9.Daí resulta que a tragédia se compõe de seis partes,
segundo as quais podemos classificá-la: a fábula,
os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo apresentado e o canto (melopéia).
10. Duas partes são consagradas aos meios de imitar; uma, à maneira de imitar; três, aos objetos da
imitação; e é tudo.
11. Muitos são os poetas trágicos que se obrigaram a seguir estas formas; com efeito, toda peça comporta
encenação, caracteres, fábula, diálogo, música e pensamento.
12. A parte mais importante é a da organização dos fatos, pois a tragédia é imitação, não de homens, mas
de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo
o fim que se pretende alcançar o resultado de uma certa maneira de agir, e não de uma forma de ser. Os
caracteres permitem qualificar o homem, mas é da ação que depende sua infelicidade ou felicidade.
13. A ação, pois, não de destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres são representados.
Daí resulta serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é, em tudo, o que mais
importa.
14. Sem ação não há tragédia, mas poderá haver tragédia sem os caracteres.
15. Com efeito, na maior parte dos autores atuais faltam os caracteres e de um modo geral são muitos os
poetas que estão neste caso. O mesmo sucede com os pintores, se, por exemplo, compararmos Zêuxis(27)
com Polignoto; Polignoto é mestre na pintura dos caracteres; ao contrário, a pintura de Zêuxis não se
interessa pelo lado moral.
16. Se um autor alinhar uma série de reflexões morais, mesmo com sumo cuidado na orientação do estilo
e do pensamento, nem por isso realizará a obra que é própria da tragédia. Muito melhor seria a tragédia
que, embora pobre naqueles aspectos, contivesse no entanto uma fábula e um conjunto de fatos bem
ligados.
17. Além disso, na tragédia, o que mais influi nos ânimos são os elementos da fábula, que consistem nas
peripécias e nos reconhecimentos.
18. Outra ilustração do que afirmamos é ainda o fato de todos os autores que empreendem esta espécie de
composição, obterem facilmente melhores resultados no domínio do estilo e dos caracteres do que na
ordenação das ações. Esta era a grande dificuldade para todos os poetas antigos.
19. O elemento básico da tragédia é sua própria alma: a fábula; e só depois vem a pintura dos caracteres.
20. Algo de semelhante se verifica na pintura: se o artista espalha as cores ao acaso, por mais sedutoras
que sejam elas não provocam prazer igual àquele que advém de uma imagem com os contornos bem
definidos.
21. A tragédia consiste, pois, na imitação de uma ação e é, sobretudo, por meio da ação que ela imita as
personagens em movimento.
22. Em terceiro lugar vem o pensamento, isto é, a arte de encontrar o modo de exprimir o conteúdo do
assunto de maneira conveniente; na eloquência, é essa a missão da retórica, e a tarefa dos políticos.
23. Mas os antigos poetas apresentavam-nos personagens que se exprimiam como cidadãos de um
Estado, ao passo que os de agora os fazem falar como retores.
24. O caráter é o que permite decidir após a reflexão: eis o motivo por que o caráter não aparece em
absoluto nos discursos dos personagens, enquanto estes não revelam a decisão adotada ou rejeitada.
25. Com relação ao pensamento, consiste em provar que uma coisa existe ou não existe ou em fazer uma
declaração de ordem geral.
26. Temos, em quarto lugar, a elocução. Como dissemos acima, a elocução consiste na escolha dos
termos, os quais possuem o mesmo poder de expressão, tanto em prosa como em verso.
27. A quinta parte compreende o canto: é o principal condimento (do espetáculo).
28. Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas ela em si não pertence à arte da representação, e nada tem a ver com a poesia. A tragédia existe por si, independentemente da representação e dos atores. Com relação ao valor atribuído à encenação vista em separado, a arte do cenógrafo tem mais importância que a do poeta.
CAPÍTULO VII
Da extensão da ação
Após estas definições, diremos agora qual deve ser a tessitura dos fatos, já que este ponto é a parte
primeira e capital da tragédia.
2. Assentamos ser a tragédia a imitação de uma ação completa formando um todo que possui certa
extensão, pois um todo pode existir sem ser dotado de extensão.
3. Todo é o que tem princípio, meio e fim.
4. O princípio não vem depois de coisa alguma necessariamente; é aquilo após o qual é natural haver ou
produzir-se outra coisa;
5. O fim é o contrário: produz-se depois de outra coisa, quer necessariamente, quer segundo o curso
ordinário, mas depois dele nada mais ocorre.
