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sexta-feira, 5 de abril de 2013

Microfísica do Poder - Michel Foucault - parte 2


II

NIETZSCHE, A GENEALOGIA E A HISTORIA

I

A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com
pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos.

Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo,
toda a história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras tivessem
guardado seu sentido, os desejos sua direção, as idéias sua lógica; como se esse mundo de coisas
ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a
genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de
toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como
não possuindo história - os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno
não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde
eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles
não aconteceram (Platão em Siracusa não se transformou em Maomé).

A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados,
exige paciência. Ela deve construir seus "monumentos ciclópicos"1 não a golpes de "grandes erros
benfazejos" mas de "pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo"2 . Em
suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e
profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento
meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da
"origem".


II

Encontram-se em Nietzsche dois empregos da palavra Ursprung. Um não é marcado: é
encontrado em alternância com o termo Entestehung, Herkunft, A bkunft, Geburt. Para Genealogia
da Moral, por exemplo, fala, a propósito do dever moral ou do sentimento da falta, de Entestehung
ou de Ursprung3. Em A Gaia Ciência se trata, a propósito da lógica e do conhecimento, de
Ursprung, de Entestehung, ou de Herkunft4 .

O outro emprego da palavra é marcado. Nietzsche o coloca em oposição a um outro termo: o
primeiro parágrafo de Humano Demasiadamente Humano coloca frente a frente a origem
miraculosa (Wunder-Ursprung) que a metafisica procura e as análises de uma filosofia histórica
que coloca questões über Herkunft und Anfang. Ursprung é também utilizado de uma maneira
irônica e depreciativa. Em que, por exemplo, consiste esse fundamento originário (Ursprung) da


moral que se procura desde Platão? "Em horríveis pequenas conclusões: Pudenda origo"5. Ou
ainda: onde é preciso procurar essa origem da religião (Ursprung) que Schopenhauer situava em
um certo sentimento do além? Simplesmente em uma invenção (Erftndung), em um passe de
mágica, em um artifício (Kunststück), em um segredo de fabricação, em um procedimento de
magia negra, no trabalho de Schwarzkünstler6 .

Um dos textos mais significativos do uso de todas estas palavras e dos jogos próprios do termo
Ursprung é o prefácio de Para Genealogia da Moral. O objeto da pesquisa é definido no início do
texto como a origem dos preconceitos morais; o termo então utilizado é Herkunft. Em seguida,
Nietzsche volta atrás, fazendo a história deste inquérito em sua própria vida; ele se lembra do
tempo em que "caligrafava" a filosofia e em que se perguntava se era preciso atribuir a Deus a
origem do Mal. Questão que agora o faz sorrir e sobre a qual ele diz justamente que era uma
pesquisa de Ursprung; mesma palavra para caracterizar um pouco mais longe o trabalho de Paul
Rée7. Em seguida, ele evoca as análises propriamente nietzscheanas que começaram com
Humano, Demasiadamente Humano; para caracterizá-las, fala de Herkunfthypotesen. Ora, aqui o
emprego da palavra Herkunft não é arbitrário: ela serve para caracterizar vários textos de Humano,
Demasiadamente Humano consagrados à origem da moralidade, da justiça, do castigo. E contudo,
em todos estes desenvolvimentos, a palavra que tinha sido utilizada então era Ursprung8. Como se
na época de Para Genealogia da Moral, e nessa altura do texto, Nietzsche quisesse acentuar uma
oposição entre Herkunft e Ursprung com a qual ele não trabalhava dez anos antes. Mas,
imediatamente depois da utilização especificada desses dois termos, Nietzsche volta, nos últimos
parágrafos do prefácio, a utilizá-los de um modo neutro e equivalente9.

Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da origem
(Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a
essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em
si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma
tal origem é tentar reencontrar "o que era imediatamente", o "aquilo mesmo" de uma imagem
exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido,
todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma
identidade primeira. Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar
na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há "algo inteiramente diferente": não
seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua
essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela
nasceu de uma maneira inteiramente "desrazoável" - do acaso10. A dedicação à verdade e ao rigor
dos métodos científicos? Da paixão dos cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões
fanáticas e sempre retomadas, da necessidade de suprimir a paixão - armas lentamente forjadas
ao longo das lutas pessoais". E a liberdade, seriada, na raiz do homem o que o liga ao ser e à
verdade? De fato, ela é apenas uma "invenção das classes dominantes"12. O que se encontra no
começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre
as coisas, é o disparate.

A história ensina também a rir das solenidades da origem. A alta origem é o "exagero metafísico
que reaparece na concepção de que no começo de todas as coisas se encontra o que há de mais
precioso e de mais essencial"13: gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam
em estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da
primeira manhã. A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do
tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta sempre uma teogonia. Mas o começo
histórico é baixo. Não no sentido de modesto ou de discreto como o passo da pomba, mas de
derrisório, de irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações. "Procura-se despertar o sentimento
de soberania do homem mostrando seu nascimento divino: isto agora se tornou um caminho
proibido; pois no seu limiar está o macaco"14 . O homem começou pela careta daquilo em que ele
ia se tornar; Zaratustra mesmo terá seu macaco que saltará atrás dele e tirará o pano de sua
vestimenta.

Enfim, o último postulado da origem, ligado aos dois primeiros: ela seria o lugar da verdade. Ponto
totalmente recuado e anterior a todo conhecimento positivo ela tornará possível um saber que
contudo a recobre e não deixa, na sua tagarelice, de desconhecê-la; ela estaria nesta articulação


inevitavelmente perdida onde a verdade das coisas se liga a uma verdade do discurso que logo a
obscurece, e a perde. Nova crueldade da história que coage a inverter a relação e a abandonar a
busca "adolescente": atrás da verdade sempre recente. avara e comedida, existe a proliferação
milenar dos erros. Mas não acreditemos mais "que a verdade permaneça verdadeira quando se lhe
arranca o véu; já vivemos bastante para crer nisto"15. A verdade, espécie de erro que tem a seu
favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida porque o longo cozimento da história a tornou
inalterável16 , E além disto a questão da verdade, o direito que ela se dá de refutar o erro de se
opor à aparência, a maneira pela qual alternadamente ela foi acessível aos sábios, depois
reservada apenas aos homens de piedade, em seguida retirada para um mundo fora de alcance,
onde desempenhou ao mesmo tempo o papel de consolação e de imperativo, rejeitada enfim como
idéia inútil, supérflua, por toda parte contradita - tudo isto não é uma história, a história de um erro
que tem o nome de verdade? A verdade e seu reino originário tiveram sua história na história. Mal
saímos dela, "na hora da sombra mais curta" quando a luz não parece mais vir do fundo do céu e
dos primeiros momentos do dia17.

Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir
em busca de sua "origem", negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será,
ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção
escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto
do outro; não ter pudor de ir procurá-las lá onde elas estão, escavando os basfond; deixar-lhes o
tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob sua guarda. O
genealogista necessita da história para conjurar a quimera da origem, um pouco como o bom
filósofo necessita do médico para conjurar a sombra da alma. É preciso saber reconhecer os
acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal
digeridas, que dão conta dos atavismos e das hereditariedades; da mesma forma que é preciso
saber diagnosticar as doenças do corpo, os estados de fraqueza e de energia, suas rachaduras e
suas resistências para avaliar o que é um discurso filosófico. A história, com suas intensidades,
seus desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes, é

o próprio corpo do devir. E preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma na idealidade
longínqua da origem.
Termos como Entestehung ou Herkunft marcam melhor do que Ursprung o objeto próprio da
genealogia. São ordinariamente traduzidos por "origem", mas é preciso tentar a reconstituição de
sua articulação própria.

Herkunft:

é o tronco de uma raça, é a proveniência; é o antigo pertencimento a um grupo - do sangue, da
tradição, de ligação entre aqueles da mesma altura ou da mesma baixeza. Freqüentemente a
análise da Herkunft põe em jogo a raça18, ou o tipo social19. Entretanto, não se trata de modo
algum de reencontrar em um indivíduo, em uma idéia ou um sentimento as características gerais
que permitem assimilá-los a outros - e de dizer: isto é grego ou isto é inglês; mas de descobrir
todas as marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se entrecruzar nele e formar uma rede
difícil de desembaraçar; longe de ser uma categoria da semelhança, tal origem permite ordenar,
para colocá-las a parte, todas as marcas diferentes: os alemães imaginam ter chegado ao extremo
de sua complexidade quando disseram que tinham a alma dupla; eles se enganaram
redondamente, ou melhor, eles tentam como podem dominar a confusão das raças de que são
constituídos20 Lá onde a alma pretende se unificar, lá onde o Eu inventa para si uma identidade ou
uma coerência, o genealogista parte em busca do começo - dos começos inumeráveis que deixam
esta suspeita de cor, esta marca quase apagada que não saberia enganar um olho, por pouco
histórico que seja; a análise da proveniência permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares e
recantos de sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos.


A proveniência permite também reencontrar sob o aspecto único de um caráter ou de um conceito
a proliferação dos acontecimentos através dos quais (graças aos quais, contra os quais) eles se
formaram. A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande continuidade
para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está
lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segredo, depois de ter imposto a todos os
obstáculos do percurso uma forma delineada desde o início. Nada que se assemelhasse à
evolução de uma espécie, ao destino de um povo. Seguir o filão complexo da proveniência é, ao
contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os
ínfimos desvios - ou ao contrário as inversões completas - os erros, as falhas na apreciação, os
maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz
daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos - não existem a verdade e o ser, mas a
exterioridade do acidente21 Eis porque, sem dúvida, toda origem da moral, a partir do momento em
que ela não é venerável - e a Herkunft nunca é - é crítica22 .

Perigosa herança, esta que nos é transmitida por uma tal proveniência. Nietzsche associa várias
vezes os termos Herkunft e Erbschaft. Mas não nos enganemos; essa herança não é uma
aquisição, um bem que se acumula e se solidifica: é antes um conjunto de falhas, de fissuras, de
camadas heterogêneas que a tornam instável, e, do interior ou de baixo, ameaçam o frágil
herdeiro: "a injustiça e a instabilidade no espírito de alguns homens, sua desordem e sua falta de
medida são as últimas conseqüências de inumeráveis inexatidões lógicas, de falta de
profundidade, de conclusões apressadas de que seus ancestrais se tornaram culpados"23. A
pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela
fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em
conformidade consigo mesmo. Que convicção lhe resistiria? Mais ainda, que saber? Façamos um
pouco a análise genealógica dos cientistas - daquele que coleciona e registra cuidadosamente os
fatos, ou daquele que demonstra ou refuta; sua Herkunft logo revelará a papelada do escrivão ou
as defesas do advogado - pai deles - 24 em sua atenção aparentemente desinteressada, em sua
"pura" ligação à objetividade.

Enfim, a proveniência diz respeito ao corpo25 . Ela se inscreve no sistema nervoso, no humor, no
aparelho digestivo. Má alimentação, má respiração, corpo débil e vergado daqueles cujos
ancestrais cometeram erros; que os pais tomem os efeitos por causas, acreditem na realidade do
além, ou coloquem o valor eterno, é o corpo das crianças que sofrerá com isto. A covardia, a
hipocrisia, simples rebentos do erro; não no sentido socrático, não porque seja preciso se engajar
para ser malvado, nem também porque alguém se desviou da verdade originária, mas porque o
corpo traz consigo, em sua vida e em sua morte, em sua força e em sua fraqueza, a sanção de
todo erro e de toda verdade como ele traz consigo também e inversamente sua origem -
proveniência. Por que os homens inventaram a vida contemplativa? Por que eles atribuíram a esse
gênero de existência um valor supremo? Por que atribuíram verdade absoluta às imaginações que
nela se formam? "Durante as épocas bárbaras ... se o vigor do indivíduo diminui, se ele se sente
cansado ou doente, melancólico ou saciado e, por conseqüência, de uma maneira temporária, sem
desejos e sem apetites, ele se torna um homem relativamente melhor, quer dizer, menos perigoso
e suas idéias pessimistas se formulam apenas por palavras e reflexões. Neste estado de espírito
ele se tornará um pensador e anunciador ou então sua imaginação desenvolverá suas
superstições"26. O corpo - e tudo o que diz respeito ao corpo, a alimentação, o clima, o solo - é o
lugar da Herkunft: sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo
modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros nele também eles se atam e de
repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos
outros e continuam seu insuperável conflito.

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as
idéias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade
substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está
portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente
marcado de história e a história arruinando o corpo.


Entestehung

designa de preferência a emergência, o ponto de surgimento. E o princípio e a lei singular de um
aparecimento. Do mesmo modo que se tenta muito freqüentemente procurar a proveniência em
uma continuidade sem interrupção, também seria errado dar conta da emergência pelo termo final.
Como se o olho tivesse aparecido, desde o fundo dos tempos, para a contemplação, como se o
castigo tivesse sempre sido destinado a dar o exemplo. Esses fins, aparentemente últimos, não
são nada mais do que o atual episódio de uma série de submissões: o olho foi primeiramente
submetido à caça e à guerra; o castigo foi alternadamente submetido à necessidade de se vingar,
de excluir o agressor, de se libertar da vítima, de aterrorizar os outros. Colocando o presente na
origem, a metafísica leva a acreditar no trabalho obscuro de uma destinação que procuraria vir à
luz desde o primeiro momento. A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não
a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações.

A emergência se produz sempre em um determinado estado das forças. A análise da Herkunft
deve mostrar seu jogo, a maneira como elas lutam umas contra as outras, ou seu combate frente a
circunstâncias adversas, ou ainda a tentativa que elas fazem - se dividindo - para escapar da
degenerescência e recobrar o vigor a partir de seu próprio enfraquecimento. Por exemplo, a
emergência de uma espécie (animal ou humana) e sua solidez são asseguradas "por um longo
combate contra condições constantes e essencialmente desfavoráveis". De fato "a espécie tem
necessidade da espécie enquanto espécie como de qualquer coisa que, graças à sua dureza, à
sua uniformidade, à simplicidade de sua forma, pode se impor e se tornar durável na luta perpétua
com os vizinhos ou os oprimidos em revolta". Em compensação, a emergência das variações
individuais se produz em um outro estado das forças. quando a espécie triunfou, quando o perigo
externo não a ameaça mais, e quando "os egoísmos voltados uns contra os outros que brilham de
algum modo lutam juntos pelo sol e pela luz"27 Acontece também que a força luta contra si mesma:
e não somente na embriaguez de um excesso que lhe permite se dividir, mas no momento em que
ela se enfraquece. Contra sua lassidão ela reage, extraindo sua força desta lassidão que não deixa
então de crescer, e se voltando em sua direção para abatê-la, ela vai lhe impor limites, suplícios,
macerações, fantasiá-la de um alto valor moral e assim por sua vez se revigorar. Este é o
movimento pelo qual nasce o ideal ascético "no instinto de uma vida em degenerescência que luta
por sua existência"28 . Este também é o movimento pelo qual a Reforma nasceu, onde previamente
a Igreja se encontrava menos corrompida29; na Alemanha do séc. XV o catolicismo tinha ainda
muita força para se voltar contra si próprio, castigar seu próprio corpo e sua própria história e se
espiritualizar em uma religião pura da consciência.

A emergência é portanto a entrada em cena das forças; é sua interrupção, o salto pelo qual elas
passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria juventude. O que
Nietzsche chama Entestehungsherd'30 do conceito de bom não é exatamente nem a energia dos
fortes nem a reação dos fracos; mas sim esta cena onde eles se distribuem uns frente aos outros,
uns acima dos outros; é o espaço que os divide e se abre entre eles, o vazio através do qual eles
trocam suas ameaças e suas palavras. Enquanto que a proveniência designa a qualidade de um
instinto, seu grau ou seu desfalecimento, e a marca que ele deixa em um corpo, a emergência
designa um lugar de afrontamento; é preciso ainda se impedir de imaginá-la como um campo
fechado onde se desencadeara uma luta, um plano onde os adversários estariam em igualdade; é
de preferência - o exemplo dos bons e dos malvados o prova- um "não-lugar", uma pura
distância, o fato que os adversários não pertencem ao mesmo espaço. Ninguém é portanto
responsável por uma emergência; ninguém pode se auto-glorificar por ela; ela sempre se produz
no interstício.

