Total de visualizações de página

domingo, 10 de março de 2013

A dialética do esclarecimento - Theodor W. Adorno

Conceito de esclarecimento (parte 5)

As medidas tomadas por Ulisses quando seu navio se aproxima das Sereias pressagiam alegoricamente a dialéctica do esclarecimento. Assim como a substituibilidade é a medida da dominação e o mais poderoso é aquele que pode se fazer substituir na maioria das funções, assim também a substituibilidade é o veículo do progresso e, ao mesmo tempo, da regressão. Na situação dada, estar excluído do trabalho também significa mutilação, tanto para os desempregados, quanto para os que estão no pólo social oposto. Os chefes, que não precisam mais se ocupar da vida, não têm mais outra experiência dela senão como substrato e deixam-se empedernir integralmente no eu que comanda. O primitivo só tinha experiência da coisa natural como objecto fugidio do desejo, "mas o senhor, que interpôs o servo entre a coisa e ele próprio, só se prende à dependência da coisa e desfruta-a em sua pureza; o aspecto da independência, porém, abandona-o ao servo que a trabalha". (37) Ulisses é substituído no trabalho. Assim como não pode ceder à tentação de se abandonar, assim também acaba por renunciar enquanto proprietário a participar do trabalho e, por fim, até mesmo a dirigi-lo, enquanto os companheiros, apesar de toda proximidade às coisas, não podem desfrutar do trabalho porque este se efectua sob coacção, desesperadamente, com os sentidos fechados à força. O servo permanece subjugado no corpo e na alma, o senhor regride. Nenhuma dominação conseguiu ainda evitar pagar esse preço, e a aparência cíclica da história em seu progresso também se explica por semelhante enfraquecimento, que é o equivalente do poderio. A humanidade, cujas habilidades e conhecimentos se diferenciam com a divisão do trabalho, é ao mesmo tempo forçada a regredir a estágios antropologicamente mais primitivos, pois a persistência da dominação determina, com a facilitação técnica da existência, a fixação do instinto através de uma repressão mais forte. A fantasia atrofia-se. A desgraça não está em que os indivíduos tenham se atrasado relativamente à sociedade ou à sua produção material.
Quando o desenvolvimento da máquina já se converteu em desenvolvimento da maquinaria da dominação - de tal sorte que as tendências técnica e social, entrelaçadas desde sempre, convergem no apoderamento total dos homens - os atrasados não representam meramente a inverdade. Por outro lado, a adaptação ao poder do progresso envolve o progresso do poder, levando sempre de novo àquelas formações recessivas que mostram que não é o malogro do progresso, mas exactamente o progresso bem-sucedido que é culpado de seu próprio oposto. A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão.
Esta não se limita à experiência do mundo sensível, que está ligada à proximidade das coisas mesmas, mas afecta ao mesmo tempo o intelecto autocrático, que se separa da experiência sensível para submetê-la. A unificação da função intelectual, graças à qual se efectua a dominação dos sentidos, a resignação do pensamento em vista da produção da unanimidade, significa o empobrecimento do pensamento bem como da experiência: a separação dos dois domínios prejudica a ambos. A limitação do pensamento à organização e à administração, praticada pelos governantes desde o astucioso Ulisses até os ingénuos directores-gerais, inclui também a limitação que acomete os grandes tão logo não se trate mais apenas da manipulação dos pequenos. O espírito torna-se de facto o aparelho da dominação e do autodomínio, como sempre havia suposto erroneamente a filosofia burguesa. Os ouvidos moucos, que é o que sobrou aos dóceis proletários desde os tempos míticos, não superam em nada a imobilidade do senhor. É da imaturidade dos dominados que se nutre a hipermaturidade da sociedade. Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, económica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz. Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a assemelhá-lo de novo ao mundo dos anfíbios. A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas. Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem exactamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na colectividade governada pela força. Os remadores que não podem se falar estão atrelados a um compasso, assim como o trabalhador moderno na fábrica, no cinema e no colectivo. São as condições concretas do trabalho na sociedade que forçam o conformismo e não as influências conscientes, as quais por acréscimo embruteceriam e afastariam da verdade os homens oprimidos. A impotência dos trabalhadores não é mero pretexto dos dominantes, mas a consequência lógica da sociedade industrial, na qual o fado antigo acabou por se transformar no esforço de a ele escapar.
