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domingo, 27 de maio de 2012

Premonições

Quando:
tudo for branco dentro dos olhos; não existir mais a visão e seus domínios, predomínios; a imagem não valer mil palavras, nem a palavra valer mil palavras; falar for uma ferramenta de correção política, limpa, esterilizada; formos todos surdos e nossos ouvidos abrigarem vazios e nossas orelhas forem pouso para vespas; tivermos os narizes entupidos de cimento, e o olfato perder suas funções de corporificar o invisível; esgotos e jardins existirem sem diferença; rosas e urubus exalarem o mesmo perfume; o paladar não distinguir o travo de um beijo com o de uma fruta verde; nunca mais existir amargor ou doçura, nunca mais sentir-se sal ou vinagre; o tato não nos der sobrevida e nossa pele for áspera e dura e as pontas dos dedos nada sentirem além de si mesmas; o calor do corpo do outro não fizer mais sentido.

Até:
sermos um corpo-máquina perfeito, sem suores, lágrimas e demais dejetos líquidos e sólidos; fazermos curvas e amor em segurança; não cairmos, não esbarrarmos, não desculparmo-nos ou perdoarmo-nos; não errarmos mais as ordens; sermos todos uniformizados pela dor; anestesiados pela felicidade empacotada dos livros bonitos; árvores serem adeus; desertos decorarem os arredores dos palácios e palafitas; misérias comporem suas sonatas em todos, principalmente dentro dos helicópteros; os rios desistirem; erosão, assoreamento serem palavras tão comuns quanto futebol e dinheiro; geleiras, tigres, baleias e a poesia serem belezas esquecidas; que qualquer fé, divindade, mistério, possam ser explicados à luz da razão.

No dia em que:
crianças souberem ioga, natação, judô, inglês, contabilidade, esculturas em mármore, porque é preciso se preparar para o futuro; os pais escolherem os filhos em vitrines; viermos com uma etiqueta iso 9000 genética; formos identificados com códigos de barras; não soubermos lidar com emoções, animalidades, egoísmos; o amor for um tufo de pêlos na garganta; tudo for amaciado com um comprimido a cada oito horas; o instinto, desejo, tesão se despedirem cabalmente de nosso corpo; cabermos num palmtop; não lermos mais os clássicos, as listas de compras, os gibis do Pato Donald; o abraço inexistir; vasculharem nossas retinas, carteiras, fantasias com scanners de última geração; o sorriso inexistir; sermos apenas números de identificação e crédito; a vida inexistir.

Então:
Saberemos exatamente o que estamos fazendo aqui.

 (Rubens da Cunha)

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