Em certo sentido, a peça representada nesse teatro sem lugar é sempre a mesma: é aquela que
repetem indefinidamente os dominadores e os dominados. Homens dominam outros homens e é
assim que nasce a diferença dos valores31; classes dominam classes e é assim que nasce a idéia
de liberdade32; homens se apoderam de coisas das quais eles têm necessidade para viver, eles
lhes impõem uma duração que elas não têm, ou eles as assimilam pela força - e é o nascimento
da lógica33. Nem a relação de dominação é mais uma "relação", nem o lugar onde ela se exerce é


um lugar. E é por isto precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em um
ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece
marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas.
Universo de regras que não é destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. Seria
um erro acreditar, segundo o esquema tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas
próprias contradições, acaba por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis da
paz civil. A regra é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar
sem cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente repetida. O
desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação tácita da lei, longe de serem a grande
conversão moral, ou o útil calculado que deram nascimento à regra, são apenas seu resultado e
propriamente falando sua perversão: "Falta, consciência, dever têm sua emergência no direito de
obrigação; e em seus começos, como tudo o que é grande sobre a terra, foi banhado de sangue"34.
A humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal,
em que as regras substituiriam para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em
um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação.

É justamente a regra que permite que seja feita violência à violência e que uma outra dominação
possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas as regras são vazias, violentas, não
finalizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo; elas podem ser burladas ao sabor da
vontade de uns ou de outros. O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de
quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las
ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho
complexo, o fizer funcionar de tal modo

que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras. As diferentes
emergências que se podem demarcar não são figuras sucessivas de uma mesma significação; são
efeitos de substituição, reposição e deslocamento, conquistas disfarçadas, inversões sistemáticas.
Se interpretar era colocar lentamente em foco uma significação oculta na origem, apenas a
metafísica poderia interpretar o devir da humanidade. Mas se interpretar é se apoderar por
violência ou sub-repção, de um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe
impor uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar em um outro jogo e submetê-lo a
novas regras, então o devir da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser
a sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de
liberdade ou da vida ascética, como emergências de interpretações diferentes. Trata-se de
fazê-las aparecer como acontecimentos no teatro dos procedimentos.

Quais são as relações entre a genealogia definida como pesquisa de Herkunft e de Entestehung e

o que se chama habitualmente história? Sabe-se das apóstrofes célebres de Nietzsche contra a
história, e será preciso voltar a elas agora. Contudo, a genealogia é designada por vezes como
"Wirkliche Historie"; em várias ocasiões ela é caracterizada pelo "espírito" ou "sentido histórico"35
De fato, o que Nietzsche não parou de criticar desde a segunda das Considerações
Extemporâneas é esta forma histórica que reintroduz (e supõe sempre) o ponto de vista
supra-histórico: uma história que teria por função recolher em uma totalidade bem fechada sobre si
mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma história que nos permitiria nos
reconhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconciliação;
uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de fim de mundo. Essa história dos
historiadores constrói um ponto de apoio fora do tempo; ela pretende tudo julgar segundo uma
objetividade apocalíptica; mas é que ela supôs uma verdade eterna, uma alma que não morre, uma
consciência sempre idêntica a si mesma. Se o sentido histórico se deixa envolver pelo ponto de
vista supra-histórico, a metafísica pode retomá-lo por sua conta e, fixando-o sob as espécies de
uma ciência objetiva, impor-lhe seu próprio "egipcianismo". Em compensação, o sentido histórico
escapará da metafísica para tornar-se um instrumento privilegiado da genealogia se ele não se
apoia sobre nenhum absoluto. Ele deve ter apenas a acuidade de um olhar que distingue, reparte,
dispersa, deixa operar as separações e as margens - uma espécie de olhar que dissocia e é capaz

ele mesmo de se dissociar e apagar a unidade deste ser humano que supostamente o dirige
soberanamente para seu passado.

O sentido histórico, e é nisto que ele pratica a "Wirkliche Historie", reintroduz no devir tudo o que se
tinha acreditado imortal no homem. Cremos na perenidade dos sentimentos? Mas todos, e
sobretudo aqueles que nos parecem os mais nobres e os mais desinteressados, têm uma história.
Cremos na constância dos instintos e imaginamos que eles estão sempre atuantes aqui e ali, agora
como antes. Mas o saber histórico não tem dificuldade em colocá-los em pedaços - em mostrar
seus avatares, demarcar seus momentos de força e de fraqueza, identificar seus remos
alternantes, apreender sua lenta elaboração e os movimentos pelos quais, se voltando contra eles
mesmos, podem obstinar-se em sua própria destruição36. Pensamos em todo caso que o corpo
tem apenas as leis de sua fisiologia, e que ele escapa à história. Novo erro; ele é formado por uma
série de regimes que o constróem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é
intoxicado por venenos - alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente;
ele cria resistências37. A história "efetiva" se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que
ela não se apoia em nenhuma constância: nada no homem - nem mesmo seu corpo - é bastante
fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Tudo em que o homem se apoia para
se voltar em direção à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la
como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir sistematicamente tudo isto. E preciso
despedaçar o que permitia o jogo consolante dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem
histórica, não significa "reencontrar" e sobretudo não significa "reencontrar-nos". A história será
"efetiva" na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nossos
sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo. Ela não
deixará nada abaixo de si que teria a tranqüilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não
se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará
aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade.
E que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.

Podem-se apreender a partir de então as características próprias do sentido histórico como
Nietzsche o entende, e que opõe a "Wirkliche Historie" à história tradicional. Aquela inverte a
relação habitualmente estabelecida entre a irrupção do acontecimento e a necessidade continua.
Há toda uma tradição da história (teleológica ou racionalista) que tende a dissolver o
acontecimento singular em uma continuidade ideal - movimento teleológico ou encadeamento
natural. A história "efetiva" faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de único e agudo. E
preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas
uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado
contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma
outra que faz sua entrada, mascarada. As forças que se encontram em jogo na história não
obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta38. Elas não se
manifestam como formas sucessivas de uma intenção primordial; como também não têm o aspecto
de um resultado. Elas aparecem sempre na álea singular do acontecimento. Â diferença do mundo
cristão, universalmente tecido pela aranha divina, contrariamente ao mundo grego dividido entre o
reino da vontade e ó da grande besteira cósmica, o mundo da história "efetiva" conhece apenas um
único reino, onde não há nem providência, nem causa final, mas somente "as mãos de ferro da
necessidade que sacode o copo de dados do acaso"39. É preciso ainda compreender este acaso
não como um simples sorteio, mas como o risco sempre renovado da vontade de potência que a
todo surgimento do acaso opõe, para controlá-lo, o risco de um acaso ainda maior40. De modo que

o mundo tal qual nós o conhecemos não é essa figura simples onde todos os acontecimentos se
apagaram para que se mostrem, pouco a pouco, as características essenciais, o sentido final, o
valor primeiro e último; é ao contrário uma miriade de acontecimentos entrelaçados; ele nos parece
hoje "maravilhosamente colorido e confuso, profundo, repleto de sentido"; é que uma "multidão de
erros e fantasmas" lhe deu movimentos e ainda o povoa em segredo41. Cremos que nosso
presente se apoia em intenções profundas, necessidades estáveis; exigimos dos historiadores que
nos convençam disto. Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem
referências ou sem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos.
Ele tem também o poder de interverter a relação entre o próximo e o longínquo tal como foi
estabelecido pela história tradicional em sua fidelidade à obediência metafísica. Esta de fato se


compraz em lançar um olhar para o longínquo, para as alturas: as épocas mais nobres, as formas
mais elevadas, as idéias mais abstratas, as individualidades mais puras. E para fazer isto ela
procura se aproximar destas coisas ao máximo, colocar-se aos pés destes cumes em condições
de ter com relação a elas a famosa perspectiva das rãs. A história "efetiva", em contrapartida, lança
seus olhares ao que está próximo: o corpo, o sistema nervoso, os alimentos e a digestão, as
energias; ela perscruta as decadências; e se afronta outras épocas é com a suspeita - não
rancorosa, mas alegre - de uma agitação bárbara e inconfessável. Ela não teme olhar embaixo.
Mas olha do alto, mergulhando para apreender as perspectivas, desdobrar as dispersões e as
diferenças, deixar a cada coisa sua medida e sua intensidade. Seu movimento é o inverso daquele
que os historiadores operam sub-repticiamente: eles fingem olhar para o mais longe de si mesmos,
mas de maneira baixa, rastejando, eles se aproximam deste longínquo promete-dor (no que eles
são como os metafísicos que vêem, bem acima do mundo, um além apenas para prometê-lo a si
mesmos a titulo de recompensa); a história "efetiva" olha para o mais próximo, mas para dele se
separar bruscamente e se apoderar à distância (olhar semelhante ao do médico que mergulha para
diagnosticar e dizer a diferença). O sentido histórico está muito mais próximo da medicina do que
da filosofia. "Historicamente e fisiologicamente" costuma dizer Nietzsche42 . Nada espantoso, uma
vez que na idiossincrasia do filósofo se encontra a negação sistemática do corpo e "a falta de
sentido histórico, o ódio contra a idéia do devir, o egipcianismo", a obstinação "em colocar no
começo o que vem no fim" e em "situar as coisas últimas antes das primeiras"43. A história tem
mais a fazer do que ser serva da filosofia e do que narrar o nascimento necessário da verdade e do
valor; ela tem que ser o conhecimento diferencial das energias e desfalecimentos, das alturas e
desmoronamentos, dos venenos e contravenenos. Ela tem que ser a ciência dos remédios44.

Finalmente, última característica desta história efetiva: ela não teme ser um saber perspectivo. Os
historiadores procuram, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em seu saber, o lugar
de onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de
sua paixão. O sentido histórico, tal como Nietzsche o entende, sabe que 6 perspectivo, e não
recusa o sistema de sua própria injustiça. Ele olha de um determinado ângulo, com o propósito
deliberado de apreciar, de dizer sim ou não, de seguir todos os traços do veneno, de encontrar o
melhor antídoto. Em vez de fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha, em vez de aí
procurar sua lei e a isto submeter cada um de seus movimentos, é um olhar que sabe tanto de
onde olha quanto o que olha. O sentimento histórico dá ao saber a possibilidade de fazer, no
movimento de seu conhecimento, sua genealogia. A Wirkliche Historie" efetua, verticalmente ao
lugar em que se encontra, a genealogia da história.

Nesta genealogia da história que esboça em vários momentos, Nietzsche liga o sentido histórico à
história dos historiadores. Um e outro possuem um único começo, impuro e misturado. Eles
saíram, ao mesmo tempo, de um mesmo signo em que se pode reconhecer tanto o sistema de
uma doença quanto o germe de uma flor maravilhosa - e é em seguida que eles terão que se
distribuir. Sigamos, portanto, sem diferenciá-los ainda, sua comum genealogia.

A proveniência (Herkunft) do historiador não dá margem a equívoco: ela é de baixa extração. Uma
das características da história é a de não escolher: ela se coloca no dever de tudo compreender
sem distinção de altura; de tudo aceitar, sem fazer diferença. Nada lhe deve escapar mas também
nada deve ser excluído. Os historiadores dirão que isto é uma prova de tato e discreção: com que
direito fariam intervir seu gosto quando se trata daquilo que se passou realmente? Mas de fato é
uma total ausência de gosto, uma certa grosseria que procura tomar, com o que é mais elevado,
ares de familiaridade, que procura se satisfazer em encontrar o que é baixo. O historiador é
insensível a todos os nojos: ou melhor, ele tem prazer com aquilo mesmo que o coração deveria
afastar. Sua aparente serenidade se obstina em não reconhecer nada de grande e em reduzir tudo
ao mais fraco denominador. Nada deve ser mais elevado do que ele. Se ele deseja tanto saber e
tudo saber é para surpreender os segredos que rebaixam. "Baixa curiosidade". De onde vem a
história? Da plebe. A quem se dirige? Á plebe. E o discurso que ele lhe faz parece muito com o do
demagogo: "ninguém é maior do que vocês" diz este "e aquele que tiver a presunção de querer ser


superior a vocês - a vocês que são bons - é malvado"; e o historiador, que é seu duplo, o imita:
"nenhum passado é maior do que seu presente e tudo o que na história pode se apresentar com ar
de grandeza, meu saber meticuloso lhes mostrará a pequenez, a crueldade, e a infelicidade". O
parentesco do historiador remonta a Sócrates.

Mas esta demagogia deve ser hipócrita. Deve esconder seu singular rancor sob a máscara do
universal. E assim como o demagogo deve invocar a verdade, a lei das essências e a necessidade
eterna, o historiador deve invocar a objetividade, a exatidão dos fatos, o passado inamovível. O
demagogo é levado à negação do corpo para melhor estabelecer a soberania da idéia intemporal;

o historiador é levado ao aniquilamento de sua própria individualidade para que os outros entrem
em cena e possam tomar a palavra. Ele terá portanto que se obstinar contra si mesmo: calar suas
preferências e superar o nojo, embaralhar sua própria perspectiva para lhe substituir uma
geometria ficticiamente universal, imitar a morte para entrar no reino dos mortos, adquirir uma
quase existência sem rosto e sem nome. E neste mundo em que ele terá refreado sua vontade
individual ele poderá mostrar aos outros a lei inevitável de uma vontade superior. Tendo pretendido
apagar de seu próprio saber todos os traços do querer, ele reencontrará do lado do objeto a
conhecer a forma de um querer eterno. A objetividade do historiador é a interversão das relações
do querer no saber e é ao mesmo tempo a crença necessária na Providência, nas causas finais, e
na teologia. O historiador pertence à família dos ascetas. "Eu não posso mais suportar estes
eunucos concupiscentes da história, todos os parasitas do ideal ascético; eu não posso mais
suportar estes sepulcros caiados que produzem a vida; eu não posso suportar seres fatigados e
enfraquecidos que se cobrem de sabedoria e apresentam um olhar objetivo".45
Passemos à Entestehung da história; seu lugar é a Europa do séc. XIX: pátria das misturas e das
bastardias, época do homem-mistura. Com relação aos momentos de alta civilização ei-nos como
bárbaros: temos diante dos olhos cidades em ruínas e monumentos enigmáticos; detemo-nos
diante das muralhas abertas; perguntamo-nos que deuses puderam habitar aqueles templos
vazios. As grandes épocas não tinham tais curiosidades nem tão grandes respeitos; elas não
reconheciam predecessores; o classicismo ignorava Shakespeare. A decadência da Europa nos
oferece um espetáculo imenso cujos momentos mais fortes são omitidos ou são dispensados. O
próprio da cena em que nos encontramos hoje é representar um teatro; sem monumentos que
sejam nossa obra e que nos pertençam, nós vivemos cercados de cenários. Mas há mais: o
europeu não sabe quem ele é; ele ignora que raças se misturaram nele; ele procura que papel
poderia ter; ele não tem individualidade. Compreende-se então porque o séc. XIX é
espontaneamente historiador: a anemia de suas forças, as misturas que apagaram todas as suas
características produzem o mesmo efeito que as macerações do ascetismo; a impossibilidade em
que ele se encontra de criar, sua ausência de obra, a obrigação em que ele se encontra de se
apoiar no que foi feito antes e em outros lugares o constrangem à baixa curiosidade do plebeu.

Mas se esta é a genealogia da história, como ela pode se tornar análise genealógica? Como não
permanecer um conhecimento demagógico e religioso? Como pode, nesta mesma cena, mudar de
papel? A não ser que nos apoderemos dela, que a dominemos e a voltemos contra seu
nascimento. Isto é de fato o próprio de Entestehung: não é o surgimento necessário daquilo que
durante muito tempo tinha sido preparado antecipadamente; é a cena em que as forças se
arriscam e se afrontam, em que podem triunfar ou ser confiscadas. O lugar de emergência da
metafísica foi a demagogia ateniense, o rancor plebeu de Sócrates, sua crença na imortalidade.
Mas Platão teria podido apoderar-se desta filosofia socrática, teria podido voltá-la contra ela
mesma - e sem dúvida mais de uma vez ele foi tentado a fazê-lo. Sua derrota foi ter conseguido
fundá-la. O problema do séc. XIX é não fazer pelo ascetismo popular dos historiadores o que
Platão fez pelo de Sócrates. E preciso despedaçá-lo a partir daquilo que ele produziu e não
fundá-lo em uma filosofia da história; tornar-se mestre da história para dela fazer um uso
genealógico, isto é, um uso rigorosamente antiplatônico. E então que o sentido histórico
libertar-se-á da história supra-histórica.


