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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [Última parte]

Natividade confirmou a notícia; foram eleitos em oposição um ao outro. Ambos apoiavam a República, Mas Paulo queria mais do que ela era, e Pedro achava que era bastante e sobeja. Mostravam-se sinceros, ardentes, ambiciosos; eram bem aceitos dos amigos, estudiosos, instruídos...
        —Amam-se finalmente?
        —Amam-se em mim, respondeu ela depois de formular essa frase na cabeça.
        —Pois basta esse terreno amigo.
        —Amigo, mas caduco; amanhã posso faltar-lhes.
        —Não falta; a senhora tem muitos e muitos anos de vida. Faça uma viagem à Europa com eles, e verá que regressa ainda mais robusta. Eu sinto-me duplicado, por mais que me custe à modéstia mas a modéstia perdoa tudo. E depois, quando os vir encarreirados e grandes homens...
        —Por que é que a política os há de separar?
        —Sim, podiam ser grandes na ciência, um grande médico, um grande jurisconsulto...
Natividade não quis confessar que a ciência não bastava. A glória científica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de gabinete, entendida de poucos. Política, não. Quisera só a política, mas que não brigassem, que se amassem, que subissem de mãos dadas... Assim ia pensando consigo, enquanto Aires, abrindo mão da ciência, acabou declarando que, sem amor, não se faria nada.

        —Paixão, disse ele, é meio caminho andado.
        —A política é a paixão deles; paixão e ambição. Talvez já pensem na Presidência da República.
        —Já?
        —Não... isto é, sim; guarde segredo. Interroguei-os separadamente; confessaram-me que este era o seu sonho imperial. Resta saber o que fará um, se o outro subir primeiro.
        —Derrubá-lo-á, naturalmente.
        —Não graceje, conselheiro.
        —Não é gracejo, baronesa. A senhora cuida que a política os desune; francamente, não. A política e um incidente, como a moça Flora foi outro...
        —Ainda se lembram dela.
        —Ainda?
        —Foram à missa aniversária, e desconfio que foram também ao cemitério, não juntos, nem à mesma hora. Se foram, é que verdadeiramente gostavam dela; logo, não foi um incidente.
Sem embargo do que Natividade lhe merecia, Aires não insistiu na opinião, antes deu mais relevo à dela, corn o próprio fato da visita ao cemitério.
        —Não sei se foram, emendou Natividade; desconfio.
        —Devem ter ido; eles gostavam realmente da pequena. Também ela gostava deles; a diferença é que, não alcançando unificá-los, como os via em si, preferiu fechar os olhos. Não lhe importe o mistério. Há outros mais escuros.
        —Parece que vai entrar a cerimônia, disse Perpétua que olhava para o recinto.
        —Chegue-se para a frente, conselheiro.
A cerimônia era a do costume. Natividade cuidou que ia vê-los entrar juntos e afirmarem juntos o compromisso regimental. Viriam assim como os trouxera no ventre e na vida. Contentou-se de os admirar separadamente. Paulo primeiro, Pedro depois, ambos graves, e ouviu-lhes cá de cima repetir a fórmula com voz clara e segura. A cerimônia foi curiosa para as galerias, graças à semelhança dos dous; para a mãe foi comovedora.
        —Estão legisladores, disse Aires no fim.
Natividade tinha os olhos gloriosos. Ergueu-se e pediu ao velho amigo que as acompanhasse à carruagem. No corredor acharam os dous recentes deputados, que vinham ter com a mãe. Não consta qual deles a beijou primeiro: não havendo regimento interno nesta outra câmara, pode ser que fossem ambos a um tempo, metendo-lhes ela a cara entre as bocas, uma face para cada um. A verdade é que o fizeram com igual ternura. Depois voltaram ao recinto.

CXVIII
Cousas passadas, cousas futuras
Indo a entrar na carruagem, Natividade deu com a igreja de S. José, ao lado, e um pedaço do morro do Castelo, a distancia. Estacou.