6. O meio é o que vem depois de uma coisa e é seguido de outra.
7. Portanto, para que as fábulas sejam bem compostas, é preciso que não comecem nem acabem ao
acaso, mas que sejam estabelecidas segundo as condições indicadas.
8. Além disso, o belo, em um ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar
ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições
uma certa grandeza e a ordem.
9. Por este motivo, um ser vivente não pode ser belo, se for excessivamente pequeno (pois a visão é
confusa, quando dura apenas um momento quase imperceptível), nem se for desmedidamente grande
(neste caso o olhar não abrange a totalidade, a unidade e o conjunto escapam à vista do espectador, como
seria o caso de um animal que tivesse de comprimento dez mil estádios).
10. Daí se infere que o corpo humano, como o dos animais, para ser julgado belo, deve apresentar certa
grandeza que torne possível abarcá-lo com o olhar; do mesmo modo as fábulas devem apresentar uma
extensão tal que a memória possa também facilmente retê-las.
11. A dimensão desta extensão é fixada pela duração das representações nos concursos e pelo grau de
atenção de que o espectador é suscetível. Ora, este ponto não depende da arte. Se houvesse que levar à
cena cem tragédias, o tempo da representação teria de ser medido pela clepsidra, como antigamente se
fazia e ainda é feito em outros lugares, segundo se diz.
12. O limite, com relação à própria natureza do assunto, é o seguinte: quanto mais abrangente for uma
fábula, tanto mais agradável será, desde que não perca em clareza. Para estabelecer uma regra geral, eis o
que podemos dizer: a peça extensa o suficiente é aquela que, no decorrer dos acontecimentos produzidos
de acordo com a verossimilhança e a necessidade, torne em infortúnio a felicidade da personagem
principal ou inversamente a faça transitar do infortúnio para a felicidade.
CAPÍTULO VIII
Unidade de ação
O que dá unidade à fábula não é, como pensam alguns, apenas a presença de uma personagem principal;
no decurso de uma existência produzem-se em quantidade infinita muitos acontecimentos, que não
constituem uma unidade. Também muitas ações, pelo fato de serem realizadas por um só agente, não
criam a unidade.
2. Daí parece que laboram no erro todos os autores da Heracleida, da Teseida(28) e de poemas análogos,
por imaginarem bastar a presença de um só herói, como Heracles, para conferir unidade à fábula.
3. Mas Homero, que nisto como em tudo é o que mais se salienta, parece ter enxergado bem este ponto,
quer por efeito da arte, quer por engenho natural, pois, ao compor a Odisséia, não deu acolhida nela a
todos os acontecimentos da vida de Ulisses, como, por exemplo, a ferida que recebeu no Parnaso ou a
loucura que simulou no momento da reunião do exército(29); não era necessário, nem sequer verossímil
que, pelo fato de um evento ter ocorrido, o outro houvesse de ocorrer. Em torno de uma ação única,
como dissemos, Homero agrupou os elementos da Odisséia e fez outro tanto com a Ilíada.
4. Importa pois que, como nas demais artes miméticas, a unidade da imitação resulte da unidade do
objeto. Pelo que, na fábula, que é imitação de uma ação, convém que a imitação seja una e total e que as
partes estejam de tal modo entrosadas que baste a supressão ou o deslocamento de uma só, para que o
conjunto fique modificado ou confundido, pois os fatos que livremente podemos ajuntar ou não, sem que
o assunto fique sensivelmente modificado, não constituem parte integrante do todo.
CAPÍTULO IX
Pelo que atrás fica dito, é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas
sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade.
2. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o
segundo em verso (pois, se a obra de Heródoto (30) fora composta em verso, nem por isso deixaria de ser
obra de história, figurando ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e
o outro o que poderia ter acontecido.
3. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia
permanece no universal e a história estuda apenas o particular.
4. O universal é o que tal categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o
verossímil ou o necessário. Outra não é a finalidade da poesia, embora dê nomes particulares aos
indivíduos; o particular é o que Alcibíades(31) fez ou o que lhe aconteceu.
5. Quanto à comédia, os autores, depois de terem composto a fábula, apresentando nela atos verossímeis,
atribuem-nos a personagens, dando-lhes nomes fantasiados, e não procedem como os poetas iâmbicos
que se referem a personalidades existentes.