O sentido histórico comporta três usos que se opõem, palavra por palavra, às três modalidades
platônicas da história. Um é o uso paródico e destruidor da realidade que se opõe ao tema da
história-reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo e destruidor da identidade que
se opõe à história-continuidade ou tradição; o terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdade
que se opõe à história-conhecimento. De qualquer modo se trata de fazer da história um uso que a
liberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo, metafísico e antropológico da memória. Trata-se
de fazer da história uma contramemória e de desdobrar consequentemente toda uma outra forma
do tempo.

Em primeiro lugar o uso paródico e burlesco. A esse homem confuso e anônimo que é o europeu -
e que não sabe mais quem ele é e que nome deve usar - o historiador oferece identidades
sobressalentes aparentemente melhor individualizadas e mais reais do que a sua. Mas o homem
do sentido histórico não deve se enganar com este substituto que ele oferece: é apenas um
disfarce. Alternadamente, se ofereceu à Revolução Francesa o modelo romano, ao romantismo a
armadura de cavaleiro, à época wagneriana a espada do herói germânico; mas são ouropéis cuja
irrealidade reenvia à nossa própria irrealidade. Deixe-se a alguns a liberdade de venerar essas
religiões e de celebrar em Bayreuth a memória desse novo além. Deixe-se a eles se fazerem
algibebes das identidades disponíveis. O bom historiador, o genealogista saberá o que é
necessário pensar de toda esta mascarada. Não que ele a rechace por espírito de seriedade; pelo
contrário, ele quer levá-la ao extremo: quer colocar em cena um grande carnaval do tempo em que
as máscaras reaparecem incessantemente. Em vez de identificar nossa pálida individualidade às
identidades marcadamente reais do passado, trata-se de nos irrealizar em várias identidades
reaparecidas: e retomando todas estas máscaras - Frederic de Hohenstaufen, César, Jesus,
Dionísio e talvez Zaratustra - recomeçando a palhaçada da história, nós retomaremos em nossa
irrealidade a identidade mais irreal do Deus que a traçou, "talvez nós descobriremos aqui o domínio
em que a originalidade nos é ainda possível, talvez como parodistas da história e como polichinelos
de Deus"46 Reconhece-se aqui o duplicador paródico daquilo que a segunda Extemporânea
chamava de "história monumental": história que se dava como tarefa restituir os grandes cumes do
devir, mantê-los em presença perpétua, reencontrar as obras, as ações, as criações segundo
omonograma de sua essência íntima. Mas, em 1874, Nietzsche criticava essa história inteiramente
devotada à veneração por obstruir as intensidades atuais da vida e suas criações. Trata-se, ao
contrário, nos últimos textos, de parodiá-la para deixar claro que ela é apenas paródia. A
genealogia é a história como um carnaval organizado.

Outro uso da história: a dissociação sistemática de nossa identidade. Pois esta identidade,
bastante fraca contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob uma máscara, é apenas uma
paródia: o plural a habita, almas inumeráveis nela disputam; os sistemas se entrecruzam e se
dominam uns aos outros. Quando estudamos a história nos sentimos "felizes, ao contrário dos
metafísicos, de abrigar em si não uma alma imortal mas muitas almas mortais"47. E, em cada uma
destas almas, a história não descobrirá uma identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas
um sistema complexo de elementos múltiplos, distintos, e que nenhum poder de síntese domina. "e
um signo de cultura superior manter em toda consciência certas fases da evolução que os homens
menores atravessam sem pensar... O primeiro resultado é que nós compreendemos nossos
semelhantes como sistemas inteiramente determinados e como representantes de culturas
diversas, quer dizer, como necessários e modificáveis. E em contrapartida: que em nossa própria
evolução nós somos capazes de separar pedaços e considerá-los à parte"48. A história,
genealogicamente

dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar
em dissipá-la; ela não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira
pátria à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as
descontinuidades que nos atravessam. Essa função é o contrário daquela que queria exercer,
segundo as Considerações Extemporâneas, a "história-antiquário". Tratava-se, então, de
reconhecer continuidades nas quais se enraíza nosso presente: continuidades do solo, da língua,
da cidade; tratava-se, "cultivando-se com uma mão delicada o que sempre existiu, de conservar,
para aqueles que virão, as condições sob as quais se nasceu"49. A segunda das Considerações
Extemporâneas lhe objetava que ela corre o risco de prevenir toda criação em nome da lei de
fidelidade. Um pouco mais tarde - já em Humano, Demasiadamente Humano - Nietzsche retoma a


tarefa antiquária, mas em direção inteirarnente oposta. Se a genealogia coloca, por sua vez, a
questão do solo que nos viu nascer, da língua que falamos ou das leis que nos regem, é para
clarificar Os sistemas heterogêneos que, sob a máscara de nosso eu, nos proíbem toda identidade.

Terceiro uso da história: o sacrifício do sujeito de conhecimento. Aparentemente, ou melhor,
segundo a máscara que ela usa, a consciência histórica é neutra, despojada de toda paixão,
apenas obstinada com a verdade. Mas se ela se interroga e se de uma maneira mais geral
interroga toda consciência científica em sua história, ela descobre, então, as formas e
transformações da vontade de saber que é instinto, paixão, obstinação inquisidora, refinamento
cruel, maldade; ela descobre a violência das opiniões preconcebidas: contra a felicidade ignorante,
contra as ilusões vigorosas através das quais a humanidade se protege, opiniões preconcebidas
com relação a tudo aquilo que há de perigoso na pesquisa e de inquietante na descoberta50. A
análise histórica deste grande querer-saber que percorre a humanidade faz portanto aparecer
tanto que todo o conhecimento repousa sobre a injustiça (que não há, pois, no conhecimento
mesmo um direito à verdade ou um fundamento do verdadeiro), quanto que o instinto de
conhecimento é mau (que há nele alguma coisa de assassino e que ele não pode, que ele não
quer fazer nada para a felicidade dos homens). Tomando, como ele o faz hoje, suas maiores
dimensões, o querer-saber não se aproxima de uma verdade universal; ela não dá ao homem um
exato e sereno controle da natureza; ao contrário, ele não cessa de multiplicar os riscos; ele
sempre faz nascer os perigos; abate as proteções ilusórias; desfaz a unidade do sujeito; libera nele
tudo o que se obstina a dissociá-lo e a destruí-lo. Em vez de o saber se separar, pouco a pouco,
de suas raízes empíricas, ou das primeiras necessidades que o fizeram nascer, para se tornar pura
especulação submetida às exigências da razão; em vez de estar ligado, em seu desenvolvimento,
à constituição e à afirmação de um sujeito livre, ele traz consigo uma obstinação sempre maior; a
violência instintiva se acelera nele e cresce; as religiões outrora exigiam o sacrifício do corpo
humano; o saber conclama hoje a experiências sobre nós mesmos, ao sacrifício d6 sujeito de
conhecimento. "O conhecimento se transformou em nós em uma paixão que não se aterroriza com
nenhum sacrifício, e tem no fundo apenas um único temor, de se extinguir a si próprio... A paixão
do conhecimento talvez até mate a humanidade... Se a paixão do conhecimento não matar a
humanidade ela morrerá de fraqueza. Que é preferível? Eis a questão principal. Queremos que a
humanidade se acabe no fogo e na luz, ou na areia?"52. É tempo de substituir os dois grandes
problemas que dividiram o pensamento filosófico do sêc. XIX (fundamento recíproco da verdade e
da liberdade, possibilidade de um saber absoluto), os dois temas principais legados por Fichte e
Hegel, pelo tema segundo o qual "morrer pelo conhecimento absoluto poderia fazer parte do
fundamento do ser53. 0 que não quer dizer, no sentido da critica, que a vontade de verdade seja
limitada pela finitude do conhecimento! Mas que ela perde todo o limite e toda intenção de verdade
no sacrifício que deve fazer do sujeito de conhecimento. "E talvez haja uma única idéia prodigiosa
que ainda poderia aniquilar qualquer outra aspiração, de modo que ela ganharia das mais
vitoriosas - eu quero dizer a idéia da humanidade se sacrificando a si própria. Pode-se jurar que
se a constelação dessa idéia aparecesse no horizonte, o conhecimento da verdade permaneceria a
única grande meta a que semelhante sacrifício seria proporcionado porque para o conhecimento
nenhum sacrifício é grande demais. Esperando, o problema nunca foi colocado..."54

As Considerações Extemporâneas

falavam do uso crítico da história: tratava-se de colocar o passado na justiça, de cortar suas com
faca, destruir as venerações tradicionais a fim de libertar o homem e não lhe deixar outra origem
senão aquela em que ele quer se reconhecer. Nietzsche criticava esta história crítica por nos
desligar de todas as nossas fontes reais e sacrificar o próprio movimento da vida apenas à
preocupação com a verdade. Vê-se que, um pouco mais tarde, Nietzsche retoma por sua conta
própria o que ele então recusava. Ele o retoma, mas com uma finalidade inteiramente diferente:
não se trata mais de julgar nosso passado em nome de uma verdade que o nosso presente seria o
único a deter. Trata-se de arriscar a destruição do sujeito de conhecimento na vontade,
indefinidamente desdobrada, de saber.

Em certo sentido a genealogia retorna às três modalidades da história que Nietzsche reconhecia
em 1874. Retorna a elas, superando objeções que ele lhes fazia então em nome da vida, de seu
poder de afirmar e criar. Mas retorna a elas, metamorfoseando-as: a veneração dos monumentos


torna-se paródia; o respeito às antigas continuidades torna-se dissociação sistemática; a crítica
das injustiças do passado pela verdade que o homem detém hoje torna-se destruição do sujeito de
conhecimento pela injustiça própria da vontade de saber.

SOBRE A JUSTIÇA POPULAR

(Na discussão que se segue, Michel Foucault e militantes maoistas procuram sistematizar uma
discussão que se tinha desencadeado em junho de 1971 na ocasião do projeto de um tribunal
popular para julgar a policia.)

Foucault:

Parece-me que não devemos partir da forma do tribunal e perguntar como e em que condições
pode haver um tribunal popular, e sim partir da justiça popular, dos atos de justiça popular e
perguntar que lugar pode aí ocupar um tribunal. É preciso se perguntar se esses atos de justiça
popular podem ou não se coadunar com a forma de um tribunal. A minha hipótese é que o tribunal
não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica
reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do
aparelho de Estado. Exemplo: em 1792, quando a guerra se desencadeia nas fronteiras e se pede
aos operários de Paris que partam para morrer, eles respondem: "Não partiremos antes de ter feito
justiça aos nossos inimigos internos. Enquanto nós nos expomos, eles estão protegidos pelas
prisões onde os enclausuraram. Só esperam a nossa partida para saírem de lá e restabelecerem a
antiga ordem das coisas. De qualquer modo, aqueles que nos governam hoje querem utilizar
contra nós, para nos fazer entrar na ordem, a dupla pressão dos inimigos que nos invadem do
exterior e dos que nos ameaçam no interior. Nós não iremos lutar contra os primeiros sem antes
nos termos desembaraçado dos últimos". As execuções de Setembro eram ao mesmo tempo um
ato de guerra contra os inimigos internos, um ato político contra as manobras dos homens no poder
e um ato de vingança contra as classes opressoras. Durante um período de luta revolucionária
violenta, isso não seria um ato de justiça popular, pelo menos em primeira abordagem: uma réplica
à opressão, estrategicamente útil e politicamente necessária? Ora, logo que as execuções
começaram em Setembro, homens da Comuna de Paris, ou próximos dela, intervieram e
organizaram a cena do tribunal: juizes atrás de uma mesa, representando uma terceira instância
entre o povo que grita "vingança" e os acusados que são "culpados" ou "inocentes"; interrogatórios
para estabelecer a "verdade" ou obter a "confissão"; deliberação para saber o que é "justo";
instância imposta a todos por via autoritária. Será que não vemos reaparecer aqui o embrião, ainda
que frágil, de um aparelho de Estado? A possibilidade de uma opressão de classe? Será que o
estabelecimento de uma instância neutra entre o povo e os seus inimigos, susceptível de
estabelecer a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o culpado e o inocente, o justo e o injusto, não
é uma maneira de se opor à justiça popular? Uma maneira de desarmá-la em sua luta real em
proveito de uma arbitragem ideal? E por isso que eu me pergunto se o tribunal, em vez de ser uma
forma da justiça popular, não é a sua primeira deformação.

Victor:


De acordo, mas considere exemplos tirados não da Revolução burguesa, mas de uma revolução
proletária. Tome a China como exemplo: a primeira etapa é a revolucionarização ideológica das
massas, as aldeias que se sublevam, os atos justos das massas camponesas contra seus inimigos:
execuções de déspotas, todo tipo de revide a todas as exações suportadas durante séculos, etc.
As execuções de inimigos do povo se multiplicam e podemos dizer que são atos de justiça popular.
Isto está certo: os olhos do camponês vêem de maneira justa as coisas e tudo vai muito bem no
campo. Mas em um estágio posterior, no momento da formação de um Exército Vermelho, já não
estão simplesmente em cena as massas que se sublevam e os seus inimigos, mas as massas, os
seus inimigos e um instrumento de unificação das massas que é o Exército Vermelho. Nesse
momento, todos os atos de justiça popular são fundamentados e disciplinados. E é preciso
jurisdições para que os diferentes atos possíveis de vingança estejam conformes ao direito, a um
direito do povo que já não tem nada a ver com as velhas jurisdições feudais. E preciso estar seguro
de que tal execução, tal ato de vingança, não será um ajuste de contas, portanto, pura e
simplesmente a desforra de um egoísmo contra todos os aparelhos de opressão também fundados
no egoísmo. Neste exemplo há realmente o que você chama de uma terceira instância entre as
massas e os seus opressores diretos. Você continuaria a afirmar que nesse momento o Tribunal
Popular não somente não é uma forma de justiça. popular, mas é uma deformação da justiça
popular?

Foucault:

Você tem certeza de que neste caso uma terceira instância veio se intrometer entre as massas e
os seus opressores? Não me parece: pelo contrário, diria que foram as próprias massas que se
colocaram como intermediárias entre alguém que teria se separado delas, de sua vontade, para
saciar uma vingança individual, e alguém que teria sido o inimigo do povo mas que só seria visado
pelo outro enquanto inimigo pessoal... No caso que eu cito, o Tribunal Popular, tal como funcionou
durante a Revolução Francesa, tendia a ser uma terceira instância, aliás bem determinada
socialmente; representava uma linha intermediária entre a burguesia no poder e a plebe parisiense,
uma pequena burguesia composta de pequenos proprietários, pequenos comerciantes, artesãos.
Colocaram-se como intermediários, fizeram funcionar um tribunal mediador e, para fazê-lo
funcionar referiram-se a uma ideologia que era até certo ponto a ideologia da classe dominante, ao
que era "bom" e "não bom" fazer ou ser. E por isso que, neste tribunal popular, eles não apenas
condenaram padres refratários ou pessoas comprometidas com o caso de 10 de agosto - em
número bastante limitado - mas mataram condenados às galés, quer dizer, pessoas condenadas
pelos tribunais do Antigo Regime, mataram prostitutas, etc. Vê-se bem então que eles retomaram

o lugar "mediano" da instância judiciária tal como ela tinha funcionado no Antigo Regime. Eles
substituíram o revide das massas àqueles que eram os seus inimigos pelo funcionamento de um
tribunal e boa parte de sua ideologia.
Victor.

É por isso que é interessante comparar os exemplos de tribunais durante a revolução burguesa
com os exemplos de tribunais durante a revolução proletária. O que você descreveu foi isso: entre
as massas fundamentais, a plebe de então e os seus inimigos, havia uma classe, a pequena
burguesia (uma terceira classe), que se interpôs, que tirou alguma coisa da plebe e uma outra
coisa da classe que se tornava dominante; ela desempenhou assim o seu papel de classe
mediana, fundiu estes dois elementos e dai resultou este tribunal popular que é, em relação ao
movimento de justiça popular feito pela plebe, um elemento de repressão interna, portanto, uma
deformação da justiça popular. Portanto, se havia um terceiro elemento, isso não decorre do
tribunal, mas da classe que dirigia esses tribunais, isto é, a pequena burguesia.