Essa necessidade lógica, porém, não é definitiva. Ela permanece presa à dominação, como seu reflexo e seu instrumento ao mesmo tempo. Por isso, sua verdade é tão questionável quanto sua evidência inevitável. É verdade que o pensamento sempre bastou para designar concretamente seu próprio carácter questionável. Ele é o servo que o senhor não pode deter a seu bel-prazer. Ao se reificar na lei e na organização, quando os homens se tornaram sedentários e, depois, na economia mercantil, a dominação teve que limitar-se. O instrumento ganha autonomia: a instância mediadora do espírito, independentemente da vontade dos dirigentes, suaviza o carácter imediato da injustiça económica. Os instrumentos da dominação destinados a alcançar a todos - a linguagem, as armas e por fim as máquinas - devem se deixar alcançar por todos. É assim que o aspecto da racionalidade se impõe na dominação como um aspecto que é também distinto dela. A objectividade do meio, que o torna universalmente disponível, sua "objectividade" para todos, já implica a crítica da dominação da qual o pensamento surgiu, como um de seus meios. No trajecto da mitologia à logística, o pensamento perdeu o elemento da reflexão sobre si mesmo, e hoje a maquinaria mutila os homens, mesmo quando os alimenta. Sob a forma das máquinas, porém, a ratio alienada move-se em direcção a uma sociedade que reconcilia o pensamento solidificado, enquanto aparelhagem material e aparelhagem intelectual, com o ser vivo liberado e o relaciona com a própria sociedade como seu sujeito real. A origem particular do pensamento e sua perspectiva universal foram sempre inseparáveis. Hoje, com a metamorfose que transformou o mundo em indústria, a perspectiva do universal, a realização social do pensamento, abriu-se tão amplamente que, por causa dela, o pensamento é negado pelos próprios dominadores como mera ideologia. A expressão que trai a má-consciência das cliques, nas quais acaba por encarnar a necessidade económica, é o facto de que suas revelações - das intuições do chefe à visão dinâmica do mundo - não reconhecem mais, em decidida oposição à apologética burguesa anterior, os próprios crimes como consequências necessárias de sistemas de leis. As mentiras mitológicas da missão e do destino que elas mobilizam em seu lugar nem sequer chegam a dizer uma total inverdade: não eram mais as leis objectivas do mercado que imperavam nas acções dos empresários e impeliam à catástrofe. Antes pelo contrário, a decisão consciente dos directores gerais, como resultante tão fatal quanto os mais cegos mecanismos de preços, leva a efeito a velha lei do valor e assim cumpre o destino do capitalismo. Os próprios dominadores não acreditam em nenhuma necessidade objectiva, mesmo que às vezes dêem esse nome a suas maquinações. Eles se arvoram em engenheiros da história universal. Só os dominados aceitam como necessidade intangível o processo que, a cada decreto elevando o nível de vida, aumenta o grau de sua impotência. Agora que uma parte mínima do tempo de trabalho à disposição dos donos da sociedade é suficiente para assegurar a subsistência daqueles que ainda se fazem necessários para o manejo das máquinas, o resto supérfluo, a massa imensa da população, é adestrado como uma guarda suplementar do sistema, a serviço de seus planos grandiosos para o presente e o futuro. Eles são sustentados como um exército dos desempregados. Rebaixados ao nível de simples objectos do sistema administrativo, que preforma todos os estores da vida moderna, inclusive a linguagem e a percepção, sua degradação reflecte para eles a necessidade objectiva contra a qual se crêem impotentes. Na medida em que cresce a capacidade de eliminar duradouramente toda miséria, cresce também desmesuradamente a miséria enquanto antítese da potência e da impotência. Nenhum indivíduo é capaz de penetrar a floresta de cliques e instituições que, dos mais altos níveis de comando da economia até às últimas gangues profissionais, zelam pela permanência ilimitada do status quo. Perante um líder sindical, para não falar do director da fábrica, o proletário que por acaso se faça notar não passará de um número a mais, enquanto que o líder deve por sua vez tremer diante da possibilidade de sua própria liquidação.