        —Que é? perguntou Aires.
        —Nada, respondeu ela entrando e estendendo-lhe a mão. Até logo?
        —Até logo.
A vista da igreja e do morro despertou nela todas as cenas e palavras que lá ficaram transcritas nos dous ou três primeiros capítulos. Não esqueceste que foi ao pé da igreja, entre esta e a Câmara, que o coupé esperou então por ela e pela irmã.
Você lembra-se, Perpétua? disse Natividade, quando o carro começou a andar.
        —De quê?
        —Não se lembra que foi ali que ficou o carro, quando fomos à cabocla do Castelo?
Perpétua lembrava-se. Natividade advertiu que devia ser ali perto a ladeira por onde subiram com dificuldade e curiosidade, até à casa da cabocla, no meio da outra gente, que descia ou subia também. A casa era à direita, tinha a escada de pedra...
Descansa, amigo, não repito as páginas. Ela é que não podia deixar de as evocar, nem impedir que viessem de si mesmas. Tudo reaparecia com a frescura antiga. Não esquecera a figurinha da cabocla, quando o pai a fez entrar na sala: Entra, Bárbara. A ideia de estar agora madura e longe, restituída ao Estado, que deixou Província, rica onde nasceu pobre, não acudiu à nossa amiga. Não, toda ela voltou àquela manhã de 1871. A caboclinha era esta mesma criatura leve e breve, com os cabelos atados no alto da cabeça, olhando, falando, dançando... Cousas passadas.
Quando a carruagem ia a dobrar a Praia de Santa Luzia, ladeando a Santa Casa, Natividade teve ideia, mas só ideia, de voltar e ir ter à ladeira do Castelo, subir por ela, a ver se achava a adivinha no mesmo lugar. Contar-lhe-ia que os dous meninos de mama, que ela predisse seriam grandes, eram já deputados e acabavam de tomar assento na Câmara. Quando cumpririam eles o seu destino? Viveria o tempo de os ver grandes homens, ainda que muito velha?
A presidência da República não podia ser para dous, mas um teria a vice-presidência, e se este a achasse pouco, trocariam mais tarde os cargos. Nem faltavam grandezas. Ainda se lembrava das palavras que ouviu à cabocla, quando lhe perguntou pela espécie de grandeza que caberia aos filhos. Cousas futuras! respondeu a Pítia do Norte, com tal voz que nunca lhe esqueceu. Agora mesmo parece-lhe que a ouve, mas é ilusão. Quando muito, são as rodas do carro que vão rolando e as patas dos cavalos que batem. Cousas futuras! cousas futuras!
CXIX
Que anuncia os seguintes
Todas as histórias, se as cortam em fatias, acabam com um capítulo último e outro penúltimo, mas nenhum autor os confessa tais; todos preferem dar-lhes um título próprio. Eu adoto o método oposto; escrevo no alto de cada um dos capítulos seguintes os seus nomes de remate, e, sem dizer a matéria particular de nenhum, indico o quilômetro em que estamos da linha. Isto supondo que a história seja um trem de ferro. A minha não é propriamente isso. Poderia ser uma canoa, se lhe tivesse posto águas e ventos, mas tu viste que só andamos por terra, a pé ou de carro, e mais cuidadosos da gente que do chão. Não é trem nem barco; é uma história simples, acontecida e por acontecer; o que poderás ver nos dous capítulos que faltam e são curtos.