Foucault:

Eu gostaria de examinar um pouco a história do aparelho de Estado judiciário. Na Idade Média se
substituiu um tribunal arbitral (a que se recorria por consentimento mútuo, para por fim a um litígio
ou a uma guerra privada e que não era de modo nenhum um organismo permanente de poder) por
um conjunto de instituições estáveis, específicas, intervindo de maneira autoritária e dependente do
poder político (ou controlado por ele). Essa transformação apoiou-se em dois mecanismos. O


primeiro foi a fiscalização da justiça: pelo procedimento das multas, das confiscações, dos
sequestros de bens, das custas, das gratificações de todo tipo, fazer justiça era lucrativo; depois do
desmembramento do Estado carolíngio, a justiça tornou-se, entre as mãos dos senhores, não só
um instrumento de apropriação, um meio de coerção, mas diretamente uma fonte de riqueza; ela
produzia mais um rendimento paralelo à renda feudal, ou melhor, que fazia parte da renda feudal.
As justiças eram fontes de riqueza, eram propriedades. Produziam bens que se trocavam, que
circulavam, que se vendiam ou se herdavam com os feudos ou, às vezes, separados deles. As
justiças faziam parte da circulação das riquezas e da extração feudal. Para os que as possuíam,
eram um direito (ao lado do foro, da mão-morta, da dízima, da taxa de ocupação, das banalidades,
etc.); e para os que estavam sob sua jurisdição tomavam a forma de um foro não regular, mas a
que tinham que se submeter em certos casos. O funcionamento arcaico da justiça se inverte:
parece que remotamente a justiça tinha sido um direito para os que estavam sob sua jurisdição
(direito de pedir justiça, se concordavam com isso) e um dever para os árbitros (obrigação de
demonstrar o seu prestígio, a sua autoridade, a sua sabedoria, o seu poder político-religioso); daí
em diante vai-se tornar um direito (lucrativo) para o poder, obrigação (custosa) para os
subordinados.

Percebe-se aqui o cruzamento com o segundo mecanismo: o elo crescente entre a justiça e a
força das armas. Substituir as guerras privadas por uma justiça obrigatória e lucrativa, impor uma
justiça em que ao mesmo tempo se é juiz, parte e fisco e, substituindo as transações e acordos,
impor uma justiça que assegure, garanta e aumente em proporções notáveis a extração de parte
do produto do trabalho, isso implica que se disponha de uma força de coação. Não se pode
impô-la senão por uma coerção armada: só onde o suzerano é militarmente bastante forte para
impor a sua "paz", pode haver extração fiscal e jurídica. Tendo-se tornado fontes de rendimento,
as justiças seguiram o movimento de divisão das propriedades privadas. Mas, apoiadas na força
das armas, seguiram a sua concentração progressiva. Duplo movimento que conduziu ao resultado
"clássico": quando no século XIV o feudalismo teve que enfrentar as grandes revoltas camponesas
e urbanas, ele procurou apoio em um poder, em um exército, em um sistema fiscal centralizados;
e, ao mesmo tempo, apareceram, com o Parlamento, os procuradores do rei, as diligências
judiciárias, a legislação contra os mendigos, vagabundos ociosos e, dentro em pouco, os primeiros
rudimentos de polícia, uma justiça centralizada: o embrião de um aparelho de Estado judiciário que
cobria, reduplicava e controlava as justiças feudais com o seu sistema fiscal, mas que lhes permitia
funcionar. Assim apareceu uma ordem 'judiciária" que se apresentou como a expressão do poder
público: árbitro ao mesmo tempo neutro e autoritário, encarregado de resolver 'justamente" os
litígios e de assegurar "autoritariamente" a ordem pública. Foi sobre este pano de fundo de guerra
social, de extração fiscal e de concentração das forças armadas que se estabeleceu o aparelho
judiciário.

Compreende-se porque na França e, creio, na Europa Ocidental, o ato de justiça popular é
profundamente anti-judiciário e oposto à própria forma do tribunal. Nas grandes sedições, desde o
século XIV, atacam-se regularmente os agentes da justiça, tal como os agentes do fisco e, de uma
maneira geral, os agentes do poder: abrem-se as prisões, expulsam-se os juizes e fecha-se o
tribunal. A justiça popular reconhece na instância judiciária um aparelho de Estado representante
do poder público e instrumento do poder de classe. Gostaria de lançar uma hipótese, da qual não
estou seguro: parece-me que alguns hábitos próprios da guerra privada, alguns velhos ritos
pertencendo à justiça "pré-judiciária" se conservaram nas práticas de justiça popular: por exemplo,
era um velho rito germânico espetar em uma estaca, para expor em público, a cabeça de um
inimigo morto regularmente, 'juridicamente" durante uma guerra privada; a destruição da casa, ou
pelo menos o incêndio do madeirame e o saque do mobiliário é um rito antigo, correlato a por fora
da lei; ora, são esses atos anteriores à instauração do judiciário que revivem regularmente nas
sedições populares. Em torno da Bastilha tomada, passeia-se a cabeça de Delaunay; em torno do
símbolo do aparelho repressivo, circula, com os seus velhos ritos ancestrais, uma prática popular
que não se reconhece de modo nenhum nas instâncias judiciárias. Parece-me que a história da
justiça como aparelho de Estado permite compreender porque, pelo menos na França, os atos de
justiça realmente populares tendem a escapar ao Tribunal e por que, ao contrário, cada vez que a
burguesia quis impor à sedição do povo a coação de um aparelho de Estado, se instaurou um
tribunal: uma mesa, um presidente, assessores e dois adversários em frente. Assim reaparece o
judiciário. E assim que eu vejo as coisas.


Victor:

Você vê as coisas até 1789, mas o que me interessa é o que vem depois. Você descreveu o
nascimento de uma idéia de classe e como essa idéia de classe se materializa em práticas e
aparelhos. Eu compreendo perfeitamente que na Revolução Francesa o tribunal tenha podido ser
um instrumento de deformação e de repressão indireta dos atos de justiça popular da plebe.
Parece-me que havia várias classes sociais em jogo - de um lado a plebe, do outro os traidores
cia nação e da revolução, e entre os dois uma classe que procurou desempenhar ao máximo o
papel histórico que ela podia desempenhar. Portanto, o que eu posso tirar deste exemplo não são
conclusões definitivas quanto à forma do tribunal popular - de qualquer modo para nós não há
formas acima do devir histórico - mas somente como a pequena burguesia enquanto classe pegou
algumas idéias da plebe e em seguida, dominada como era, sobretudo nesta época, pelas idéias
da burguesia, esmagou-as pela forma dos tribunais da época. Daí eu não posso concluir nada
sobre a questão prática atual dos tribunais populares na revolução ideológica atual, ou a fortiori na
futura revolução popular armada. Por isso gostaria que comparássemos esse exemplo da
Revolução Francesa com o exemplo que dei da revolução popular armada na China. Você me
dizia: nesse exemplo só há dois termos: as massas e seus inimigos. Mas as massas delegam, de
certa maneira, uma parte do seu poder a um elemento que está profundamente ligado a elas mas
que é todavia distinto - o exército vermelho popular. Ora, essa composição do poder militar com o
poder judiciário que você indicou, também aparece quando o exército popular ajuda as massas a
organizar julgamentos regulares dos inimigos de classe. O que para mim não surpreende, na
medida em que o exército popular é um aparelho de Estado. Eu lhe coloco então a seguinte
questão: não será que você está sonhando com a possibilidade de passar da opressão atual ao
comunismo sem um período de transição - o que se chama tradicionalmente ditadura do
proletariado – em que são necessários aparelhos de Estado de um tipo novo, de que devemos
explicitar o conteúdo? Não será isso que está por trás da sua recusa sistemática da forma do
tribunal popular?

Foucault:

Você tem certeza de que se trata da simples forma do tribunal? Eu não sei como isso acontece na
China, mas olhemos meticulosamente o que significa a disposição espacial do tribunal, a
disposição das pessoas que estão em um tribunal. Isso pelo menos implica uma ideologia. Qual é
essa disposição? Uma mesa; atrás dessa mesa, que os distancia ao mesmo tempo das duas
partes, estão terceiros, os juizes; a posição destes indica primeiro que eles são neutros em relação
a uma e a outra; segundo, implica que o seu julgamento não é determinado previamente, que vai
ser estabelecido depois do inquérito pela audição das duas partes, em função de uma certa norma
de verdade e de um certo número de idéias sobre o justo e o injusto; e, terceiro, que a sua decisão
terá peso de autoridade. Eis o que quer dizer esta simples disposição espacial. Ora, creio que essa
idéia de que pode haver pessoas que são neutras em relação às duas partes, que podem julgá-las
em função de idéias de justiça com valor absoluto e que as suas decisões devem ser executadas
vai demasiado longe e parece muito distante da própria idéia de uma justiça popular. No caso de
uma justiça popular, não há três elementos; há as massas e os seus inimigos. Em seguida, as
massas, quando reconhecem em alguém um inimigo, quando decidem castigar esse inimigo - ou
reeducá-lo - não se referem a uma idéia universal abstrata de justiça, referem-se somente à sua
própria experiência, à dos danos que sofreram, da maneira como foram lesadas, como foram
oprimidas. Enfim, a decisão delas não é uma decisão de autoridade, quer dizer, elas não se
apoiam em um aparelho de Estado que tem a capacidade de impor decisões. Elas as executam
pura e simplesmente. Portanto, eu tenho a impressão de que a organização, ao menos a ocidental,
do tribunal não deve estar presente na prática da justiça popular.

Victor:

Não estou de acordo. Quanto mais você é concreto em relação a todas as revoluções que vão até
a revolução proletária, mais você se torna completamente abstrato em relação às revoluções
modernas, incluindo as ocidentais. Por isso eu volto a falar da França. Na Liberação houve
diferentes atos de justiça popular. Propositadamente, tomemos um ato equívoco de justiça popular,
um ato de justiça popular real mas equívoco, isto é, um ato manipulado de fato pelo inimigo de


classe; tiremos a lição geral para precisar a crítica teórica que eu faço.

Refiro-me às moças que tiveram suas cabeças raspadas porque tinham dormido com os "boches".
De certo modo, é um ato de justiça popular: de fato, o comércio, no sentido mais carnal do termo,
com o "boche' é algo que fere a sensibilidade física do patriotismo; na opinião do povo trata-se
realmente de um dano físico e moral. Todavia é um ato equívoco de justiça popular. Por que?
Simplesmente porque enquanto se divertia o povo com a tonsura dessas mulheres, os verdadeiros
colaboracionistas, os verdadeiros traidores continuavam em liberdade. Deixou-se portanto o
inimigo manipular esses atos de justiça popular, não o velho inimigo em desagregação militar, o
ocupante nazi, mas o novo inimigo, quer dizer, a burguesia francesa (excetuando a pequena
minoria demasiado desfigurada pela ocupação e que não podia mostrar-se demais). Que lição
podemos tirar desse ato equivoco de justiça popular? Não a tese segundo a qual o movimento de
massas seria desrazoável, pois houve uma razão para este ato de revide em relação às moças que
tinham dormido com oficiais alemães, mas que se o. movimento de massa não está sob a
orientação unificada do proletariado, pode ser desagregado do interior, manipulado pelo inimigo de
classe. Em resumo, as coisas não passam somente pelo movimento de massas. Isto quer dizer
que há contradições nas massas. Essas contradições no seio do povo em movimento podem
perfeitamente fazer desviar o curso do seu desenvolvimento, na medida em que o inimigo se apoie
sobre elas. Há portanto necessidade de uma instância que normalize o curso da justiça popular,
que lhe dê uma orientação. E isso as massas não podem fazê-lo diretamente, pois é preciso que
haja uma instância que tenha a capacidade de resolver as contradições internas das massas. No
exemplo da revolução chinesa, a instância que permitiu resolver essas contradições - e que ainda
desempenhou esse papel depois de tomado o poder de Estado, na época da Revolução Cultural -
foi o Exército Vermelho; ora, o Exército Vermelho é distinto do povo, mesmo se a ele está ligado,
pois o povo ama o exército e o exército ama o povo. Nem todos os chineses participavam nem
participam hoje do Exército Vermelho; o Exército Vermelho é uma delegação de poder do povo,
não é o próprio povo. E por isso que também há sempre a possibilidade de uma contradição entre

o exército e o povo e haverá sempre uma possibilidade de repressão deste aparelho de Estado
sobre as massas populares, o que abre a possibilidade e a necessidade de uma série de
revoluções culturais precisamente para abolir as contradições tornadas antagônicas entre esses
aparelhos de Estado que são o Exército, o partido ou o aparelho administrativo, e as massas
populares.
Portanto, eu seria contra os tribunais populares, eu os acharia completamente inúteis ou nocivos,
se as massas fossem um todo homogêneo quando se colocassem em movimento e, portanto, se
não houvesse necessidade de instrumentos de disciplina, de centralização e de unificação das
massas para desenvolver a revolução. Em suma, eu seria contra os tribunais populares se não
pensasse que para fazer a revolução é necessário um partido e, para que a revolução prossiga, um
aparelho de Estado revolucionário.

Quanto à objeção que você formulou a partir da análise das disposições espaciais do tribunal, eu
responderia da seguinte maneira: nós não estamos coagidos por nenhuma forma - no sentido
formal de disposição espacial - de nenhum tribunal. Um dos melhores tribunais da Liberação foi o
de Béthune: centenas de mineiros tinham decidido executar um "boche", isto é, um
colaboracionista; puseram-no na praça principal durante sete dias; todos os dias chegavam, diziam
"vamos executá-lo" e depois iam embora; o homem estava sempre lá e nunca era executado; a
certa altura, não sei que autoridade vacilante que ainda existia no lugar disse: "acabem com isso,
rapazes, matem-no ou libertem-no, isto não pode continuar assim", e eles disseram "está bem;
vamos camaradas, vamos executá-lo", apontaram e atiraram e o colaboracionista, antes de morrer
gritou "Heil Hitler", o que permitiu a todos dizer que o julgamento tinha sido justo... Nesse caso, não
havia a disposição espacial que você descreve. A questão das formas que a justiça deve tomar na
ditadura do proletariado não está resolvida, mesmo na China. Ainda se está na fase de
experimentação. Há luta de classe em relação à questão do judiciário. Isto mostra que não se vai
voltar à mesa, aos assessores, etc. Mas isso é só o aspecto superficial do problema. Seu exemplo
ia muito mais longe. Dizia respeito à questão da "neutralidade": na justiça popular, o que acontece
com esse terceiro elemento, portanto necessariamente neutro, e que seria detentor de uma
verdade diferente daquela das massas populares, constituindo por isso mesmo um anteparo?


Foucault:

Eu destaquei três elementos: 1º, um elemento "terceiro"; 2º, a referência a uma idéia, a uma forma,
a uma regra universal de justiça; 3º, uma decisão com poder executório; estas são as três
características do tribunal, que a mesa manifesta de maneira anedótica na nossa civilização.

Victor:

O elemento "terceiro" no caso da justiça popular é um aparelho de Estado revolucionário - por
exemplo, o Exército Vermelho no começo da revolução chinesa. Em que sentido é um elemento
terceiro, detentor de um "direito" e de uma "verdade", eis o que é preciso explicitar. Existem as
massas, esse aparelho de Estado revolucionário e o inimigo. As massas vão exprimir suas queixas
e abrir o dossiê de todas as exações, de todos os danos causados pelo inimigo; o aparelho de
Estado revolucionário vai considerar esse dossiê; o inimigo vai intervir para dizer "não concordo
com isso". Ora, a verdade dos fatos pode ser estabelecida. Se o inimigo vendeu três patriotas e
toda a população da comuna está presente, mobilizada para o julgamento, a verdade do fato deve
poder ser estabelecida. Se isto não acontece, é porque há um problema; se não se consegue
demonstrar que ele cometeu esta ou aquela exação, o mínimo que se pode dizer é que a vontade
de executá-lo não é um ato de justiça popular mas um ajuste de contas, opondo uma pequena
categoria das massas com idéias egoístas a esse inimigo ou pretenso inimigo.

O papel do aparelho de Estado revolucionário não terminou com o estabelecimento da verdade dos
fatos. Já no estabelecimento dessa verdade ele desempenha um papel, visto que permite a toda a
população mobilizada abrir o "dossiê" dos crimes do inimigo; mas seu papel não se limita a isso,
ele pode ainda ter uma atuação discriminatória em relação às condenações: prova-se por exemplo
que o patrão de uma oficina média explorou os operários abominavelmente, que é responsável por
muitos acidentes de trabalho; deverá ser executado? Supondo que se queira, por necessidade da
revolução, estabelecer aliança com essa média burguesia, ou que se diga que só seja preciso
executar um pequeno número de arqui-criminosos, estabelecendo para isso critérios objetivos,
então ele não será executado. Isto apesar dos operários da oficina cujos companheiros foram
mortos odiarem o patrão e quererem talvez executá-lo. Esta pode ser uma política justa, como o
foi, por exemplo, durante a revolução chinesa, a limitação consciente das contradições entre os
operários e a burguesia nacional; não sei se aqui isso acontecerá assim. Vou dar um exemplo
fictício: é verossímil que não se liquidem todos os patrões, sobretudo em um país como a França,
em que há muitas pequenas e médias empresas; seria gente demais... Isto significa dizer que o
aparelho de Estado revolucionário, em nome dos interesses de conjunto que se sobrepõem aos de
certa fábrica ou de certa aldeia, fornece um critério objetivo para a sentença. Volto ao exemplo do
início da revolução chinesa: em uma certa fase, era justo atacar todos os proprietários fundiários;
em outras fases, havia proprietários fundiários patriotas que não deviam ser atacados e era preciso
educar os camponeses, portanto ir contra as suas tendências naturais em relação a esses
proprietários fundiários.