O absurdo desta situação, em que o poder do sistema sobre os homens cresce na mesma medida em que os subtrai ao poder da natureza, denuncia como obsoleta a razão da sociedade racional. Sua necessidade não é menos aparente do que a liberdade dos empresários, que acaba por revelar sua natureza compulsiva nas lutas e acordos a que não conseguem escapar. Essa aparência, na qual se perde a humanidade inteiramente esclarecida, não pode ser dissipada pelo pensamento que tem de escolher, enquanto órgão da dominação, entre o comando e a obediência. Incapaz de escapar ao envolvimento que o mantém preso à pré-história, ele consegue no entanto reconhecer na lógica da alternativa, da consequência e da antinomia, com a qual se emancipou radicalmente da natureza, a própria natureza, irreconciliada e alienada de si mesma. O pensamento, cujos mecanismos de compulsão reflectem e prolongam a natureza, também se reflecte a si mesmo, em virtude justamente de sua consequência inelutável, como a própria natureza esquecida de si mesma, como mecanismo de compulsão. É verdade que a representação é só um instrumento. Pensando, os homens distanciam-se da natureza a fim de torná-la presente (38) de modo a ser dominada. Semelhante à coisa, à ferramenta material - que pegamos e conservamos em diferentes situações como a mesma, destacando assim o mundo como o caótico, multifário, disparatado do conhecido, uno, idêntico - o conceito é a ferramenta ideal que se encaixa nas coisas pelo lado por onde se pode pegá-las. Pois o pensamento se torna ilusório sempre que tenta renegar sua função separadora, de distanciamento e objectivação. Toda união mística permanece um logro, o vestígio impotentemente introvertido da revolução malbaratada. Mas enquanto o esclarecimento prova que estava com a razão contra toda hipostasiação da utopia e proclama impassível a dominação sob a forma da desunião, a ruptura entre o sujeito e o objecto que ele proíbe recobrir, torna-se, ela própria, o índice da inverdade dessa ruptura e o índice da verdade. A condenação da superstição significa sempre, ao mesmo tempo, o progresso da dominação e o seu desnudamento. O esclarecimento é mais que esclarecimento: natureza que se torna perceptível em sua alienação. No autoconhecimento do espírito como natureza em desunião consigo mesma, a natureza se chama a si mesma como antigamente, mas não mais imediatamente com seu nome presumido, que significa omnipotência, isto é, como "mana", mas como algo de cego, mutilado. A dominação da natureza, sem o que o espírito não existe, consiste em sucumbir à natureza. Graças à resignação com que se confessa como dominação e se retrata na natureza, o espírito perde a pretensão senhorial que justamente o escraviza à natureza. Se é verdade que a humanidade na fuga da necessidade, no progresso e na civilização, não consegue se deter sem abandonar o próprio conhecimento, pelo menos ela não mais toma por garantias da liberdade vindoura os baluartes que levanta contra a necessidade, a saber, as instituições, as práticas da dominação que sempre constituíram o revide sobre a sociedade da submissão da natureza. Todo progresso da civilização tem renovado, ao mesmo tempo, a dominação e a perspectiva de seu abrandamento. Contudo, enquanto a história real se teceu a partir de um sofrimento real, que de modo algum diminui proporcionalmente ao crescimento dos meios para sua eliminação, a concretização desta perspectiva depende do conceito. Pois ele é não somente, enquanto ciência, um instrumento que serve para distanciar os homens da natureza, mas é também, enquanto tomada de consciência do próprio pensamento que, sob a forma da ciência, permanece preso à evolução cega da economia, um instrumento que permite medir a distância perpetuadora da injustiça. Graças a essa consciência da natureza no sujeito, que encerra a verdade ignorada de toda cultura, o esclarecimento se opõe à dominação em geral, e o apelo a pôr fim ao esclarecimento também ressoou nos tempos de Vanini, menos por medo da ciência exacta do que por ódio ao pensamento indisciplinado, que escapa à órbita da natureza confessando-se como o próprio tremor da natureza diante de si mesma. Os sacerdotes sempre vingaram o mana no esclarecedor que conciliava o mana assustando-se com o susto que trazia o seu nome, e na hybris os áugures do esclarecimento se punham de acordo com os sacerdotes. Muito antes de Turgot e d' Alembert, a forma burguesa do esclarecimento já se perdera em seu aspecto positivista. Ele jamais foi imune à tentação de confundir a liberdade com a busca da autoconservação. A suspensão do conceito - não importa se isso ocorreu em nome do progresso ou da cultura, que há muito já haviam se coligado contra a verdade - abriu caminho à mentira. Esta encontrava lugar num mundo que se contentava em verificar sentenças protocolares e conservava o pensamento - degradado em obra dos grandes pensadores - como uma espécie de slogan antiquado, do qual não se pode mais distinguir a verdade neutralizada como património cultural.

