XVI
Uma crítica da concepção cristã de Deus conduz inevitavelmente à mesma conclusão. – Uma nação que ainda acredita em si mesma possui seu próprio Deus. Nele são honradas as condições que a possibilitam sobreviver, suas virtudes – projeta o prazer que possui em si mesma, seu sentimento de poder, em um ser ao qual pode agradecer por isso. Quem é rico lhe prodigaliza sua riqueza; uma nação orgulhosa precisa de um Deus ao qual pode oferecer sacrifícios... A religião, dentro desses limites, é uma forma de gratidão. O homem é grato por existir: para isso precisa de um Deus. – Tal Deus precisa ser tanto capaz de beneficiar quanto de prejudicar; deve ser capaz representar um amigo ou um inimigo – é admirado tanto pelo bem quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra toda a natureza, transformando-o em um Deus somente bondade, seria contrário à inclinação humana. A humanidade necessita igualmente de um Deus mau e de um Deus bom; não deve agradecer por sua própria existência à mera tolerância e à filantropia... Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o ódio, a vingança, a inveja, o desprezo, a astúcia, a violência? Que talvez nem sequer tenha experimentado os arrebatadores ardeurs(1) da vitória e da destruição? Ninguém entenderia tal Deus: por que alguém o desejaria? – Sem dúvida, quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua esperança de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira necessidade e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus. Ele então se torna hipócrita, tímido e recatado; aconselha a “paz na alma”, a ausência de ódio, a indulgência, o “amor” aos amigos e aos inimigos. Torna-se um moralizador por excelência; infiltra-se em toda virtude privada; transforma-se no Deus de todos os homens; torna-se um cidadão privado, um cosmopolita... Noutros tempos representava um povo, a força de um povo, tudo que em suas almas havia de agressivo e sequioso de poder; agora é simplesmente o bom Deus... Na verdade não há outra alternativa para os Deuses: ou são a vontade de poder – no caso de serem os Deuses de uma nação – ou a inaptidão para o poder – e neste caso precisam ser bons.
1 – Ardores.
Uma crítica da concepção cristã de Deus conduz inevitavelmente à mesma conclusão. – Uma nação que ainda acredita em si mesma possui seu próprio Deus. Nele são honradas as condições que a possibilitam sobreviver, suas virtudes – projeta o prazer que possui em si mesma, seu sentimento de poder, em um ser ao qual pode agradecer por isso. Quem é rico lhe prodigaliza sua riqueza; uma nação orgulhosa precisa de um Deus ao qual pode oferecer sacrifícios... A religião, dentro desses limites, é uma forma de gratidão. O homem é grato por existir: para isso precisa de um Deus. – Tal Deus precisa ser tanto capaz de beneficiar quanto de prejudicar; deve ser capaz representar um amigo ou um inimigo – é admirado tanto pelo bem quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra toda a natureza, transformando-o em um Deus somente bondade, seria contrário à inclinação humana. A humanidade necessita igualmente de um Deus mau e de um Deus bom; não deve agradecer por sua própria existência à mera tolerância e à filantropia... Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o ódio, a vingança, a inveja, o desprezo, a astúcia, a violência? Que talvez nem sequer tenha experimentado os arrebatadores ardeurs(1) da vitória e da destruição? Ninguém entenderia tal Deus: por que alguém o desejaria? – Sem dúvida, quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua esperança de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira necessidade e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus. Ele então se torna hipócrita, tímido e recatado; aconselha a “paz na alma”, a ausência de ódio, a indulgência, o “amor” aos amigos e aos inimigos. Torna-se um moralizador por excelência; infiltra-se em toda virtude privada; transforma-se no Deus de todos os homens; torna-se um cidadão privado, um cosmopolita... Noutros tempos representava um povo, a força de um povo, tudo que em suas almas havia de agressivo e sequioso de poder; agora é simplesmente o bom Deus... Na verdade não há outra alternativa para os Deuses: ou são a vontade de poder – no caso de serem os Deuses de uma nação – ou a inaptidão para o poder – e neste caso precisam ser bons.
1 – Ardores.