Foucault:

O processo que você descreveu me parece completamente estranho à forma do tribunal. Qual é o
papel desse aparelho de Estado revolucionário representado pelo exército chinês? Será que o seu
papel é, entre as massas que representam uma certa vontade ou um certo interesse e um indivíduo
que representa um outro interesse ou uma vontade, escolher entre os dois, um lado ou o outro?
Evidentemente que não, pois trata-se de um aparelho de Estado que de toda maneira saiu das
massas, que é controlado pelas massas e que continua a sê-lo, que tem efetivamente um papel
positivo a desempenhar, não para decidir entre as massas e os seus inimigos, mas para assegurar
a educação, a formação política, o alargamento do horizonte e da experiência política das massas.
E aí o trabalho desse aparelho de Estado será impor uma sentença? De modo algum! Será educar
as massas de maneira que sejam as próprias massas que venham dizer: "com efeito, nós não
podemos matar esse homem", ou "com efeito, nós devemos matá-lo".

Você sabe que não é este o funcionamento do tribunal tal como existe em nossa sociedade
francesa atual - que é de um tipo inteiramente diferente - em que não é uma das partes que


controla a instância judiciária e em que a instância judiciária não educa. Para voltar ao exemplo
que você deu, se as pessoas se precipitaram sobre as mulheres para tonsurá-las foi porque
subtraíram às massas os colaboracionistas, que teriam sido os inimigos naturais e sobre os quais
se teria exercido a justiça popular, dizendo "oh, esses são demasiado culpados, vamos levá-los ao
tribunal"; eles foram metidos na prisão e levados a tribunal que, evidentemente, os absolveu.
Nesse caso, o tribunal desempenhou o papel de álibi em relação a atos de justiça popular.

Volto agora à essência de minha tese. Você fala das contradições no seio das massas e diz que é
necessário um aparelho de Estado revolucionário para ajudar as massas a resolvê-las. De acordo,
não sei o que se passou na China; talvez o aparelho judiciário fosse, como nos Estados feudais,
um aparelho extremamente flexível, pouco centralizado, etc. Nas sociedades como a nossa, pelo
contrário, o aparelho de justiça foi um aparelho de Estado extremamente importante cuja história foi
sempre mascarada. Faz-se a história do direito, da economia, mas a história da justiça, da prática
judiciária, do que foi efetivamente um sistema penal, do que foram os sistemas de repres são,
disso fala-se raramente. Ora, creio que a justiça como aparelho de Estado teve na história uma
importância capital. O sistema penal teve por função introduzir um certo número de contradições no
seio das massas e, em particular, uma contradição maior: opor os plebeus proletarizados aos
plebeus não proletarizados. A partir de uma certa época, o sistema penal, que tinha
essencialmente uma função fiscal na Idade Média, dedicou-se à luta anti-sediciosa. A repressão
das revoltas populares tinha sido até então sobretudo tarefa militar. Foi em seguida assegurada ou
melhor, prevenida, por um sistema complexo justiça-polícia-prisão.

É um sistema que desempenha, no fundo, um triplo papel; e, conforme as épocas, conforme o
estado das lutas e a conjuntura, prevalece ora um ora outro aspecto. Por um lado ele é um fator de
"proletarização": tem por função coagir o povo a aceitar o seu estatuto de proletário e as condições
de exploração do proletariado. E perfeitamente claro que, desde o fim da Idade Média até o século
XVIII, todas as leis contra os mendigos, os ociosos e os vagabundos, todos os órgãos de polícia
destinados a expulsá-los os coagiam - e era esse o seu papel - a aceitar no próprio lugar onde
viviam as condições extremamente más que lhes eram impostas. Se as recusavam, tinham que
partir, se mendigavam ou "não faziam nada", seu destino era o aprisionamento e freqüentemente o
trabalho forçado. Por outro lado, esse sistema penal dirigia-se especialmente aos elementos mais
móveis, mais agitados, os "violentos" da plebe; os que estavam mais prontos a passar à ação
imediata e armada; entre o proprietário endividado coagido a abandonar a sua terra, o camponês
que fugia do fisco, o operário banido por roubo, o vagabundo ou mendigo que recusava limpar os
fossos da cidade, os que viviam da pilhagem nos campos, os pequenos ladrões e os salteadores
de estrada, os que em grupos armados atacavam o fisco ou os agentes do Estado e, enfim, os que
nos dias de motim nas cidades ou nos campos traziam armas e fogo, havia um acordo, uma rede
de comunicação em que os indivíduos trocavam os seus papéis. Eram estas pessoas "perigosas"
que era preciso isolar (na prisão, no Hospital Geral, nas galés, nas colônias) para que não
pudessem servir de ponta de lança aos movimentos de resistência popular. Esse medo era grande
no século XVIII, foi maior ainda depois da Revolução e na ocasião de todas as agitações do século

XIX. Terceiro papel do sistema penal: fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos
olhos do proletariado como marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a
escória do povo, o rebotalho, a "gatunagem"; trata-se para a burguesia de impor ao proletariado,
pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da "literatura", certas categorias
da moral dita "universal" que servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada;
toda a figuração literária, jornalística, médica, sociológica, antropológica do criminoso (de que
tivemos exemplos na segunda metade do século XIX e começo do XX) desempenha este papel.
Enfim, a separação que o sistema penal opera e mantém entre o proletariado e a plebe não
proletarizada, todo o jogo das pressões que ele exerce sobre esta, permite à burguesia servir-se
de alguns desses elementos plebeus contra o proletariado; ela os usa como soldados, policiais,
traficantes, pistoleiros e utiliza-os na vigilância e na repressão do proletariado (e não somente os
fascismos deram exemplos disso).
A primeira vista, estas são algumas formas de funcionamento do sistema penal como sistema
anti-sedicioso: meios para opor a plebe proletarizada e a que não o é e introduzir assim uma
contradição agora bem marcante. Eis porque a revolução não pode deixar de passar pela
eliminação radical do aparelho de justiça. E tudo o que lembre o aparelho penal, tudo o que possa


lembrar a sua ideologia e permitir a essa ideologia insinuar-se sub-repticiamente nas práticas
populares, deve ser banido. Por isso o tribunal, como forma exemplar dessa justiça, me parece ser
um lugar de infiltração da ideologia do sistema penal na prática popular. Por isso penso que não
devemos apoiar-nos em um modelo como esse.

Victor:

Você sub-repticiamente esqueceu um século, o século XX. Eu lhe coloco portanto a questão: a
contradição principal no seio das massas é entre os prisioneiros e os operários?

Foucault:

Não entre os prisioneiros e os operários, mas uma das contradições é a que existe entre a plebe
não proletarizada e os proletários. Uma das contradições importantes, na qual a burguesia viu
durante muito tempo, e sobretudo depois da Revolução Francesa, um dos seus meios de proteção;
para ela o perigo maior contra o qual devia prevenir-se, o que ela tinha a todo o custo que evitar,
era a sedição, era o povo armado, eram os operários na rua e a rua investindo contra o poder. E
ela pensava reconhecer na plebe não proletarizada, nos plebeus que recusavam o estatuto de
proletários ou nos que estavam excluídos dele, a ponta de lança do motim popular. Ela criou
determinados procedimentos para separar a plebe proletarizada da plebe não proletarizada. E hoje
esses meios lhe fazem falta-lhe foram ou lhe são retirados.

Estes três meios são, ou eram, o exército, a colonização, a prisão (claro que a separação
plebe/proletariado e a prevenção anti-sediciosa era apenas uma das suas funções). O exército,
com o seu sistema de recrutamento, assegurava a extração sobretudo da população camponesa
que superpovoava o campo e que não encontrava trabalho na cidade; e era este exército que se
lançava, se fosse preciso, sobre os operários. A burguesia procurou manter uma oposição entre o
exército e o proletariado, que muitas vezes funcionou que às vezes não funcionou, quando os
soldados recusavam-se a marchar ou a atirar. A colonização constitui um outro meio de extração.
As pessoas enviadas para as colônias não recebiam um estatuto de proletário; serviam de
quadros, de agentes de administração, de instrumentos de vigilância e de controle dos colonizados.
E era sem dúvida para evitar que entre esses "pequenos brancos" e os colonizados se
estabelecesse uma aliança, que teria sido ai tão perigosa quanto a unidade proletária na Europa,
que se fornecia a eles uma sólida ideologia racista; "atenção, vocês vão para o meio de
antropófagos". Quanto ao terceiro tipo de extração da população, ele era realizado pela prisão. Em
torno dela e dos que para lá vão ou de lá saem, a burguesia construiu uma barreira ideológica (que
diz respeito ao crime, ao criminoso, ao roubo, à gatunagem, aos degenerados, à sub-humanidade)
que tem estreita relação com o racismo.

Mas hoje a colonização já não é possível na sua forma direta. O exército já não pode desempenhar

o mesmo papel que outrora. Por conseguinte, reforço da polícia, "sobrecarga" do sistema
penitenciário, que deve por si só preencher todas estas funções. O esquadrinhamento policial
quotidiano, os comissariados de polícia, os tribunais (e singularmente os de flagrante delito), as
prisões, a vigilância pós-penal, toda a série de controles que constituem a educação vigiada, a
assistência social, os "abrigos", devem desempenhar, no próprio local, um dos papéis que outrora
o exército e a colonização desempenhavam, transferindo e expatriando indivíduos.
Nesta história, a Resistência, a guerra da Argélia, maio de 68, foram episódios decisivos;
significaram o reaparecimento nas lutas da clandestinidade, das armas e da rua; significaram, por
outro lado, a implantação de um aparelho de combate contra a subversão interna (aparelho
reforçado em cada episódio, adaptado e aperfeiçoado mas, é claro, nunca perfeito): aparelho que
funciona "em continuidade" há trinta anos. Digamos que as técnicas utilizadas até 1940 se
apoiavam sobretudo na política imperialista (exército/colônia); as utilizadas depois aproximam-se
mais do modelo fascista (policia/esquadrinhamento interno/enclausuramento).

Victor:


Mas você não respondeu à minha pergunta: será que é essa a contradição principal no seio do
povo?

Foucault:

Eu não digo que seja a contradição principal.

Victor:

Você não diz, mas a história que você faz é eloqüente: a sedição vem da fusão da plebe
proletarizada com a plebe não proletarizada. Você descreveu todos os mecanismos para inscrever
uma linha divisória entre a plebe proletarizada e a plebe não proletarizada. É claro que quando
existe esta linha de divisão não há sedição, e quando se dá o restabelecimento da fusão há
sedição. Você pode dizer que para você esta não é a contradição principal, mas toda a história que
você fez demonstra que é a contradição principal. Não vou lhe responder referindo-me ao século

XX. Quero permanecer no século XIX, juntando um breve complemento histórico, um complemento
um pouco contraditório, tirado de um texto de Engels sobre o aparecimento da grande indústria
moderna1. Engels dizia que a primeira forma de revolta do proletariado moderno contra a grande
indústria é a criminalidade - os operários que matavam os patrões. Ele não procurou os
pressupostos nem todas as condições de funcionamento desta criminalidade, não fez a história da
idéia penal: falou do ponto de vista das massas e não do ponto de vista dos aparelhos de Estado
afirmando que a criminalidade é uma primeira forma de revolta. Depois ele rapidamente mostrou
que ela era muito embrionária e não muito eficaz. A segunda forma, já superior, é a destruição das
máquinas. Isto também não é muito eficaz, uma vez que, quebradas as máquinas, elas são
substituídas. Isso tocava em um aspecto da ordem social, mas não atacava as causas. A revolta
toma uma forma consciente quando se constitui a associação, o sindicalismo no seu sentido
original. A associação é a forma superior de revolta do proletariado moderno, porque resolve a
contradição principal nas massas: a oposição das massas entre si causadas pelo sistema social e
pelo seu núcleo, o modo de produção capitalista. E, nos diz Engels, simplesmente a luta contra a
concorrência entre operários - portanto a associação, na medida em que ela reúne os operários -
que permite colocar a concorrência ao nível da concorrência entre os patrões. E aqui que se situam
as primeiras descrições que ele faz das lutas sindicais pelo salário ou pela redução da jornada de
trabalho. Este pequeno complemento histórico leva-me a dizer que a contradição principal nas
massas opõe o egoísmo ao coletivismo, a concorrência à associação. Quando existe a associação,
isto é, quando o coletivismo vence a concorrência, surge a massa operária, portanto a plebe
proletarizada fusionada, e o movimento de massas. E só nesse momento aparece a primeira
condição de possibilidade da subversão, da sedição; a segunda condição é o fato de as massas se
apropriarem de todos os motivos de revolta de todo o sistema social e não apenas da oficina ou da
fábrica, para ocupar o terreno da sedição. E ai que se encontrará de fato, nas primeiras revoluções
do século XIX, a junção com a plebe não proletarizada, a fusão também com outras classes
sociais, os jovens intelectuais ou a pequena burguesia trabalhadora, os peque-nos comerciantes.
Foucault:

Eu não disse que era a contradição fundamental. Eu quis dizer que a burguesia via na sedição o
perigo principal. E assim que a burguesia vê as coisas; o que não quer dizer que as coisas se
passarão como ela teme e que a junção do proletariado e de uma plebe marginal iria provocar a
revolução. Concordo em grande parte com o que você acaba de lembrar a propósito de Engels.
Parece, com efeito, que no fim do século XVIII e no principio do XIX, a criminalidade foi percebida
pelo próprio proletariado como uma forma de luta social. Quando se chega à associação como
forma de luta, a criminalidade não tem mais exatamente este papel; ou melhor, a transgressão das
leis, a inversão provisória individual da ordem e do poder que a criminalidade constitui não pode
mais ter a mesma significação nem a mesma função nas lutas. E preciso notar que a burguesia,
obrigada a recuar perante essas formas de associação do proletariado, fez tudo o que pôde para
desligar esta força nova de uma fração do povo considerada como violenta, perigosa, sem respeito
pela legalidade, disposta por conseguinte à sedição. Dentre todos os meios utilizados, houve
alguns muito vastos (como a moral da escola primária, esse movimento que fazia passar toda uma
ética através da alfabetização, a lei sob a letra), houve alguns muito reduzidos, de minúsculos e


horríveis maquiavelismos (enquanto os sindicatos não possuíram personalidade jurídica, o poder
esforçou-se por introduzir em seu seio elementos que um dia fugiam com o cofre; era impossível
aos sindicatos prestar queixa; daí a reação de ódio contra os ladrões, desejo de ser protegido pela
lei, etc.)

Victor:

Sinto-me obrigado a fazer uma correção, para precisar e dialetizar um pouco esse conceito de
plebe não proletarizada. A ruptura principal, maior, que o sindicato institui, e que vai ser a causa da
sua degenerescência, não é a que existe entre a plebe proletarizada - no sentido de proletariado
instalado, instituído - e o lumpenproletariado, quer dizer, em sentido estrito, o proletariado
marginalizado, lançado fora do proletariado. A ruptura principal é a que existe entre uma minoria
operária e a grande massa operária, quer dizer, a plebe que se proletariza: esta plebe é o operário
que vem do campo, não é o vadio, o salteador, o desordeiro.

Foucault:

Creio não ter tentado mostrar, no que acabo de dizer, que se trata de uma contradição
fundamental. Descrevi um certo número de fatores e de efeitos, e tentei mostrar como eles se
encadeavam e como o proletariado tinha podido até um certo ponto pactuar com a ideologia moral
da burguesia.

Victor:

Você diz que é um fator entre outros, que não é a contradição principal. Mas todos os seus
exemplos, toda a história dos mecanismos que você descreve tendem a valorizar essa contradição.
Para você, o primeiro pacto de proletariado com o diabo é de ter aceito os valores "morais" pelos
quais a burguesia instaurava a separação entre a plebe não proletarizada e o proletariado, entre os
vadios e os trabalhadores honestos. Eu respondo que não. O primeiro pacto com o diabo das
associações operárias foi ter colocado como condição de adesão o fato de se pertencer a uma
profissão; foi isso que permitiu aos primeiros sindicatos serem corporações que excluíam a massa
dos operários não especializados.

Foucault:

A condição que você lembra é, sem dúvida, a mais fundamental. Mas veja o que ela implica como
conseqüência: que se os operários não integrados na profissão não estão presentes em um
sindicato, a fortiori também não o estão aqueles que não são proletários. Portanto, uma vez mais,
se colocarmos o problema: como tem funcionado o aparelho judiciário e, de uma maneira geral, o
sistema penal? Eu respondo: ele sempre funcionou de modo a introduzir contradições no seio do
povo. Não quero dizer - isso seria aberrante - que o sistema penal introduziu as contradições
fundamentais, mas oponho-me à idéia de o sistema penal ser uma vaga superestrutura. Ele teve
um papel constitutivo nas divisões da sociedade atual.

Gilles:

Pergunto-me se não haverá duas plebes nesta história. Será que se pode verdadeiramente definir
a plebe como aqueles que recusam ser operários, com a conseqüência, entre outras, de que a
plebe teria o monopólio da violência, e os operários, os proletários no sentido estrito, uma
tendência à não violência? Não será isso o resultado de uma visão burguesa do mundo, na medida
em que classifica os operários como um corpo organizado dentro do Estado, assim como os
camponeses, etc. etc., a plebe seria o resto: o resto sedicioso neste mundo pacificado, organizado,
que seria o mundo burguês cuja justiça tem por missão fazer respeitar as fronteiras. Mas a própria
plebe poderia perfeitamente ser prisioneira desta visão burguesa das coisas, quer dizer,
constituir-se como o outro mundo. E não tenho certeza de que, estando prisioneira desta visão, o
seu outro mundo não seja a reduplicação do mundo burguês. Com certeza não completamente por
causa das tradições, mas em parte. Além disso, há ainda um outro fenômeno: este mundo
burguês, estável, com separações, onde reina a justiça que se conhece, não existe. Será que,


atrás da oposição do proletariado e de uma plebe que tem o monopólio da violência, não há o
encontro entre o proletariado e o campesinato, não o campesinato "sensato", mas o campesinato
em revolta latente? Será que o que ameaça a burguesia não é acima de tudo o encontro dos
operários e dos camponeses?

Foucault:

Estou completamente de acordo com você em dizer que é preciso distinguir a plebe tal como a vê a
burguesia e a plebe que existe realmente. Mas o que nós tentamos ver é como funciona a justiça.
A justiça penal não foi produzida nem pela plebe, nem pelo campesinato, nem pelo proletariado,
mas pura e simplesmente pela burguesia, como um instrumento tático importante no jogo de
divisões que ela queria introduzir. Que este instrumento tático não tenha levado em conta as
verdadeiras possibilidades da revolução, é um fato feliz. Aliás, isso é natural, pois que, como
burguesia, ela não podia ter consciência das relações reais e dos processos reais. E, com efeito,
para falar do campesinato, pode-se dizer que as relações operários-camponeses não foram de
modo algum o objetivo do sistema penal ocidental no século XIX; tem-se a impressão de que a
burguesia no século XIX teve relativa confiança nos seus camponeses.

Gilles:

Se é assim, é possível que a solução real do problema proletariado/plebe passe pela capacidade
de resolver a questão da unidade popular, quer dizer, a fusão dos métodos de luta proletários e dos
métodos da guerra camponesa

Victor:

Assim ainda não se resolve a questão da fusão. Há também o problema dos métodos próprios aos
que circulam. Só se resolve a questão com um exército.

Gilles:

Isso significa que a solução da oposição proletariado/plebe não proletarizada implica o ataque ao
Estado, a usurpação do poder de Estado. E também por isso que temos necessidade de tribunais
populares.

Foucault:

Se o que se disse é verdade, a luta contra o aparelho judiciário é uma luta importante - não digo
uma luta fundamental, mas é tão importante quanto foi esta justiça na separação que a burguesia
introduziu e manteve entre proletariado e plebe. Este aparelho judiciário teve efeitos ideológicos
específicos sobre cada uma das classes dominadas. Há em particular uma ideologia do
proletariado que se tornou permeável a um certo número de idéias burguesas sobre o justo e o
injusto, o roubo, a propriedade, o crime, o criminoso. Isso não quer dizer no entanto que a plebe
não proletarizada se manteve tal e qual. PeIo contrário, a esta plebe, durante um século e meio, a
burguesia propôs as seguintes escolhas: ou vai para a prisão ou para o exército; ou vai para a
prisão ou para as colônias, ou vai para a prisão ou entra para a policia. De modo que a plebe não
proletarizada foi racista quando foi colonizadora; foi nacionalista, chauvinista quando foi militar. Foi
fascista quando foi policial. Estes efeitos ideológicos sobre a plebe foram reais e profundos. Os
efeitos sobre o proletariado são também reais. Este sistema é, em um certo sentido, muito sutil e
sustenta-se relativamente muito bem, mesmo se as relações fundamentais e ô processo real não
são vistos pela burguesia.

Victor:

Da discussão estritamente histórica, retém-se que a luta contra o aparelho penal forma uma
unidade relativa e que tudo o que você descreveu como implantação de contradições no seio do


povo, não representa uma contradição principal, mas uma série de contradições que tiveram uma
grande importância, do ponto de vista da burguesia. na luta contra a revolução. Mas com o que
você acaba de dizer, se entra no âmago da justiça popular, que ultrapassa largamente a luta contra

o aparelho judiciário; quebrar a cara de um chefezinho não tem nada a ver com a luta contra o juiz.
O mesmo se poderia dizer em relação ao camponês que executa um proprietário fundiário. É isso a
justiça popular e isso excede largamente a luta contra o aparelho judiciário. Se tomarmos o
exemplo do ano passado, vê-se que a prática da justiça popular é anterior às grandes lutas contra
o aparelho judiciário. Foi ela que as preparou: foram os primeiros sequestros, as porradas nos
chefezinhos que prepararam os espíritos para a grande luta contra a injustiça e contra o aparelho
judiciário, Guiot, as prisões, etc. No pós-maio 68, foi isto que se passou.
Você diz, grosso modo: há uma ideologia no proletariado que é uma ideologia burguesa e que
retoma um sistema de valores burgueses: a oposição entre moral e imoral, o justo e o injusto, o
honesto e o desonesto, etc. Haveria então degenerescência da ideologia no seio da plebe
proletária e degenerescência da ideologia da plebe não proletária, através de todos os mecanismos
de integração aos diversos instrumentos de repressão anti-popular. Ora, a formação da idéia
unificadora, do estandarte da justiça popular, é a luta contra a alienação das idéias dentro e fora do
proletariado, portanto também entre os "filhos desviados" do proletariado. Procuremos uma fórmula
que ilustre esta luta contra as alienações, essa fusão das idéias vindas de todas as partes do povo
- fusão das idéias que permite reunificar as partes separadas do povo, porque não é com idéias
que se faz avançar a história, mas com uma força material, a do povo que se reunifica nas ruas.
Um exemplo - a palavra de ordem que o P.C. lançou nos primeiros anos de ocupação para
justificar a pilhagem das lojas, em particular na rua de Buci: "donas de casa, fazemos bem em
roubar os que nos roubam". Perfeito. Ora, você vê como funciona a fusão: há uma demolição do
sistema de valores burgueses (os ladrões e as pessoas honestas), mas uma demolição de um tipo
particular, porque neste caso continuam a existir ladrões. É uma nova separação. Toda a plebe se
reunifica: são os não ladrões: e é o inimigo de classe que é ladrão. Por isso eu digo sem hesitar:
"Prisão para Rives Henry"

Analisando as coisas com profundidade, o processo revolucionário é sempre a fusão da sedição
das classes constituídas com a das classes decompostas. Mas esta fusão se faz em uma direção
precisa. Os "vagabundos", que eram milhões e milhões na China semi-colonial e semi-feudal,
foram a base do primeiro Exército Vermelho. Os problemas ideológicos deste exército estavam
ligados à ideologia mercenária destes "vagabundos". E Mao, da base vermelha onde estava
cercado, enviava apelos ao Comitê Central do Partido que diziam mais ou menos: mandem-me
três quadros vindos de uma fábrica para contrabalançar um pouco a ideologia de todos os meus
"miseráveis". A disciplina da guerra contra o inimigo não basta. E preciso contrabalançar a
ideologia mercenária com a ideologia que vem da fábrica. O Exército Vermelho sob a direção do
Partido, quer dizer, a guerra camponesa sob a direção do proletariado, foi o cadinho que permitiu a
fusão entre as classes camponesas em decomposição e a classe proletária. Para que haja então
subversão moderna, quer dizer, uma revolta que seja a primeira etapa de um processo de
revolução continua, é preciso que haja fusão dos elementos da sedição que vêm da plebe não
proletária e da plebe proletária, sob a direção do proletariado da fábrica, da sua ideologia. Há uma
intensa luta de classe entre as idéias que vêm da plebe não proletarizada e as que vêm do
proletariado: as segundas devem tomar a direção. O larápio que se tornou membro do Exército
Vermelho não rouba mais. No principio, se ele roubava a mais insignificante agulha pertencente a
um camponês, era imediatamente executado. Em outras palavras, a fusão só se desenvolve pelo
estabelecimento de uma norma, de uma ditadura. Volto ao meu primeiro exemplo: os atos de
justiça popular vindos de todas as camadas populares que sofreram danos materiais ou espirituais
causados pelos inimigos de classe não se tornam um amplo movimento, favorecendo a revolução
nos espíritos e na prática, se não forem normalizados; forma-se então um aparelho de Estado,
aparelho saído das massas populares mas que, de certo modo, se separa delas (sem no entanto
se isolar) e este aparelho tem, de certo modo, um papel de árbitro, não entre as massas e o inimigo
de classe, mas entre idéias opostas nas massas, para a solução das contradições no seio das
massas, para que o combate geral contra o inimigo de classe seja o mais eficaz, o mais direto
possível.


Logo, chega-se sempre, na época das revoluções proletárias, ao estabelecimento de um aparelho
de Estado de tipo revolucionário entre as massas e o inimigo de classe, com a possibilidade,
evidentemente, de que o aparelho se torne repressivo em relação às massas. Também não haverá
tribunais populares sem controle popular, logo, possibilidade de as massas os recusarem.

Foucault:

Gostaria de lhe responder brevemente. Você diz que é sob o controle do proletariado que a plebe
não proletarizada entrará no combate revolucionário. Absolutamente de acordo. Mas quando você
diz que é sob o controle da ideologia do proletariado, eu lhe pergunto o que você entende por
ideologia do proletariado.

Victor:

Por ideologia do proletariado eu entendo o pensamento de Mao-Tsé-Tung.

Foucault:

Certo. Mas você há de concordar que o que pensa a massa dos proletários franceses não é o
pensamento de Mao-Tsé-Tung nem forçosamente uma ideologia revolucionária. Além disso você
diz que é preciso um aparelho de Estado revolucionário para normalizar esta unidade nova
constituída pelo proletariado e a plebe marginalizada. De acordo, mas você há também de
concordar que as formas de aparelho de Estado que o aparelho burguês nos legou não podem em
nenhum caso servir de modelo às novas formas de organização. O tribunal, arrastando consigo a
ideologia da justiça burguesa e as formas de relação entre juiz e julgado, juiz e parte, juiz e
pleiteante, que são aplicadas pela justiça burguesa, parece-me ter desempenhado um papel muito
importante na dominação da classe burguesa. Quem diz tribunal, diz que a luta entre as forças em
presença está, quer queiram quer não, suspensa; que, em todo caso, a decisão tomada não será o
resultado deste combate, mas o da intervenção de um poder que lhes será, a uns e aos outros,
estranho e superior; que este poder está em posição de neutralidade entre elas e, por conseguinte,
pode, ou em todo caso deveria, reconhecer, na própria causa, de que lado está a justiça. O tribunal
implica também a existência de categorias comuns às partes em presença (categorias penais como

o roubo, a vigarice; categorias morais corno o honesto e o desonesto) e que as partes em presença
aceitem submeter-se a elas. E tudo isso que a burguesia quer fazer crer sobre a justiça, a sua
justiça. Todas essas idéias são armas de que a burguesia se tem servido no exercício do poder. E
por isso que me incomoda a idéia de um tribunal popular. Sobretudo se os intelectuais
desempenham nele os papéis do procurador ou do juiz, porque é precisamente por intermédio dos
intelectuais que a burguesia tem espalhado e imposto os temas ideológicos de que falo.
Por isso, esta justiça deve ser o alvo da luta ideológica do proletariado e da plebe não proletária;
por isso, as formas desta justiça devem ser objeto da maior desconfiança para o novo aparelho de
Estado revolucionário. Há duas formas às quais este aparelho revolucionário não deverá obedecer
em nenhum caso: a burocracia e o aparelho judiciário; assim como não deve haver burocracia, não
deve haver tribunal; o tribunal é a burocracia da justiça. Se você burocratiza a justiça popular, você
lhe dá a forma do tribunal.

Victor:

Como normalizá-la?

Foucault:

Respondo com um gracejo: deve-se inventá-la. As massas - proletárias ou plebéias - sofreram
demasiado com essa justiça, durante séculos, para que se continue a impor-lhes sua velha forma,
mesmo com um novo conteúdo. Elas lutaram desde os confins da Idade Média contra essa justiça.
Afinal de contas, a Revolução Francesa era uma revolta anti-judiciária. A primeira coisa que ela
explodiu foi o aparelho judiciário. A Comuna foi também profundamente anti-judiciária.


As massas encontrarão uma maneira de regular o problema dos seus inimigos, daqueles que.
individual ou coletivamente, as prejudicaram, métodos de revide que irão do castigo à reeducação,
sem passar pela forma do tribunal que - na nossa sociedade, sem dúvida, na China, não sei - se
deve evitar.

Por isso eu era contra o tribunal popular como forma solene, sintética, destinada a retomar todas
as formas de luta anti-judiciária. Seria reutilizar uma forma por demais carregada de ideologia
imposta pela burguesia, com as divisões que ela acarreta entre proletariado e plebe não
proletarizada. E um instrumento perigoso atualmente porque vai funcionar como modelo e perigoso
mais tarde, em um aparelho de Estado revolucionário, porque através dele se infiltrarão formas de
justiça que correriam o risco de restabelecer as divisões.

Victor.

Vou responder de modo provocador: é provável que o socialismo invente uma outra coisa que não
a cadeia. Portanto, quando se diz: "Cadeia para Dreyfus" se faz uma invenção, porque Dreyfus não
está na cadeia, mas uma invenção fortemente marcada pelo passado (a cadeia). A lição é a velha
idéia de Marx: o novo nasce a partir do antigo. Você diz que "as massas inventarão". Mas fica por
resolver uma questão prática no momento atual. Eu estou de acordo quanto ao fato de que as
formas da norma da justiça popular sejam renovadas, que se acabe com a mesa e a toga. Mas que
permaneça uma instância de normalização. E isto que se chama de tribunal popular.

Foucault:

Se você define o tribunal popular como instância de normalização - eu preferiria dizer: instância de
elucidação política - a partir da qual as ações de justiça popular podem se integrar no conjunto da
linha política do proletariado, estou de acordo. Mas acho difícil chamar uma tal instância de
"tribunal". Penso como você que o ato de justiça através do qual se responde ao inimigo de classe
não pode ser confiado a uma espécie de espontaneidade instantânea, não refletida, não integrada
a uma luta de conjunto. E preciso encontrar as formas de elaborar, pela discussão e pela
informação, esta necessidade de revide que existe, com efeito, nas massas. Em todo caso, o
tribunal com a sua tripartição entre as duas partes e a instância neutra, decidindo em função de
uma justiça que existe em si e para si, me parece um modelo particularmente nefasto para a
elucidação, para a elaboração política da justiça popular.

Victor:

Se amanhã se convocassem "Estados Gerais" em que estivessem representados todos os grupos
de cidadãos que lutam: comitês de luta, comitês anti-racistas, comitês de controle das prisões,
etc., em suma, o povo em sua representação atual, o povo no sentido marxista do termo, você
seria contra porque isso remeteria a um modelo antigo?

Foucault::

Os Estados Gerais muitas vezes foram ao menos um instrumento, não certamente da revolução
proletária, mas da burguesa e sabe-se que têm havido processos revolucionários no rastro desta
revolução burguesa. Depois dos Estados Gerais de 1357, houve a jacquerie; depois de 1789,
houve 1793. Por conseguinte, isso poderia ser um bom modelo. Pelo contrário, parece-me que a
justiça burguesa sempre funcionou para multiplicar as oposições entre proletários e plebe não
proletarizada. E por isso que ela é um mau instrumento, não por ser velha.

Há na própria forma do tribunal, apesar de tudo, o seguinte: diz-se às duas partes "em princípio, a
vossa causa não é justa ou injusta. Só o será no dia em que eu o disser, porque eu terei
consultado as leis ou os registros da equidade eterna". E a própria essência do tribunal e, do ponto
de vista da justiça popular, isto é completamente contraditório.

Gilles:


O tribunal diz duas coisas: "existe problema" e depois: "sobre este problema, enquanto terceiro
termo, eu decido, etc.". O problema é a captação do poder de fazer justiça pela anti-unidade
popular; daí a necessidade de representar esta unidade popular que faz justiça.

Foucault:

Você quer dizer que a unidade popular deve representar e manifestar que se apoderou - provisória
ou definitivamente - do poder de julgar?

Gilles:

O que eu quero dizer é que a questão do tribunal de Lens não se podia resolver exclusivamente
entre os mineiros e as Houilléres. Isto dizia respeito ao conjunto das classes populares.

Foucault:

A necessidade de afirmar a unidade dispensa a forma do tribunal. Eu diria mesmo - forçando um
pouco - que através do tribunal se reconstitui uma espécie de divisão do trabalho. Há os que
julgam - ou que dão a impressão de julgar - com toda a serenidade, sem estarem implicados. O
que reforça a idéia de que uma justiça só é justa se for exercida por alguém exterior á questão, por
um intelectual, um especialista da idealidade. Se, ainda por cima, este tribunal popular é presidido
ou organizado por intelectuais que vêm escutar o que dizem os operários de um lado e o patronato
do outro e afirmar "um é inocente, o outro é culpado", há uma infiltração de idealismo nisto! Ao
fazer dele um modelo geral para mostrar o que é a justiça popular, temo que se escolha o pior
modelo.

Victor:

Gostaria que fizéssemos o balanço da discussão. Primeira conclusão: é ato de justiça popular uma
ação feita pelas massas - uma parte homogênea do povo - contra o seu inimigo direto
considerado como tal...

Foucault:...

em revide a um dano preciso.

Victor:

O registro atual dos atos de justiça popular é o conjunto dos atos de subversão conduzidos no
momento pelas diferentes camadas populares.

Segunda conclusão: a passagem da justiça popular para uma forma superior supõe o
estabelecimento de uma norma que vise a resolver as contradições no seio do povo, a distinguir o
que é autenticamente justo do que é ajuste de contas, manipulável pelo inimigo para manchar a
justiça popular, para introduzir uma ruptura no seio das massas e, portanto, para contrariar o
movimento revolucionário. Estamos de acordo?

Foucault:

Não completamente sobre o termo norma. Preferiria dizer que um ato de justiça popular não pode
atingir a plenitude da sua significação se não for politicamente elucidado, controlado pelas próprias
massas.

Victor:

As ações de justiça popular permitem ao povo começar a tomar o poder, quando elas se inscrevem
em um conjunto coerente, quer dizer, quando são dirigidas politicamente, à condição de que esta
direção não seja externa ao movimento de massa, que as massas populares se unifiquem em torno


dela. E o que eu chamo de estabelecimento de normas, estabelecimento de novos aparelhos de
Estado.

Foucault,:

Suponhamos que em uma fábrica qualquer exista um conflito entre um operário e um chefe e que
este operário proponha aos seus camaradas uma ação de revide. Isso só será verdadeiramente
um ato de justiça popular se o seu objetivo, se os seus resultados possíveis forem integrados á luta
política do conjunto dos operários dessa fábrica...

Victor:

Sim, mas antes é preciso que essa ação seja justa: o que supõe que todos os operários estejam de
acordo em considerar que o chefe é um safado.

Foucault:

Isto supõe discussão dos operários e decisão tomada em conjunto antes de se passar à ação. Não
há aí nenhum embrião de um aparelho de Estado; e, no entanto, se transformou uma necessidade
individual de revide em ato de justiça popular.

Victor:

E uma questão de estágio. Primeiro há a revolta, depois a subversão, por fim a revolução. No
primeiro estágio o que você diz é justo.

Foucault:

Tinha-me parecido que, para você, só a existência de um aparelho de Estado podia transformar
um desejo de revide em ato de justiça popular.

Victor:

No segundo estágio. No primeiro estágio da revolução ideológica, sou pela pilhagem, sou pelos
"excessos". E preciso inverter a dominação; não se pode destruir o mundo delicadamente.

Foucault: E

preciso sobretudo acabar com a dominação...

Victor:

Isso vem depois. No princípio, se diz "Cadeia para Dreyfus", depois destrói-se a cadeia. No
primeiro estágio, pode haver um ato de revide contra um chefe que seja um ato de justiça popular,
mesmo que nem toda a oficina esteja de acordo, porque há os delatores, os "caxias" e até mesmo
um pequeno número de operários traumatizados pela idéia de que "apesar de tudo é o chefe".
Mesmo se houver excessos, se o mandarem três meses para o hospital e ele só merecer dois, é
um ato de justiça popular. Mús quando todas estas ações tomam a forma de um movimento de
justiça popular em marcha - o que para mim só tem sentido pela constituição de um exército
popular - surge o estabelecimento de uma norma, de um aparelho de Estado revolucionário.

Foucault:

Eu compreendo isso no estágio da luta armada, mas não me parece que em seguida seja
absolutamente necessária, para que o povo faça justiça, a existência de um aparelho de Estado
judiciário. O perigo é que um aparelho de Estado judiciário assuma o encargo dos atos de justiça
popular.


Victor:

Coloquemos só as questões a serem resolvidas agora. Não falemos dos tribunais populares na
França durante a luta armada, mas da etapa em que estamos, a da revolução ideológica. Uma das
suas características é o fato de multiplicar os contra-poderes reais, através das revoltas, dos atos
de subversão e de justiça. Contra-poderes no sentido estrito, isto é, que colocam o direito pelo
avesso, com a significação profundamente subversiva de que somos nós o verdadeiro poder, que
somos nós que repomos as coisas no seu lugar, que é o mundo tal como está constituído que está
pelo avesso.

Uma das operações de contra-poder, entre todas as outras, é a formação de tribunais populares,
contra os tribunais burgueses. Em que contexto isso se justifica? Não no de uma operação de
justiça no interior de uma oficina, onde há a oposição entre a massa e o inimigo de classe direto; à
condição de que as massas sejam mobilizadas para lutar contra este inimigo, a justiça pode
exercer-se diretamente. Há então o julgamento do chefe e não um tribunal. Há as duas partes, e
as coisas resolvem-se entre elas, mas com uma norma ideológica: nós estamos certos, ele é um
safado. Dizer que ele é um safado é estabelecer uma norma que, de certa forma, retoma, mas para
subverter, o sistema de valores burgueses - os vadios e as pessoas honestas. E assim que isso é
percebido ao nível da massa.

No contexto da cidade, onde há massas heterogêneas e onde é preciso que uma idéia - por
exemplo, julgar a polícia - as unifique, onde se deve portanto atingir a verdade, conquistar a
unidade do povo, pode ser uma excelente operação de contra-poder o estabelecimento de um
tribunal popular contra o conluio constante entre a polícia e os tribunais que legalizam as manobras
baixas.

Foucault:

Você diz que é uma vitória exercer um contra-poder frente a ou no lugar de um poder existente.
Quando os operários da Renault agarram um contramestre, o metem debaixo de um carro dizendo:
"agora é você que vai apertar parafusos", perfeito. Eles exercem efetivamente um contra-poder.
No caso do tribunal, é preciso levantar duas questões: o que será exatamente exercer um
contra-poder em relação à justiça? E qual é o poder real que se exerce em um tribunal popular
como o de Lens?

Em relação à justiça, a luta pode tomar várias formas. Em primeiro lugar, pode-se usar contra ela
suas próprias armas, por exemplo, apresentar queixa contra a polícia. Isso não é evidentemente
um ato de justiça popular; é a justiça burguesa apanhada em uma armadilha. Em segundo lugar,
pode-se fazer guerrilhas contra o poder de justiça e impedi-lo de se exercer. Por exemplo,
escapar da polícia, ridicularizar o tribunal, ir pedir satisfações a um juiz. Tudo isso é guerrilha
anti-judiciária, e não é ainda contra-justiça. A contra-justiça seria o poder de exercer, com relação
a uma pessoa passível de ser julgada e que habitualmente escapa a justiça, um ato de tipo
judiciário. Isto é, apoderar-se de sua pessoa, fazê-lo comparecer perante um tribunal, fazer um
juiz julgá-lo referindo-se a certas formas de eqüidade e condená-lo realmente a uma pena que
seria obrigado a cumprir. Isto é tomar exatamente o lugar da justiça.

Em um tribunal como o de Lens, não se exerce um poder de contra-justiça mas antes de tudo um
poder de informação: extraíram da classe burguesa, da direção das Houilléres, dos engenheiros,
informações que recusavam às massas. Em segundo lugar, o tribunal popular permitiu quebrar o
monopólio dos meios de transmissão das informações detido pelo poder. Exerceram-se, assim,
dois poderes importantes, o de conhecer e o de difundir a verdade. Isto é muito importante mas
não é um poder de julgar. A forma ritual do tribunal não representa realmente os poderes que
foram exercidos. Ora, é preciso que a forma de exercício de um poder - que deve ser visível,
solene, simbólica - remeta apenas ao poder que se exerce realmente e não a um outro poder que
não é realmente exercido nesse momento.

Victor:


O seu exemplo de contra-justiça é completamente idealista.

Foucault:

Precisamente. Eu penso que não pode haver contra-justiça, em sentido estrito. Porque a justiça,
tal como funciona enquanto aparelho de Estado, só pode ter por função dividir internamente as
massas. Portanto, a idéia de uma contra-justiça proletária é contraditória; esta não pode existir.

Victor:

Se você reparar bem, no tribunal de Lens o mais importante, na prática, não é o poder (que foi
conquistado) de conhecer e de difundir. O importante é que a idéia "Houillères, Assassinas" se
difunda, que ela substitua a idéia "os que lançaram as bombas são culpados". Afirmo que este
poder de pronunciar uma sentença inexecutável é um poder real que se traduz materialmente por
uma inversão ideológica no espírito das pessoas às quais se dirige. E evidente que não é um poder
judiciário. E absurdo imaginar uma contra-justiça, porque não poder haver um contra-poder
judiciário. Mas há um contra-tribunal que funciona ao nível da revolução nos espíritos.

Foucault:

Reconheço que o tribunal de Lens representa uma das formas de luta anti-judiciária. Ele
desempenhou um papel importante. Com efeito, desenrolou-se simultaneamente a um outro
processo, em que a burguesia exercia, como ela pode exercer, o seu poder de julgar. Neste
mesmo momento, pôde-se retomar, palavra por palavra, fato por fato, tudo o que era dito neste
tribunal para fazer o outro lado aparecer. O tribunal de Lens era o inverso do que era feito no:
tribunal burguês: um revelava o que o outro escondia. Isto parece-me uma forma perfeitamente
adequada de saber e de propagar o que realmente se passa nas fábricas e nos tribunais.
Excelente meio de informação sobre o modo como a justiça se exerce com relação à classe
operária.

Victor:

Estamos então de acordo sobre um terceiro ponto: uma operação de contra-processo, de tribunal
popular, é uma operação de contra-poder no sentido preciso em que o tribunal popular funciona
como o contrário do tribunal burguês aquilo que os jornais burgueses chamam de "paródia de
justiça".

Foucault:

Não penso que as três teses que você enunciou representem completamente a discussão e os
pontos sobre os quais estivemos de acordo. Pessoalmente, a idéia que eu quis introduzir na
discussão é a de que o aparelho de Estado burguês de justiça, cuja forma visível, simbólica é o
tribunal, tinha por função essencial introduzir e multiplicar contradições no seio das massas,
principalmente entre proletariado e plebe não proletarizada e que, por isso, as formas desta justiça
e a ideologia que está ligada a elas devem tornar-se alvo da nossa luta atual. E a ideologia moral -
pois o que é a nossa moral, senão aquilo que nunca deixou de ser reafirmado e reconfirmado pelas
sentenças dos tribunais -, esta ideologia moral, como as formas de justiça sustentadas pelo
aparelho burguês, deve passar pelo crivo da mais severa crítica...

Victor:

Mas em relação à moral, existe também contra-poder: o ladrão não é aquele que se crê...

Foucault:

Neste caso, o problema torna-se muito difícil. E do ponto de vista da propriedade que há roubo e
ladrão. Direi para concluir que a reutilização de uma forma como a do tribunal, com tudo o que ela
implica - posição do juiz como terceiro termo, referência a um direito ou a uma eqüidade, sentença


decisiva - deve também passar pelo crivo de uma critica muito severa; e eu só vejo re-utilização
válida para ela no caso em que se possa, paralelamente a um processo burguês, abrir um
contra-processo que faça aparecer como mentira a verdade do outro, e como abuso de poder as
suas decisões. Além deste caso, vejo mil possibilidades de guerrilha judiciária ou de atos de justiça
popular, que não passam pela forma do tribunal.

Victor:

Creio que estamos de acordo quanto à sistematização da prática. E possível que não tenhamos ido
até ao fundo de um desacordo filosófico...

5 de fevereiro de 1972.

OS INTELECTUAIS E O PODER

Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze

Michel Foucault:

Um maoísta me dizia: "Eu compreendo porque Sartre está conosco, porque e em que sentido ele
faz política; você, eu compreendo um pouco: você sempre colocou o problema da reclusão. Mas
Deleuze, realmente eu não compreendo". Esta observação me surpreendeu muito porque isto me
parece bastante claro.

Gilles Deleuze:

Talvez seja porque estejamos vivendo de maneira nova as relações teoria-prática. As vezes se
concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma conseqüência; as vezes, ao contrário,
como devendo inspirar a teoria, como sendo ela própria criadora com relação a uma forma futura
de teoria. De qualquer modo, se concebiam suas relações como um processo de totalização, em
um sentido ou em um outro. Talvez para nós a questão se coloque de outra maneira. As relações
teoria-prática são muito mais parciais e fragmentárias. Por um lado, uma teoria é sempre local,
relativa a um pequeno domínio e pode se aplicar a um outro domínio, mais ou menos afastado. A
relação de aplicação nunca é de semelhança. Por outro lado, desde que uma teoria penetre em
seu próprio domínio encontra obstáculos que tornam necessário que seja revezada por outro tipo
de discurso (é este outro tipo que permite eventualmente passar a um domínio diferente). A prática
é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um revezamento de uma prática a
outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a
prática para atravessar o muro. Por exemplo, você começou analisando teoricamente um meio de
reclusão como o asilo psiquiátrico, no século XIX, na sociedade capitalista. Depois você sentiu a
necessidade de que pessoas reclusas, pessoas que estão nas prisões, começassem a falar por si
próprias, fazendo assim um revezamento. Quando você organizou o G.I.P. (Grupo de Informação


Prisões) foi baseado nisto: criar condições para que os presos pudessem falar por si mesmos.
Seria totalmente falso dizer, como parecia dizer o maoista, que você teria passado à prática
aplicando suas teorias. Não havia aplicação, nem projeto de reforma, nem pesquisa no sentido
tradicional. Havia uma coisa totalmente diferente: um sistema de revezamentos em um conjunto,
em uma multiplicidade de componentes ao mesmo tempo teóricos e práticos. Para nós, o
intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa.
Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados, seja por um partido ou um sindicato
que se arrogaria o direito de ser a consciência deles. Quem fala e age? Sempre uma
multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age. Nós somos todos pequenos grupos.
Não existe mais representação, só existe ação: ação de teoria, ação de prática em relações de
revezamento ou em rede.

M.F.:

Parece-me que a politização de um intelectual tradicionalmente se fazia a partir de duas coisas:
em primeiro lugar, sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no sistema de produção
capitalista, na ideologia que ela produz ou impõe (ser explorado, reduzido à miséria, rejeitado,
"maldito", acusado de subversão, de imoralidade, etc.); em segundo lugar, seu próprio discurso
enquanto revelava uma determinada verdade, descobria relações políticas onde normalmente elas
não eram percebidas. Estas duas formas de politização não eram estranhas uma em relação à
outra, embora não coincidissem necessariamente. Havia o tipo do intelectual "maldito" e o tipo do
intelectual socialista. Estas duas formas de politização facilmente se confundiram em determinados
momentos de reação violenta do poder, depois de 1848, depois da Comuna de Paris, depois de
1940: o intelectual era rejeitado, perseguido, no momento mesmo em que as "coisas" apareciam
em sua "verdade", no momento em que não se devia dizer que o rei estava nu. O intelectual dizia a
verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-la: consciência
e eloquência.

Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para
saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem.
Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que
não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito
profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem
parte deste sistema de poder, a idéia de que eles são agentes da "consciência" e do discurso
também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na
frente ou um pouco de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as
formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do
saber, da "verdade", da "consciência", do discurso.

E por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática.
Mas local e regional, como você diz: não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo
aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e mais insidioso. Luta não para uma "tomada de
consciência" (há muito tempo que a consciência como saber está adquirida pelas massas e que a
consciência como sujeito está adquirida, está ocupada pela burguesia), mas para a destruição
progressiva e a tomada do poder ao lado de todos aqueles que lutam por ela, e não na retaguarda,
para esclarecê-los. Uma "teoria" é o sistema regional desta luta.

G.D.:

Exatamente. Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É
preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la,
a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o
momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas. E
curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão
claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem,
consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento


de combate. A teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica. E o poder que por natureza
opera totalizações e você diz exatamente que a teoria por natureza é contra o poder. Desde que
uma teoria penetra em determinado ponto, ela se choca com a impossibilidade de ter a menor
conseqüência prática sem que se produza uma explosão, se necessário em um ponto totalmente
diferente. Por este motivo a noção de reforma é tão estúpida e hipócrita. Ou a reforma é elaborada
por pessoas que se pretendem representativas e que têm como ocupação falar pelos outros, em
nome dos outros, e é uma reorganização do poder, uma distribuição de poder que se acompanha
de uma repressão crescente. Ou é uma reforma reivindicada, exigida por aqueles a que ela diz
respeito, e aí deixa de ser uma reforma, é uma ação revolucionária que por seu caráter parcial está
decidida a colocar em questão a totalidade do poder e de sua hierarquia. Isto é evidente nas
prisões: a menor, a mais modesta reivindicação dos prisioneiros basta para esvaziar a
pseudo-reforma Pleven. Se as crianças conseguissem que seu protestos, ou simplesmente suas
questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto
do sistema de ensino. Na verdade, esse sistema em que vivemos nada pode suportar: dai sua
fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo que sua força global de repressão. A meu ver,
você foi o primeiro a nos ensinar - tanto em seus livros quanto no domínio da prática - algo de
fundamental: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer que se ridicularizava a
representação, dizia-se que ela tinha acabado, mas não se tirava a conseqüência desta conversão
"teórica", isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela concerne falassem por elas
próprias.

M.F.:

E quando os prisioneiros começaram a falar, viu-se que eles tinham uma teoria da prisão, da
penalidade, da justiça. Esta espécie de discurso contra o poder, esse contra-discurso expresso
pelos prisioneiros, ou por aqueles que são chamados de delinqüentes, é que é o fundamental, e
não uma teoria sobre a delinqüência. O problema da prisão é um problema local e marginal na
medida em que menos de cem mil pessoas passam anualmente pelas prisões; atualmente, na
França, talvez haja ao todo trezentas ou quatrocentas mil pessoas que tenham passado pela
prisão. Ora, esse problema marginal atinge as pessoas. Fiquei surpreso de ver que se podia
interessar pelo problema das prisões tantas pessoas que não estavam na prisão, de ver como
tantas pessoas que não estavam predestinadas a escutar esse discurso dos detentos, o ouviam.
Como explicar isto? Não será que, de modo geral, o sistema penal é a forma em que o poder como
poder se mostra da maneira mais manifesta? Prender alguém, mantê-lo na prisão, privá-lo de
alimentação, de aquecimento, impedi-lo de sair, de fazer amor, etc., é a manifestação de poder
mais delirante que se possa imaginar. Outro dia eu falava com uma mulher que esteve na prisão e
ela dizia: "quando se pensa que eu, que tenho 40 anos, fui punida um dia na prisão, ficando a pão
e água!" O que impressiona nesta história é não apenas a puerilidade dos exercícios do poder, mas

o cinismo com que ele se exerce como poder, da maneira mais arcaica, mais pueril. mais infantil.
Reduzir alguém a pão e água... isso são coisas que nos ensinam quando somos crianças. A prisão
é o único lugar onde o poder pode se manifestar em estado puro em suas dimensões mais
excessivas e se justificar como poder moral. "Tenho razão em punir pois vocês sabem que é
desonesto roubar, matar...".
O que é fascinante nas prisões é que nelas o poder não se esconde, não se mascara cinicamente,
se mostra como tirania levada aos mais íntimos detalhes, e, ao mesmo tempo, é puro, é
inteiramente "justificado", visto que pode inteiramente se formular no interior de uma moral que
serve de adorno a seu exercício: sua tirania brutal aparece então como dominação serena do Bem
sobre o Mal, da ordem sobre a desordem.

G.D.:

E o inverso é igualmente verdadeiro. Não são apenas os prisioneiros que são tratados como
crianças, mas as crianças como prisioneiras. As crianças sofrem uma infantilização que não é a
delas. Neste sentido, é verdade que as escolas se parecem um pouco com as prisões, as fábricas
se parecem muito com as prisões. Basta ver a entrada na Renault. Ou em outro lugar: três
permissões por dia para fazer pipi. Você encontrou um texto de Jeremias Bentham, do século
XVIII, que propõe precisamente uma reforma das prisões: em nome desta nobre reforma, ele


estabelece um sistema circular em que a prisão renovada serve de modelo para outras instituições,
e em que se passa insensivelmente da escola à manufatura, da manufatura à prisão e
inversamente. É isto a essência do reformismo, a essência da representação reformada. Ao
contrário, quando as pessoas começam a falar e a agir em nome delas mesmas não opõem uma
representação, mesmo invertida, a uma outra, não opõem uma outra representatividade à falsa
representatividade do poder. Lembro-me, por exemplo, de que você dizia que não existe justiça
popular contra a justiça; isso se passa em outro nível.

M.F.:

Penso que, atrás do ódio que o povo tem da justiça, dos juizes, dos tribunais, das prisões, não se
deve apenas ver a idéia de outra justiça melhor e mais justa, mas antes de tudo a percepção de um
ponto singular em que o poder se exerce em detrimento do povo. A luta anti-judiciária é uma luta
contra o poder e não uma luta contra as injustiças, contra as injustiças da justiça e por um melhor
funcionamento da instituição judiciária. Não deixa de ser surpreendente que sempre que houve
motins, revoltas e sedições o aparelho judiciário tenha sido um dos alvos, do mesmo modo que o
aparelho fiscal, o exército e as outras formas de poder. Minha hipótese - mas é apenas uma
hipótese - é que os tribunais populares, por exemplo no momento da Revolução Francesa, foram
um modo da pequena burguesia aliada ás massas recuperar, retomar nas mãos o movimento de
luta contra a justiça. E para retomá-lo, propôs o sistema do tribunal que se refere a uma justiça que
poderia ser justa, a um juiz que poderia dar uma sentença justa. A própria forma do tribunal
pertence a uma ideologia da justiça que é a da burguesia.

G.D.:

Se se considera a situação atual, o poder possui forçosamente uma visão total ou global. Quero
dizer que todas as formas atuais de repressão, que são múltiplas, se totalizam facilmente do ponto
de vista do poder: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão
no ensino, a repressão contra os jovens em geral. Não se deve apenas procurar a unidade de
todas essas formas em uma reação a Maio de 68, mas principalmente na preparação e na
organização de nosso futuro próximo. O capitalismo francês tem grande necessidade de uma
"reserva" de desemprego e abandona a máscara liberal e paternal do pleno emprego. E deste
ponto de vista que encontram unidade: a limitação da imigração, já tendo sido dito que se confiava
aos imigrados os trabalhos mais duros e ingratos; a repressão nas fábricas, pois se trata de
devolver ao francês o "gosto" por um trabalho cada vez mais duro; a luta contra os jovens e a
repressão no ensino, visto que a repressão policial é tanto mais ativa quanto menos necessidade
de jovens se tem no mercado de trabalho. Vários tipos de categorias profissionais vão ser
convidados a exercer funções policiais cada vez mais precisas: professores, psiquiatras,
educadores de todos os tipos, etc. E algo que você anunciava há muito tempo e que se pensava
que não poderia acontecer: o reforço de todas as estruturas de reclusão. Então, frente a esta
política global do poder se fazem revides locais, contra-ataques, defesas ativas e às vezes
preventivas. Nós não temos que totalizar o que apenas se totaliza do lado do poder e que só
poderíamos totalizar restaurando formas representativas de centralismo e de hierarquia. Em
contrapartida, o que temos que fazer é instaurar ligações laterais, todo um sistema de redes, de
bases populares. E é isto que é difícil. Em todo caso, para nós a realidade não passa de modo
algum pela política, no sentido tradicional de competição e distribuição de poder, de instâncias
ditas representativas do tipo P.C. ou C.G.T.. A realidade é o que está acontecendo efetivamente
em uma fábrica, uma escola, uma caserna, uma prisão, um comissariado. De tal modo que a ação
comporta um tipo de informação de natureza totalmente diferente das informações dos jornais
(como o tipo de informação da Agence de Presse Libération).

M.F.:

Esta dificuldade - nosso embaraço em encontrar as formas de luta adequadas - não virá de que
ainda ignoramos o que é o poder? Afinal de contas, foi preciso esperar o século XIX para saber o
que era a exploração, mas talvez ainda não se saiba o que é o poder. E Marx e Freud talvez não
sejam suficientes para nos ajudar a conhecer esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e
invisível, presente e oculta, investida em toda parte, que se chama poder. A teoria do Estado, a


análise tradicional dos aparelhos de Estado sem dúvida não esgotam o campo de exercício e de
funcionamento do poder. Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde

o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos
ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe-se muito bem que não são os governantes
que o detêm. Mas a noção de "classe dirigente" nem é muito clara nem muito elaborada.
"Dominar", "dirigir",' "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado", etc.. é todo um conjunto de
noções que exige análise. Além disso, seria necessário saber até onde se exerce o poder, através
de que revezamentos e até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de
proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu
titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros
do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. Se a leitura de
seus livros (do Nietzsche e a filosofia até o que pressinto ser o AntiÉdipo: Capitalismo e
Esquizofrenia) foi tão essencial para mim, é que eles me parecem ir bastante longe na colocação
deste problema: sob o velho tema do sentido, significado, significante, etc., a questão do poder, da
desigualdade dos poderes, de suas lutas. Cada luta se desenvolve em torno de um foco particular
de poder (um dos inúmeros pequenos focos que podem ser um pequeno chefe, um guarda de H. L.
M., um diretor de prisão, um juiz, um responsável sindical, um redator-chefe de um jornal). E se
designar os focos, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não é porque ninguém ainda
tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse respeito - forçar a rede de informação
institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo - é uma primeira inversão de
poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder. Se discursos como, por exemplo, os
dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles confiscam, ao menos por um
momento, o poder de falar da prisão, atualmente monopolizado pela administração e seus
compadres reformadores. O discurso de luta não se opõe ao inconsciente: ele se opõe ao segredo.
Isso dá a impressão de ser muito menos. E se fosse muito mais? Existe uma série de equívocos a
respeito do "oculto", do "recalcado", do "não dito" que permite "psicanalisar" a baixo preço o que
deve ser o objeto de uma luta. O segredo é talvez mais difícil de revelar que o inconsciente. Os
dois temas ainda há pouco freqüentes - "a escritura é o recalcado" e "a escritura é de direito
subversiva" - me parecem revelar certo número de operações que é preciso denunciar
implacavelmente.
G.D.: Quanto ao problema que você coloca - vê-se quem explora, quem lucra, quem governa,
mas o poder é algo ainda mais difuso - eu levantaria a seguinte hipótese: mesmo o marxismo - e
sobretudo ele - determinou o problema em termos de interesse (o poder é detido por uma classe
dominante definida por seus interesses). Imediatamente surge uma questão: como é possível que
pessoas que não têm muito interesse nele sigam o poder, se liguem estreitamente a ele,
mendiguem uma parte dele? E que talvez em termos de investimentos, tanto econômicos quanto
inconscientes, o interesse não seja a última palavra: há investimentos de desejo que explicam que
se possa desejar, não contra seu interesse - visto que o interesse é sempre uma decorrência e se
encontra onde o desejo o coloca - mas desejar de uma forma mais profunda e mais difusa do que
seu interesse. E preciso ouvir a exclamação de Reich: não, as massas não foram enganadas, em
determinado momento elas efetivamente desejaram o fascismo! Há investimentos de desejo que
modelam o poder e o difundem, e que fazem com que o poder exista tanto ao nível do tira quanto
do primeiro ministro e que não haja diferença de natureza entre o poder que exerce um reles tira e

o poder que exerce um ministro. E a natureza dos investimentos de desejo em relação a um corpo
social que explica porque partidos ou sindicatos, que teriam ou deveriam ter investimentos
revolucionários em nome dos interesses de classe, podem ter investimentos reformistas ou
perfeitamente reacionários ao nível do desejo.
M.F.:

Como você diz, as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que
geralmente se acredita e não são necessariamente os que exercem o poder que têm interesse em
exercê-lo, os que têm interesse em exercê-lo não o exercem e o desejo do poder estabelece uma
relação ainda singular entre o poder e o interesse. Acontece que as massas, no momento do
fascismo, desejam que alguns exerçam o poder, alguns que, no entanto, não se confundem com
elas, visto que o poder se exercerá sobre elas e em detrimento delas, até a morte, o sacrifício e o
massacre delas; e, no entanto, elas desejam este poder, desejam que esse poder seja exercido.


Esta relação entre o desejo, o poder e o interesse é ainda pouco conhecida. Foi preciso muito
tempo para saber o que era a exploração. E o desejo foi, e ainda é, um grande desconhecido. E
possível que as lutas que se realizam agora e as teorias locais, regionais, descontinuas, que estão
se elaborando nestas lutas e fazem parte delas, sejam o começo de uma descoberta do modo
como se exerce o poder.

G.D.:

Eu volto então à questão: o movimento atual tem muitos focos, o que não significa fraqueza e
insuficiência, pois a totalização pertence sobretudo ao poder e à reação. Por exemplo, o Vietnã é
um formidável revide local. Mas como conceber as redes, as ligações transversais entre esses
pontos ativos descontínuos entre países ou no interior de um mesmo país?

M.F.:

Esta descontinuidade geográfica de que você fala significa talvez o seguinte: quando se luta contra
a exploração é o proletariado que não apenas conduz a luta, mas define os alvos, os métodos, os
lugares e os instrumentos de luta; aliar-se ao proletariado é unir-se a ele em suas posições, em
sua ideologia; é aderir aos motivos de seu combate; é fundir-se com ele. Mas se é contra o poder
que se luta, então todos aqueles sobre quem o poder se exerce como abuso, todos aqueles que o
reconhecem como intolerável, podem começar a luta onde se encontram e a partir de sua atividade
(ou passividade) própria. E iniciando esta luta - que é a luta deles - de que conhecem
perfeitamente o alvo e de que podem determinar o método, eles entram no processo
revolucionário. Evidentemente como aliado do proletariado pois, se o poder se exerce como ele se
exerce, é para manter a exploração capitalista. Eles servem realmente à causa da revolução
proletária lutando precisamente onde a opressão se exerce sobre eles. As mulheres, os
prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais iniciaram uma luta específica
contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se exerce sobre eles. Estas lutas
fazem parte atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem
compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma
mudança de titular. E, na medida em que devem combater todos os controles e coerções que
reproduzem o mesmo poder em todos os lugares, esses movimentos estão ligados ao movimento
revolucionário do proletariado.

Isto quer dizer que a generalidade da luta certamente não se faz por meio da totalização de que
você falava há pouco, por meio da totalização teórica, da "verdade". O que dá generalidade à luta é

o próprio sistema do poder, todas as suas formas de exercício e aplicação.
G. D.:
E não se pode tocar em nenhum ponto de aplicação do poder sem se defrontar com este conjunto
difuso que, a partir de então, se é necessariamente levado a querer explodir a partir da menor
reivindicação. Toda defesa ou ataque revolucionário parciais se unem, deste modo, à luta operária.

2 de março de 1972.

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