Reconhecer, porém, a presença da dominação dentro do próprio pensamento como natureza não reconciliada seria um meio de afrouxar essa necessidade que o próprio socialismo veio a confirmar precipitadamente como algo de eterno, fazendo assim uma concessão ao common sense reaccionário. Ao fazer da necessidade, para todo o sempre, a base e ao depravar o espírito de maneira tipicamente idealista como o ápice, ele se agarrou com excessiva rigidez à herança da filosofia burguesa. Assim, a relação da necessidade com o reino da liberdade permaneceria meramente quantitativa, mecânica, e a natureza - colocada como algo inteiramente alheio e estranho, como ocorre na primeira mitologia - tornar-se-ia totalitária e absorveria a liberdade juntamente com o socialismo. Com o abandono do pensamento - que, em sua figura coisificada como matemática, máquina, organização, se vinga dos homens dele esquecidos - o esclarecimento abdicou de sua própria realização. Ao disciplinar tudo o que é único e individual, ele permitiu que o todo não-compreendido se voltasse, enquanto dominação das coisas, contra o ser e a consciência dos homens. Mas uma verdadeira práxis revolucionária depende da intransigência da teoria em face da inconsciência com que a sociedade deixa que o pensamento se enrijeça. Não são as condições materiais da satisfação nem a técnica deixada à solta enquanto tal, que a colocam em questão. Isso é o que afirmam os sociólogos, que estão de novo a meditar sobre um antídoto, ainda que de natureza colectivista, a fim de dominar o antídoto. (39) A culpa é da ofuscação em que está mergulhada a sociedade. O mítico respeito científico dos povos pelo dado, que eles no entanto estão continuamente a criar, acaba por se tornar ele próprio um facto positivo, a fortaleza diante da qual a imaginação revolucionária se envergonha de si mesma como utopismo e degenera numa confiança dócil na tendência objectiva da história. Enquanto órgão de semelhante adaptação, enquanto mera construção de meios, o esclarecimento é tão destrutivo como o acusam seus inimigos românticos. Ele só se reencontrará consigo mesmo quando renunciar ao último acordo com esses inimigos e tiver a ousadia de superar o falso absoluto que é o princípio da dominação cega. O espírito dessa teoria intransigente seria capaz de inverter a direcção do espírito do progresso impiedoso, ainda que este estivesse em vias de atingir sua meta. Seu arauto, Bacon, sonhou com as inúmeras coisas "que os reis com todos os seus tesouros não podem comprar, sobre as quais seu comando não impera, das quais seus espias e informantes nenhuma notícia trazem". Como ele desejava, elas couberam aos burgueses, os herdeiros esclarecidos do rei. Multiplicando o poder pela mediação do mercado, a economia burguesa também multiplicou seus objectos e suas forças a tal ponto que para sua administração não só não precisa mais dos reis como também dos burgueses: agora ela só precisa de todos. Eles aprendem com o poder das coisas a, afinal, dispensar o poder. O esclarecimento se consuma e se supera quando os fins práticos mais próximos se revelam como o objectivo mais distante finalmente atingido, e os países, "dos quais seus espias e informantes nenhuma notícia trazem", a saber, a natureza ignorada pela ciência dominadora, são recordados como os países da origem. Hoje, quando a utopia baconiana de "imperar na prática sobre a natureza" se realizou numa escala telúrica, tornou-se manifesta a essência da coacção que ele atribuía à natureza não dominada. Era a própria dominação. É à sua dissolução que pode agora proceder o saber em que Bacon vê a "superioridade dos homens". Mas, em face dessa possibilidade, o esclarecimento se converte, a serviço do presente, na total mistificação das massas. 

Nenhum comentário: