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terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Anticristo - Friedrich Nietzsche (parte 2)

VI
Um doloroso e trágico espetáculo surge diante de mim: retirei a cortina da corrupção do homem. Essa palavra, em minha boca, é isenta de pelo menos uma suspeita: a de que envolve uma acusação moral contra a humanidade.    A entendo – e desejo enfatizar novamente – livre de qualquer valor moral: e isso é tão verdade que a corrupção de que falo é mais aparente para mim precisamente onde esteve, até agora, a maior parte da aspiração à “virtude” e à “divindade”. Como se presume, entendo essa corrupção no sentido de decadência: meu argumento é que todos os valores nos quais a humanidade apoia seus anseios mais sublimes são valores de decadência.  Denomino corrompido um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde seus instintos, quando escolhe, quando prefere o que lhe é nocivo. Uma história dos “sentimentos elevados”, dos “ideais da humanidade” – e é possível que tenha de escrevê-la – praticamente explicaria por que o homem é tão degenerado. A própria vida apresenta-se a mim como um instinto para o crescimento, para a sobrevivência, para a acumulação de forças, para o poder: sempre que falta a vontade de poder ocorre o desastre. Afirmo que todos os valores mais elevados da humanidade carecem dessa vontade – que os valores de decadência, de niilismo, agora prevalecem sob os mais sagrados nomes.
VII
Chama-se cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece. Através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento acaba por multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas circunstancias pode levar a um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente desproporcional à magnitude da causa (– o caso da morte de Nazareno). Essa é uma primeira perspectiva; há, entretanto, outra mais importante. Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz, sua periculosidade à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixão contraria inteiramente lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à própria vida um aspecto sombrio e dúbio. A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a origem e fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que esse era o ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida. Schopenhauer estava certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação – a compaixão é uma técnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso opõe-se a todos os instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor dos miseráveis, é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à extinção... É claro, ninguém diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana, salvação, bem-aventurança... Essa inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos inocente quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à destruição da vida. Schopenhauer era
hostil à vida: esse foi o porquê de a compaixão, para ele, ser uma virtude... Aristóteles, como todos sabem, via na compaixão um estado mental mórbido e perigoso, cujo remédio era um purgativo ocasional: considerava a tragédia como sendo esse purgativo. O instinto vital deveria nos incitar a buscar meios de alfinetar quaisquer acúmulos patológicos e perigosos de compaixão, como os presentes no caso de Schopenhauer (e também, lamentavelmente, em toda a nossa décadence literária, de St. Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), para que ele estoure e se dissipe... Nada é mais insalubre, em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã. Sermos os médicos aqui, sermos impiedosos aqui, manejarmos a faca aqui – tudo isso é o nosso serviço, é o nosso tipo de humanidade, é isso que nos torna filósofos, nós, hiperbóreos! –
VIII
É necessário dizer quem consideramos nossos adversários: os teólogos e tudo que tem sangue teológico correndo em suas veias – essa é toda a nossa filosofia... É necessário ter visto essa ameaça de perto, melhor ainda, é preciso tê-la vivido e quase sucumbido por ela, para compreender que isso não é qualquer brincadeira (– o alegado livre-pensamento de nossos naturalistas e fisiologistas me parece uma brincadeira – não possuem a paixão nessas coisas; não sofreram –). Este envenenamento vai muito mais longe do que a maioria imagina: encontro o arrogante hábito de teólogo entre todos aqueles que se consideram “idealistas”, entre todos que, em virtude uma origem superior, reivindicam o direito de se colocarem acima da realidade, e olhá-la com suspeita... O idealista, assim como o eclesiástico, carrega todos os grandes conceitos em sua mão (– e não apenas em sua mão!); os lança com um benevolente desprezo contra o “entendimento”, os “sentidos”, a “honra”, o “bem viver”, a “ciência”; vê tais coisas abaixo de si, como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais “o espírito” plana como a coisa pura em si – como se a humildade, a castidade, a pobreza, em uma palavra, a santidade, não tivessem causado muito mais dano à vida que quaisquer outros horrores e vícios... O puro espírito é a pura mentira... Enquanto o padre, esse negador, caluniador e envenenador da vida por profissão for aceito como uma variedade de homem superior, não poderá haver resposta à pergunta: Que é a verdade?(1)A verdade já foi posta de cabeça para baixo quando o advogado do nada foi confundido com o representante da verdade.
1 – Alusão à passagem bíblica (Novo Testamento, Evangelho segundo João 18:38) na qual Pilatos pergunta a Jesus: “Que é a verdade?”. (N. do T.)
IX
É contra este instinto teológico que guerreio: encontro vestígios dele por toda parte. Todo aquele que possui sangue teológico em suas veias é cínico e desonrado em todas as coisas. Ao pathos(1) que se desenvolve dessa condição denomina-se fé: em outras palavras, fechar os olhos ante si mesmo de uma vez por todas para evitar o sofrimento causado pela visão de uma falsidade incurável. As pessoas constroem um conceito de moral, de virtude, de santidade a partir dessa falsa perspectiva das coisas; fundamentam a boa consciência sobre uma visão falseada; após terem-na tornado sacrossanta com os nomes “Deus”, “salvação” e “eternidade” não aceitam mais que qualquer outro tipo de visão possa ter valor. Descubro este instinto teológico em todas direções: é a mais disseminada e mais subterrânea forma de falsidade que se pode encontrar na Terra. Tudo que um teólogo considera verdadeiro é necessariamente falso: aqui temos praticamente um critério da verdade. Seu profundo instinto de autopreservação não lhe permite honrar ou sequer mencionar a verdade. Onde quer que a influência dos teólogos seja sentida, há uma transmutação de valores, os conceitos de “verdadeiro” e “falso” são forçados a inverter suas posições: tudo que é mais prejudicial à vida é nomeado “verdadeiro”, tudo que a exalta, a intensifica, a afirma, a justifica e a torna triunfante é nomeado “falso”... Quando teólogos, através “consciência” dos príncipes (ou dos povos –), estendem suas mãos ao poder, não há qualquer dúvida quanto a este aspecto fundamental: que o anseio pelo fim, a vontade niilista, aspira ao poder...
1 – O termo phatos vem do grego, significando “sentimento”, “emoção” “paixão”. Opõe-se a logos, pensamento racional, lógico. (N. do T.)
X
Entre os alemães sou imediatamente compreendido quando digo que o sangue teológico é a ruína da filosofia. O pastor protestante é o avô da filosofia alemã; o protestantismo em si é o peccatum originale(1). Definição do protestantismo: paralisia hemiplégica(2) do cristianismo – e da razão... Precisa-se apenas pronunciar as palavras “Escola de Tübingen”(3) para compreender o que é, no fundo, a filosofia alemã – uma forma muito astuta de teologia... Os suevos são os melhores mentirosos da Alemanha; mentem com inocência... Qual o porquê de toda alegria que se estendeu pelo universo erudito da Alemanha – que é formado em três quartos por filhos de pastores e professores – com o aparecimento de Kant? Por que ainda ecoa na convicção alemã que com Kant houve uma mudança para melhor? O instinto teológico dos estudiosos alemães os fez enxergar nitidamente o que tinha se tornado possível novamente... Abria-se um caminho que conduzia de volta ao velho ideal; os conceitos de “mundo verdadeiro” e de moral como essência do mundo (– os dois erros mais viciosos que já existiram!)
estavam, uma vez mais, graças a um ceticismo sutil e astucioso, se não demonstráveis, pelo menos irrefutáveis... A razão, o direito da razão, não vai tão longe... A realidade foi relegada a uma “aparência”; um mundo absolutamente falso – o da essência – foi transformado na realidade... O sucesso de Kant foi um sucesso meramente teológico; assim como Lutero ou Leibniz, ele não foi senão um empecilho à já pouco estável integridade alemã. –

1 –  Pecado original.
2 – Hemiplegia designa paralisia de um dos lados do corpo.
3 – A Escola de Tübingen (fundada em 1477) possui uma famosa faculdade de teologia, na qual estudaram Hegel e Johannes Kepler. (N. do T.)


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