6. Na tragédia, os poetas podem recorrer a nomes de personagens que existiram, e por trabalharem com o
possível, inspiram confiança. O que não aconteceu, não acreditamos imediatamente que seja possível;
quanto aos fatos representados, não discutimos a possibilidade dos mesmos, pois, se tivessem sido
impossíveis, não se teriam produzido.
7. Não obstante, nas tragédias um ou dois dos nomes são de personagens conhecidas, e os demais são
forjados; em certas peças todos são fictícios, como no Anteu de Agatão(32), no qual fatos e personagens
são inventados, e apesar disso não deixa de agradar.
8. Portanto não há obrigação de seguir à risca as fábulas tradicionais, donde foram extraídas as nossas
tragédias. Seria ridículo proceder desse modo, uma vez que tais assuntos só são conhecidos por poucos, e
mesmo assim causam prazer a todos.
9. De acordo com isto, é manifesto que a missão do poeta consiste mais em fabricar fábulas do que fazer
versos, visto que ele é poeta pela imitação, e porque imita as ações.
10. Embora lhe aconteça apresentar fatos passados, nem por isso deixa de ser poeta, porque os fatos
passados podem ter sido forjados pelo poeta, aparecendo como verossímeis ou possíveis.
11. Entre as fábulas e as ações simples, as episódicas não são as melhores; entendo por fábula episódica
aquela em que a conexão dos episódios não é conforme nem à verossimilhança nem à necessidade.
12. Tais composições são devidas a maus poetas, por imperícia, e a bons poetas, por darem ouvido aos
atores. Como destinam suas peças a concursos, estendem a fábula para além do que ela pode dar, e
muitas vezes procedem assim em detrimento da seqüência dos fatos.
13. Como se trata, não só de imitar uma ação em seu conjunto, mas também de imitar fatos capazes de
suscitar o terror e a compaixão, e estas emoções nascem principalmente,... (e mais ainda) quando os fatos
se encadeiam contra nossa experiência,
14. pois desse modo provocam maior admiração do que sendo devidos ao acaso e à fortuna (com efeito,
as circunstâncias provenientes da fortuna nos parecem tanto mais maravilhosas quanto mais nos dão a
sensação de terem acontecido de propósito, como, por exemplo, a estátua de Mítis, em Argos, que em sua
queda esmagou um espectador, que outro não era senão o culpado pela morte de Mítis),
15. daí resulta necessariamente tais fábulas serem mais belas.
os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo apresentado e o canto (melopéia).
10. Duas partes são consagradas aos meios de imitar; uma, à maneira de imitar; três, aos objetos da
imitação; e é tudo.
11. Muitos são os poetas trágicos que se obrigaram a seguir estas formas; com efeito, toda peça comporta
encenação, caracteres, fábula, diálogo, música e pensamento.
12. A parte mais importante é a da organização dos fatos, pois a tragédia é imitação, não de homens, mas
de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo
o fim que se pretende alcançar o resultado de uma certa maneira de agir, e não de uma forma de ser. Os
caracteres permitem qualificar o homem, mas é da ação que depende sua infelicidade ou felicidade.
13. A ação, pois, não de destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres são representados.
Daí resulta serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é, em tudo, o que mais
importa.
14. Sem ação não há tragédia, mas poderá haver tragédia sem os caracteres.
15. Com efeito, na maior parte dos autores atuais faltam os caracteres e de um modo geral são muitos os
poetas que estão neste caso. O mesmo sucede com os pintores, se, por exemplo, compararmos Zêuxis(27)
com Polignoto; Polignoto é mestre na pintura dos caracteres; ao contrário, a pintura de Zêuxis não se
interessa pelo lado moral.
16. Se um autor alinhar uma série de reflexões morais, mesmo com sumo cuidado na orientação do estilo
e do pensamento, nem por isso realizará a obra que é própria da tragédia. Muito melhor seria a tragédia
que, embora pobre naqueles aspectos, contivesse no entanto uma fábula e um conjunto de fatos bem
ligados.
17. Além disso, na tragédia, o que mais influi nos ânimos são os elementos da fábula, que consistem nas
peripécias e nos reconhecimentos.
18. Outra ilustração do que afirmamos é ainda o fato de todos os autores que empreendem esta espécie de
composição, obterem facilmente melhores resultados no domínio do estilo e dos caracteres do que na
ordenação das ações. Esta era a grande dificuldade para todos os poetas antigos.
19. O elemento básico da tragédia é sua própria alma: a fábula; e só depois vem a pintura dos caracteres.
20. Algo de semelhante se verifica na pintura: se o artista espalha as cores ao acaso, por mais sedutoras
que sejam elas não provocam prazer igual àquele que advém de uma imagem com os contornos bem
definidos.
