com o saber e do saber com opoder. Não podemos nos contentar em dizer que o poder tem
necessidade de tal ou tal descoberta, desta ou daquela forma de saber, mas que exercer o poder
cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as utiliza. Não se pode compreender
nada sobre o saber econômico se não se sabe como se exercia, quotidianamente, o poder, e o
poder econômico. O exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber
acarreta efeitos de poder. O mandarinato universitário é apenas a forma mais visível, mais
esclerosada, e menos perigosa, desta evidência. E preciso ser muito ingênuo para imaginar que é
no mandarim universitário que culminam os efeitos de poder ligado ao saber. Eles estão em outros
lugares, muito mais difusos, enraizados, perigosos, que no personagem do velho professor. O
humanismo moderno se engana, assim, ao estabelecer a separação entre saber e poder. Eles
estão integrados, e não se trata de sonhar com um momento em que o saber não dependeria mais


do poder, o que seria uma maneira de reproduzir, sob forma utópica, o mesmo humanismo. Não é
possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder.
"Libertemos a pesquisa científica das exigências do capitalismo monopolista" é talvez um excelente
slogan, mas não será jamais nada além de um slogan.

M.L.: Em relação a Marx e ao marxismo você parece manter uma certa distância, o que já lhe havia
sido dito como crítica a propósito da Arqueologia do Saber.

M.F.: Sem dúvida, mas há também de minha parte uma espécie de jogo. Ocorre-me
freqüentemente citar conceitos, frases e textos de Marx, mas sem me sentir obrigado a acrescentar
a isto a pequena peça autentificadora que consiste em fazer uma citação de Marx, em colocar
cuidadosamente a referência de pé de página, e em acompanhar a citação de uma referência
elogiosa, por meio de que se pode ser considerado como alguém que conhece Marx, que
reverencia Marx e que se verá honrado pelas revistas ditas marxistas. Cito Marx sem dizê-lo, sem
colocar aspas, e como eles não são capazes de reconhecer os textos de Marx, passo por ser
aquele que não cita Marx. Será que um físico, quando faz física, experimenta a necessidade de
citar Newton ou Einstein? Ele os utiliza, mas não tem necessidade de aspas, de nota de pé de
página ou de aprovação elogiosa que prove a que ponto ele é fiel ao pensamento do Mestre. E
como os demais físicos sabem o que fez Einstein, o que ele inventou e demonstrou, o reconhecem
imediatamente. E impossível fazer história atualmente sem utilizar uma seqüência infindável de
conceitos ligados direta ou indiretamente ao pensamento de Marx e sem se colocar num horizonte
descrito e definido por Marx. Em última análise poder-se-ia perguntar que diferença poderia haver
entre ser historiador e ser marxista.

M.L.: Parafraseando Astruc que dizia "o cinema americano, este pleonasmo", poderíamos dizer: o
historiador marxista, este pleonasmo.

M.F.: É mais ou menos isto. E é no interior deste horizonte geral definido e codificado por Marx que
começa a discussão. Discussão com aqueles que vão se declarar marxistas porque empregam
esta espécie de regra do jogo que não é a do marxismo, mas a da comunistologia, ou seja, a que é
definida pelos partidos comunistas que indicam a maneira pela qual se deve utilizar Marx para ser,
por eles, declarado marxista.

M.L.: E o que é feito de Nietzsche? Espanto-me com sua presença difusa, mas cada vez mais
forte, em última análise em oposição à hegemonia de Marx, no pensamento e no sentimento
contemporâneos de uns dez anos para ca.

M.F.: Hoje fico mudo quando se trata de Nietzsche. No tempo em que era professor, dei
freqüentemente cursos sobre ele, mas não mais o faria hoje. Se fosse pretensioso, daria como
título geral ao que faço "genealogia da moral".

Nietzsche é aquele que ofereceu como alvo essencial, digamos ao discurso filosófico, a relação de
poder. Enquanto que para Marx era a relação de produção. Nietzsche é o filósofo do poder, mas
que chegou a pensar o poder sem se fechar no interior de uma teoria política.

A presença de Nietzsche é cada vez mais importante. Mas me cansa a atenção que lhe é dada
para fazer sobre ele os mesmos comentários que se fez ou que se fará sobre Hegel ou Mallarmé.
Quanto a mim, os autores que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode
ter para com um pensamento como o de Nietzsche, é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo
ranger, gritar. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.

Entrevista realizada por J. J. Brochier

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