XVII
Onde quer que, por qualquer forma, a vontade de poder comece enfraquecer, haverá sempre um declínio fisiológico concomitante, uma décadence. A divindade dessa décadence, despida de suas virtudes e paixões masculinas, é convertida forçosamente em um Deus dos fisiologicamente degradados, dos fracos. Obviamente, eles não se denominam os fracos; denominam-se “os bons”... Nenhuma explicação é necessária para se entender em quais momentos da História a ficção dualista de um Deus bom e um Deus mau se tornou possível pela primeira vez. O mesmo instinto que leva os inferiores a reduzir seu próprio Deus à “bondade em si” também os leva a eliminar todas as qualidades do Deus daqueles que lhes são superiores; vingam-se demonizando o Deus de seus dominadores. – O bom Deus, assim como o Diabo – ambos são frutos da décadence. – Como podemos ser tão tolerantes com o simplismo dos teólogos cristãos, aceitando sua doutrina de que a evolução do conceito de Deus a partir do “Deus de Israel”, o Deus de um povo, ao Deus cristão, a essência de toda a bondade, significa um progresso? – Mas até Renan(1) o fez. Como se Renan tivesse o direito ao simplismo! O contrário, na realidade, é o que se faz ver. Quando tudo que é necessário à vida ascendente; quando tudo que é forte, corajoso, imperioso e orgulhoso foi amputado do conceito de Deus; quando se degenerou progressivamente até tornar-se uma bengala para os cansados, uma tábua de salvação aos que se afogam; quando vira o Deus dos pobres, o Deus dos pecadores, o Deus dos incapazes par excellence, e o atributo de “salvador” ou “redentor” continua como o atributo mais essencial da divindade – qual é a significância de tal metamorfose? O que implica tal redução do divino? – Sem dúvida, com isso o “reino de Deus” cresceu. Antigamente, tinha somente seu povo, seus “escolhidos”. Mas desde então saiu perambulando, assim como seu próprio povo, a territórios estrangeiros; desistiu de acomodar-se; e finalmente passou a sentir-se em casa em qualquer lugar, esse grande cosmopolita – até agora possui a “grande maioria” ao seu lado, e metade da Terra. Mas esse Deus da “grande maioria”, esse democrata entre os Deuses, não se tornou um Deus pagão orgulhoso: pelo contrário, continua um judeu, continua um Deus das esquinas, um Deus de todos os recantos e gretas, de todos lugares insalubres do mundo!... Seu reino na Terra, agora, assim como sempre, é um reino do submundo, um reino subterrâneo, um reino-gueto... Ele mesmo é tão pálido, tão fraco, tão décadent... Até o mais pálido entre os pálidos é capaz de dominá-lo – os senhores metafísicos, os albinos do intelecto. Esses teceram teias ao seu redor por tanto tempo que finalmente o hipnotizaram, o transformaram em aranha, em mais um metafísico. E então retornou mais uma vez ao seu velho serviço de tecer o mundo a partir de sua natureza interior sub specie Spinozae(2); após isso se transformou em algo cada vez mais tênue e pálido – tornou-se o “ideal”, o “puro espírito”, o “absoluto”, a “coisa em si”... O colapso de um Deus: ele converte-se na “coisa em si”.
Onde quer que, por qualquer forma, a vontade de poder comece enfraquecer, haverá sempre um declínio fisiológico concomitante, uma décadence. A divindade dessa décadence, despida de suas virtudes e paixões masculinas, é convertida forçosamente em um Deus dos fisiologicamente degradados, dos fracos. Obviamente, eles não se denominam os fracos; denominam-se “os bons”... Nenhuma explicação é necessária para se entender em quais momentos da História a ficção dualista de um Deus bom e um Deus mau se tornou possível pela primeira vez. O mesmo instinto que leva os inferiores a reduzir seu próprio Deus à “bondade em si” também os leva a eliminar todas as qualidades do Deus daqueles que lhes são superiores; vingam-se demonizando o Deus de seus dominadores. – O bom Deus, assim como o Diabo – ambos são frutos da décadence. – Como podemos ser tão tolerantes com o simplismo dos teólogos cristãos, aceitando sua doutrina de que a evolução do conceito de Deus a partir do “Deus de Israel”, o Deus de um povo, ao Deus cristão, a essência de toda a bondade, significa um progresso? – Mas até Renan(1) o fez. Como se Renan tivesse o direito ao simplismo! O contrário, na realidade, é o que se faz ver. Quando tudo que é necessário à vida ascendente; quando tudo que é forte, corajoso, imperioso e orgulhoso foi amputado do conceito de Deus; quando se degenerou progressivamente até tornar-se uma bengala para os cansados, uma tábua de salvação aos que se afogam; quando vira o Deus dos pobres, o Deus dos pecadores, o Deus dos incapazes par excellence, e o atributo de “salvador” ou “redentor” continua como o atributo mais essencial da divindade – qual é a significância de tal metamorfose? O que implica tal redução do divino? – Sem dúvida, com isso o “reino de Deus” cresceu. Antigamente, tinha somente seu povo, seus “escolhidos”. Mas desde então saiu perambulando, assim como seu próprio povo, a territórios estrangeiros; desistiu de acomodar-se; e finalmente passou a sentir-se em casa em qualquer lugar, esse grande cosmopolita – até agora possui a “grande maioria” ao seu lado, e metade da Terra. Mas esse Deus da “grande maioria”, esse democrata entre os Deuses, não se tornou um Deus pagão orgulhoso: pelo contrário, continua um judeu, continua um Deus das esquinas, um Deus de todos os recantos e gretas, de todos lugares insalubres do mundo!... Seu reino na Terra, agora, assim como sempre, é um reino do submundo, um reino subterrâneo, um reino-gueto... Ele mesmo é tão pálido, tão fraco, tão décadent... Até o mais pálido entre os pálidos é capaz de dominá-lo – os senhores metafísicos, os albinos do intelecto. Esses teceram teias ao seu redor por tanto tempo que finalmente o hipnotizaram, o transformaram em aranha, em mais um metafísico. E então retornou mais uma vez ao seu velho serviço de tecer o mundo a partir de sua natureza interior sub specie Spinozae(2); após isso se transformou em algo cada vez mais tênue e pálido – tornou-se o “ideal”, o “puro espírito”, o “absoluto”, a “coisa em si”... O colapso de um Deus: ele converte-se na “coisa em si”.
1 – O filólogo e historiador Ernest Renan (1823-1892), que dera a um dos volumes de sua obra-mestra, Les Origines du Christianisme, precisamente o título L’Atnéchrist. O volume continha uma história das heresias. (Rubens Rodrigues Torres Filho)
2 – Frase de sentido duplo: segundo a óptica de Espinoza e sob a forma de aranha. Trata-se de um jogo de palavras baseado no próprio de Espinoza – spinne significa aranha em alemão. (Pietro Nasseti)
XVIII
A concepção cristã de Deus – Deus o como protetor dos doentes, o Deus que tece teias de aranha, o Deus na forma de espírito – é uma das concepções mais corruptas que jamais apareceram no mundo: provavelmente representa o nível mais ínfero da declinante evolução do tipo divino. Um Deus que se degenerou em uma contradição da vida. Em vez de ser sua própria glória e eterna afirmação! Nele declara-se guerra à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus transforma-se na fórmula para todas calúnias contra o “aqui e agora” e para cada mentira sobre “além”! Nele o nada é divinizado e a vontade do nada se faz sagrada!...
XIX
O fato de as raças fortes do Norte da Europa não terem repudiado esse Deus cristão não dá qualquer crédito aos seus dotes religiosos – para não mencionar seus gostos. Deveriam ter sido capazes de sobrepujar tal moribundo e decrépito produto da décadence. Uma maldição paira sobre eles porque não o repeliram; absorveram em seus instintos a enfermidade, a senilidade e a contradição – e a partir de então não criaram mais nenhum Deus. Dois mil anos se passaram – e nem um único Deus novo! Em vez disso, ainda existe como que por algum direito intrínseco – como se fosse um ultimatum(1) e maximum(2) da força criadora de divindades, do creator spiritus(3) da humanidade –, esse deplorável Deus do monótono-teísmo cristão! Essa imagem híbrida da decadência, destilada do nada, da contradição e da imaginação estéril, na qual todos os instintos da décadence, todas as covardias e cansaços da alma encontram sua sanção! –
1 – Última palavra.
2 – Máximo.
3 – Espírito criador.
XX
Em minha condenação do cristianismo certamente espero não injustiçar uma religião análoga que possui um número ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. Ambas devem ser consideradas religiões niilistas – são religiões da décadence – mas distinguem-se de um modo bastante notável. Pelo simples fato de poder compará-las, o crítico do Cristianismo está em débito com os estudiosos da Índia. – O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo – é parte de sua herança de vida ser capaz de encarar problemas de modo objetivo e impassível; é o produto de longos séculos de especulação filosófica. O conceito “Deus” já havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo é a única religião genuinamente positiva que pode ser encontrada na História, e isso se aplica até mesmo à sua epistemologia (que é um fenomenalismo estrito) – ele não fala sobre “a luta contra o pecado”, mas, rendendo-se à realidade, diz “a luta contra o sofrimento”. Diferenciando-se nitidamente do cristianismo, coloca a autodecepção que existe nos conceitos morais por detrás de si; isso significa, em minha linguagem, além do bem e do mal. – Os dois fatos fisiológicos nos quais se apóia e aos quais direciona a maior parte de sua atenção são: primeiro, uma excessiva sensibilidade à sensação que se manifesta através de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinária espiritualidade, uma preocupação muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lógicos, sob a influência da qual o instinto de personalidade submete-se à noção de “impessoalidade” (– ambos esses estados serão familiares a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experiência própria, assim como são para mim). Esses estados fisiológicos produzem uma depressão, e Buda tentou combatê-la através de medidas higiênicas. Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nômade; moderação na alimentação e uma cuidadosa seleção dos alimentos; prudência em relação ao uso de intoxicantes; igual cautela em relação a quaisquer paixões que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, não se preocupar nem consigo nem com os outros. Encoraja ideias que produzam serenidade ou alegria – e encontra meios de combater as ideias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como algo que promove a saúde. A oração não está inclusa, e nem o asceticismo. Não há um imperativo categórico ou qualquer disciplina, mesmo dentro dos monastérios (– dos quais é sempre permitido sair –). Todas essas coisas seriam simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade supramencionada. Pelo mesmo motivo não advoga qualquer conflito contra os incrédulos; seus ensinamentos não antagonizam nada senão a vingança, a aversão, o ressentimento (– “inimizade nunca põe fim à inimizade”: o refrão que move o budismo...) E nisso tudo estava correto, pois são precisamente essas paixões que, na perspectiva de seu principal objetivo regimental, são insalubres. A fadiga mental que apresenta, já claramente evidenciada pelo excesso de “objetividade” (isto é, a perda do interesse em si mesmo, a perda do equilíbrio e do “egoísmo”), é combatida por vigorosos esforços a fim de levar os interesses espirituais de
volta ao ego. Nos ensinamentos de Buda o egoísmo é um dever. A “única coisa necessária”, a questão “como posso me libertar do sofrimento”, é o que rege e determina toda a dieta espiritual (– talvez alguém lembrar-se-á daquele ateniense que também declarou guerra ao “cientificismo” puro, a saber, Sócrates, que também elevou o egoísmo à condição de princípio moral).
Em minha condenação do cristianismo certamente espero não injustiçar uma religião análoga que possui um número ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. Ambas devem ser consideradas religiões niilistas – são religiões da décadence – mas distinguem-se de um modo bastante notável. Pelo simples fato de poder compará-las, o crítico do Cristianismo está em débito com os estudiosos da Índia. – O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo – é parte de sua herança de vida ser capaz de encarar problemas de modo objetivo e impassível; é o produto de longos séculos de especulação filosófica. O conceito “Deus” já havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo é a única religião genuinamente positiva que pode ser encontrada na História, e isso se aplica até mesmo à sua epistemologia (que é um fenomenalismo estrito) – ele não fala sobre “a luta contra o pecado”, mas, rendendo-se à realidade, diz “a luta contra o sofrimento”. Diferenciando-se nitidamente do cristianismo, coloca a autodecepção que existe nos conceitos morais por detrás de si; isso significa, em minha linguagem, além do bem e do mal. – Os dois fatos fisiológicos nos quais se apóia e aos quais direciona a maior parte de sua atenção são: primeiro, uma excessiva sensibilidade à sensação que se manifesta através de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinária espiritualidade, uma preocupação muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lógicos, sob a influência da qual o instinto de personalidade submete-se à noção de “impessoalidade” (– ambos esses estados serão familiares a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experiência própria, assim como são para mim). Esses estados fisiológicos produzem uma depressão, e Buda tentou combatê-la através de medidas higiênicas. Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nômade; moderação na alimentação e uma cuidadosa seleção dos alimentos; prudência em relação ao uso de intoxicantes; igual cautela em relação a quaisquer paixões que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, não se preocupar nem consigo nem com os outros. Encoraja ideias que produzam serenidade ou alegria – e encontra meios de combater as ideias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como algo que promove a saúde. A oração não está inclusa, e nem o asceticismo. Não há um imperativo categórico ou qualquer disciplina, mesmo dentro dos monastérios (– dos quais é sempre permitido sair –). Todas essas coisas seriam simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade supramencionada. Pelo mesmo motivo não advoga qualquer conflito contra os incrédulos; seus ensinamentos não antagonizam nada senão a vingança, a aversão, o ressentimento (– “inimizade nunca põe fim à inimizade”: o refrão que move o budismo...) E nisso tudo estava correto, pois são precisamente essas paixões que, na perspectiva de seu principal objetivo regimental, são insalubres. A fadiga mental que apresenta, já claramente evidenciada pelo excesso de “objetividade” (isto é, a perda do interesse em si mesmo, a perda do equilíbrio e do “egoísmo”), é combatida por vigorosos esforços a fim de levar os interesses espirituais de
volta ao ego. Nos ensinamentos de Buda o egoísmo é um dever. A “única coisa necessária”, a questão “como posso me libertar do sofrimento”, é o que rege e determina toda a dieta espiritual (– talvez alguém lembrar-se-á daquele ateniense que também declarou guerra ao “cientificismo” puro, a saber, Sócrates, que também elevou o egoísmo à condição de princípio moral).
XXI
As necessidades do budismo são um clima extremamente ameno, muita gentileza e liberalidade nos costumes, e nenhum militarismo; ademais, que seu início provenha das classes mais altas e educadas. Alegria, serenidade e ausência de desejo são os objetivos principais, e eles são alcançados. O budismo não é uma religião na qual a perfeição é meramente objeto de aspiração: a perfeição é algo normal. – No cristianismo os instintos dos subjugados e dos oprimidos vêm em primeiro lugar: apenas os mais rebaixados buscam a salvação através dele. Nele o passatempo prevalecente, a cura favorita para o enfado, é a discussão sobre pecados, a autocrítica, a inquisição da consciência; nele a emoção produzida pelo poder (chamada de “Deus”) é insuflada (pela reza); nele o bem mais elevado é considerado algo inatingível, uma dádiva, uma “graça”. Também falta transparência: o encobrimento e os lugares obscurecidos são cristãos. Nele o corpo é desprezado e a higiene é acusada de lascívia; a Igreja distancia-se até da limpeza (– a primeira providência cristã após a expulsão dos mouros foi fechar os banhos públicos, dos quais havia 270 apenas em Córdoba). Também é cristã uma certa crueldade para consigo e para com os outros; o ódio aos incrédulos; o desejo de perseguir. Ideias sombrias e inquietantes ocupam o primeiro plano; os estados mentais mais estimados, portando os nomes mais respeitáveis, são epileptiformes; a dieta é determinada com o fim de engendrar sintomas mórbidos e supra-estimulação nervosa. Também é cristã toda a inimizade mortal aos senhores da terra, aos “aristocratas” – juntamente com uma rivalidade secreta contra eles (– resignam-se do “corpo” – querem apenas a “alma”...). É cristão todo o ódio contra o intelecto, o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem intelectual; o ódio aos sentidos, à alegria dos sentidos, à alegria em geral, é cristão...
As necessidades do budismo são um clima extremamente ameno, muita gentileza e liberalidade nos costumes, e nenhum militarismo; ademais, que seu início provenha das classes mais altas e educadas. Alegria, serenidade e ausência de desejo são os objetivos principais, e eles são alcançados. O budismo não é uma religião na qual a perfeição é meramente objeto de aspiração: a perfeição é algo normal. – No cristianismo os instintos dos subjugados e dos oprimidos vêm em primeiro lugar: apenas os mais rebaixados buscam a salvação através dele. Nele o passatempo prevalecente, a cura favorita para o enfado, é a discussão sobre pecados, a autocrítica, a inquisição da consciência; nele a emoção produzida pelo poder (chamada de “Deus”) é insuflada (pela reza); nele o bem mais elevado é considerado algo inatingível, uma dádiva, uma “graça”. Também falta transparência: o encobrimento e os lugares obscurecidos são cristãos. Nele o corpo é desprezado e a higiene é acusada de lascívia; a Igreja distancia-se até da limpeza (– a primeira providência cristã após a expulsão dos mouros foi fechar os banhos públicos, dos quais havia 270 apenas em Córdoba). Também é cristã uma certa crueldade para consigo e para com os outros; o ódio aos incrédulos; o desejo de perseguir. Ideias sombrias e inquietantes ocupam o primeiro plano; os estados mentais mais estimados, portando os nomes mais respeitáveis, são epileptiformes; a dieta é determinada com o fim de engendrar sintomas mórbidos e supra-estimulação nervosa. Também é cristã toda a inimizade mortal aos senhores da terra, aos “aristocratas” – juntamente com uma rivalidade secreta contra eles (– resignam-se do “corpo” – querem apenas a “alma”...). É cristão todo o ódio contra o intelecto, o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem intelectual; o ódio aos sentidos, à alegria dos sentidos, à alegria em geral, é cristão...
XXII
Quando o cristianismo abandonou sua terra natal, aqueles das classes mais baixas, o submundo da
Antiguidade, e começou a buscar poder entre os povos bárbaros, não tinha mais de se relacionar com homens exauridos, mas homens ainda intimamente selvagens e capazes de sacrifícios – em suma, homens fortes, mas atrofiados. Aqui, distintamente do caso dos budistas, a causa do descontentamento consigo, do sofrimento por si, não é meramente uma sensibilidade extremada e uma suscetibilidade à dor, mas, ao contrário, uma excessiva ânsia por infligir sofrimento aos outros, uma tendência a obter uma satisfação subjetiva em feitos e ideias hostis. O cristianismo tinha de adotar conceitos e valorações bárbaras para obter domínio sobre os bárbaros: assim como, por exemplo, o sacrifício do primogênito, a ingestão de sangue como um sacramento, o desprezo pelo intelecto e pela cultura; a tortura sob todas as suas formas, corporal e espiritual; toda a pompa do culto. O budismo é uma religião para pessoas em um estágio mais adiantado de desenvolvimento, para raças que se tornaram gentis, amenas e demasiado espiritualizadas (– a Europa ainda não está madura para ele –): é um convite de retorno à paz e à felicidade, a um cuidadoso racionamento do espírito, a um certo enrijecimento do corpo. O cristianismo visa dominar animais de rapina; sua estratégia consiste em torná-los doentes – enfraquecer é a receita cristã para domesticar, para “civilizar”. O budismo é uma religião para o final, para os derradeiros estágios de cansaço da civilização. O cristianismo surge antes da civilização mal ter começado – sob certas circunstâncias cria as próprias fundações desta.
Quando o cristianismo abandonou sua terra natal, aqueles das classes mais baixas, o submundo da
Antiguidade, e começou a buscar poder entre os povos bárbaros, não tinha mais de se relacionar com homens exauridos, mas homens ainda intimamente selvagens e capazes de sacrifícios – em suma, homens fortes, mas atrofiados. Aqui, distintamente do caso dos budistas, a causa do descontentamento consigo, do sofrimento por si, não é meramente uma sensibilidade extremada e uma suscetibilidade à dor, mas, ao contrário, uma excessiva ânsia por infligir sofrimento aos outros, uma tendência a obter uma satisfação subjetiva em feitos e ideias hostis. O cristianismo tinha de adotar conceitos e valorações bárbaras para obter domínio sobre os bárbaros: assim como, por exemplo, o sacrifício do primogênito, a ingestão de sangue como um sacramento, o desprezo pelo intelecto e pela cultura; a tortura sob todas as suas formas, corporal e espiritual; toda a pompa do culto. O budismo é uma religião para pessoas em um estágio mais adiantado de desenvolvimento, para raças que se tornaram gentis, amenas e demasiado espiritualizadas (– a Europa ainda não está madura para ele –): é um convite de retorno à paz e à felicidade, a um cuidadoso racionamento do espírito, a um certo enrijecimento do corpo. O cristianismo visa dominar animais de rapina; sua estratégia consiste em torná-los doentes – enfraquecer é a receita cristã para domesticar, para “civilizar”. O budismo é uma religião para o final, para os derradeiros estágios de cansaço da civilização. O cristianismo surge antes da civilização mal ter começado – sob certas circunstâncias cria as próprias fundações desta.
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