21. A tragédia consiste, pois, na imitação de uma ação e é, sobretudo, por meio da ação que ela imita as
personagens em movimento.
22. Em terceiro lugar vem o pensamento, isto é, a arte de encontrar o modo de exprimir o conteúdo do
assunto de maneira conveniente; na eloquência, é essa a missão da retórica, e a tarefa dos políticos.
23. Mas os antigos poetas apresentavam-nos personagens que se exprimiam como cidadãos de um
Estado, ao passo que os de agora os fazem falar como retores.
24. O caráter é o que permite decidir após a reflexão: eis o motivo por que o caráter não aparece em
absoluto nos discursos dos personagens, enquanto estes não revelam a decisão adotada ou rejeitada.
25. Com relação ao pensamento, consiste em provar que uma coisa existe ou não existe ou em fazer uma
declaração de ordem geral.
26. Temos, em quarto lugar, a elocução. Como dissemos acima, a elocução consiste na escolha dos
termos, os quais possuem o mesmo poder de expressão, tanto em prosa como em verso.
27. A quinta parte compreende o canto: é o principal condimento (do espetáculo).
28. Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas ela em si não pertence à arte da representação, e nada tem a ver com a poesia. A tragédia existe por si, independentemente da representação e dos atores. Com relação ao valor atribuído à encenação vista em separado, a arte do cenógrafo tem mais importância que a do poeta.
CAPÍTULO VII
Da extensão da ação
Após estas definições, diremos agora qual deve ser a tessitura dos fatos, já que este ponto é a parte
primeira e capital da tragédia.
2. Assentamos ser a tragédia a imitação de uma ação completa formando um todo que possui certa
extensão, pois um todo pode existir sem ser dotado de extensão.
3. Todo é o que tem princípio, meio e fim.
4. O princípio não vem depois de coisa alguma necessariamente; é aquilo após o qual é natural haver ou
produzir-se outra coisa;
5. O fim é o contrário: produz-se depois de outra coisa, quer necessariamente, quer segundo o curso
ordinário, mas depois dele nada mais ocorre.
6. O meio é o que vem depois de uma coisa e é seguido de outra.
7. Portanto, para que as fábulas sejam bem compostas, é preciso que não comecem nem acabem ao
acaso, mas que sejam estabelecidas segundo as condições indicadas.
8. Além disso, o belo, em um ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar
ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições
uma certa grandeza e a ordem.
9. Por este motivo, um ser vivente não pode ser belo, se for excessivamente pequeno (pois a visão é
confusa, quando dura apenas um momento quase imperceptível), nem se for desmedidamente grande
(neste caso o olhar não abrange a totalidade, a unidade e o conjunto escapam à vista do espectador, como
seria o caso de um animal que tivesse de comprimento dez mil estádios).
10. Daí se infere que o corpo humano, como o dos animais, para ser julgado belo, deve apresentar certa
grandeza que torne possível abarcá-lo com o olhar; do mesmo modo as fábulas devem apresentar uma
extensão tal que a memória possa também facilmente retê-las.
11. A dimensão desta extensão é fixada pela duração das representações nos concursos e pelo grau de
atenção de que o espectador é suscetível. Ora, este ponto não depende da arte. Se houvesse que levar à
cena cem tragédias, o tempo da representação teria de ser medido pela clepsidra, como antigamente se
fazia e ainda é feito em outros lugares, segundo se diz.
12. O limite, com relação à própria natureza do assunto, é o seguinte: quanto mais abrangente for uma
fábula, tanto mais agradável será, desde que não perca em clareza. Para estabelecer uma regra geral, eis o
que podemos dizer: a peça extensa o suficiente é aquela que, no decorrer dos acontecimentos produzidos
de acordo com a verossimilhança e a necessidade, torne em infortúnio a felicidade da personagem
principal ou inversamente a faça transitar do infortúnio para a felicidade.
CAPÍTULO VIII
Unidade de ação
O que dá unidade à fábula não é, como pensam alguns, apenas a presença de uma personagem principal;
no decurso de uma existência produzem-se em quantidade infinita muitos acontecimentos, que não
constituem uma unidade. Também muitas ações, pelo fato de serem realizadas por um só agente, não
criam a unidade.
2. Daí parece que laboram no erro todos os autores da Heracleida, da Teseida(28) e de poemas análogos,
por imaginarem bastar a presença de um só herói, como Heracles, para conferir unidade à fábula.
3. Mas Homero, que nisto como em tudo é o que mais se salienta, parece ter enxergado bem este ponto,
quer por efeito da arte, quer por engenho natural, pois, ao compor a Odisséia, não deu acolhida nela a
todos os acontecimentos da vida de Ulisses, como, por exemplo, a ferida que recebeu no Parnaso ou a
loucura que simulou no momento da reunião do exército(29); não era necessário, nem sequer verossímil
que, pelo fato de um evento ter ocorrido, o outro houvesse de ocorrer. Em torno de uma ação única,
como dissemos, Homero agrupou os elementos da Odisséia e fez outro tanto com a Ilíada.
4. Importa pois que, como nas demais artes miméticas, a unidade da imitação resulte da unidade do
objeto. Pelo que, na fábula, que é imitação de uma ação, convém que a imitação seja una e total e que as
partes estejam de tal modo entrosadas que baste a supressão ou o deslocamento de uma só, para que o
conjunto fique modificado ou confundido, pois os fatos que livremente podemos ajuntar ou não, sem que
o assunto fique sensivelmente modificado, não constituem parte integrante do todo.
CAPÍTULO IX
Pelo que atrás fica dito, é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas
sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade.
2. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o
segundo em verso (pois, se a obra de Heródoto (30) fora composta em verso, nem por isso deixaria de ser
obra de história, figurando ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e
o outro o que poderia ter acontecido.
3. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia
permanece no universal e a história estuda apenas o particular.
4. O universal é o que tal categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o
verossímil ou o necessário. Outra não é a finalidade da poesia, embora dê nomes particulares aos
indivíduos; o particular é o que Alcibíades(31) fez ou o que lhe aconteceu.
5. Quanto à comédia, os autores, depois de terem composto a fábula, apresentando nela atos verossímeis,
atribuem-nos a personagens, dando-lhes nomes fantasiados, e não procedem como os poetas iâmbicos
que se referem a personalidades existentes.
6. Na tragédia, os poetas podem recorrer a nomes de personagens que existiram, e por trabalharem com o
possível, inspiram confiança. O que não aconteceu, não acreditamos imediatamente que seja possível;
quanto aos fatos representados, não discutimos a possibilidade dos mesmos, pois, se tivessem sido
impossíveis, não se teriam produzido.
7. Não obstante, nas tragédias um ou dois dos nomes são de personagens conhecidas, e os demais são
forjados; em certas peças todos são fictícios, como no Anteu de Agatão(32), no qual fatos e personagens
são inventados, e apesar disso não deixa de agradar.
8. Portanto não há obrigação de seguir à risca as fábulas tradicionais, donde foram extraídas as nossas
tragédias. Seria ridículo proceder desse modo, uma vez que tais assuntos só são conhecidos por poucos, e
mesmo assim causam prazer a todos.
9. De acordo com isto, é manifesto que a missão do poeta consiste mais em fabricar fábulas do que fazer
versos, visto que ele é poeta pela imitação, e porque imita as ações.
10. Embora lhe aconteça apresentar fatos passados, nem por isso deixa de ser poeta, porque os fatos
passados podem ter sido forjados pelo poeta, aparecendo como verossímeis ou possíveis.
11. Entre as fábulas e as ações simples, as episódicas não são as melhores; entendo por fábula episódica
aquela em que a conexão dos episódios não é conforme nem à verossimilhança nem à necessidade.
12. Tais composições são devidas a maus poetas, por imperícia, e a bons poetas, por darem ouvido aos
atores. Como destinam suas peças a concursos, estendem a fábula para além do que ela pode dar, e
muitas vezes procedem assim em detrimento da seqüência dos fatos.
13. Como se trata, não só de imitar uma ação em seu conjunto, mas também de imitar fatos capazes de
suscitar o terror e a compaixão, e estas emoções nascem principalmente,... (e mais ainda) quando os fatos
se encadeiam contra nossa experiência,
14. pois desse modo provocam maior admiração do que sendo devidos ao acaso e à fortuna (com efeito,
as circunstâncias provenientes da fortuna nos parecem tanto mais maravilhosas quanto mais nos dão a
sensação de terem acontecido de propósito, como, por exemplo, a estátua de Mítis, em Argos, que em sua
queda esmagou um espectador, que outro não era senão o culpado pela morte de Mítis),
15. daí resulta necessariamente tais fábulas serem mais belas.
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