CXX
Penúltimo
Este é ainda um óbito. Já lá ficou defunta a jovem Flora, aqui vai morta a velha Natividade. Chamo-lhe velha, porque li a certidão de batismo; mas, em verdade, nem os filhos deputados, nem os cabelos brancos davam a esta senhora o aspecto correspondente à idade. A elegância, que era o seu sexto sentido, enganava os tempos de tal maneira que ela conservava, não digo a frescura, mas a graça antiga. Não morreu sem ter uma conferência particular com os dous filhos, — tão particular, que nem o marido assistiu a ela. Também não instou por isso. Verdade, verdade, Santos andava a chorar pelos cantos; mal poderia reter as lágrimas, se ouvisse a mulher fazer aos filhos os seus finais pedidos. Porquanto, os médicos já a haviam desenganado. Se eu não visse nesses oficiais da saúde os escrutadores da vida e da morte, podia torcer a pena, e, contra a predição científica, fazer escapar Natividade. Cometeria uma ação fácil e reles, além de mentirosa. Não, senhor, ela morreu sem falta, poucas se maI nas depois daquela sessão da Câmara. Morreu de tifo.
Tão secreta foi a conferência dela e dos filhos que estes não aqui serão contá-la a ninguém, salvo ao Conselheiro Aires, que a adivinhou em parte. Paulo e Pedro confessaram a outra parte, pedindo-lhe silêncio.
        —Não juraram calar?
        —Positivamente, não, disse um.
        —Juramos só o que ela nos pediu, explicou o outro.
        —Pois então podem contá-lo a mim. Eu serei discreto como um túmulo.
Aires sabia que os túmulos não são discretos. Se não dizem nada, é porque diriam sempre a mesma história; daí a fama de discrição.
Não é virtude, é falta de novidade.
Ora, o que a mãe fez, quando eles entraram e fecharam a porta do quarto, foi pedir-lhe que ficasse cada um do lado da cama e lhe estendessem a destra. Juntou-as sem força e fechou-as nas suas mãos ardentes. Depois, com as voz expirante e os olhos acesos apenas de febre, pediu-lhes um favor grande e único. Eles iam chorando e calando, por ventura, adivinhando o favor.
        —Um favor derradeiro, insistiu ela.
        —Diga, mamãe.
        —Vocês vão ser amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo, se os não vir amigos neste. Peço pouco; a vossa vida custou-me muito, a criação também, e a minha esperança era vê-los grandes homens. Deus não quer, paciência. Eu é que quero saber que não deixo dous ingratos. Anda, Pedro, anda, Paulo, jurem que serão amigos.
Os moços choravam. Se não falavam, é porque a voz não lhes queria sair da garganta. Quando pôde, saiu trêmula, mas clara e forte:
        —Juro, mamãe!
        —Juro, mamãe!
        —Amigos para todo sempre?
        —Sim.
        —Não quero outras saudades. Estas somente, a amizade verdadeira, e que se não quebre nunca mais.
Natividade ainda conservou as mãos deles presas, sentiu-as trêmulas de comoção, e esteve calada alguns instantes.
        —Posso morrer tranquila.
        —Não, mamãe não morre, interromperam ambos.
Parece que a mãe quis sorrir a esta palavra de confiança, mas a boca não respondeu à intenção, antes fez um trejeito que assustou os filhos. Paulo correu a pedir socorro. Santos entrou desorientado no quarto, a tempo de ouvir à esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras. A agonia começou logo, e durou algumas horas. Contadas todas as horas de agonia que tem havido no mundo, quantos séculos farão? Desses terão sido tenebrosos alguns, outros melancólicos, muitos desesperados, raros enfadonhos. Enfim, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a pessoa ao pranto ou ao silêncio.

CXXI
Último
Castor e Pólux foram os nomes que um deputado pôs aos dous gêmeos, quando eles tornaram à Câmara, depois da missa do sétimo dia. Tal era a união que parecia aposta. Entravam juntos, andavam juntos, saíam juntos. Duas ou três vezes votaram juntos, com grande escândalo dos respectivos amigos políticos. Tinham sido eleitos para se baterem, e acabavam traindo os eleitores. Ouviram nomes duros, repreensões acerbas. Quiseram renunciar ao cargo; Pedro, entretanto, achou um meio conciliatório.
        —O nosso dever político é votar com os amigos, disse ele ao irmão. Votemos com eles. Mamãe só nos pediu concórdia pessoal. Na tribuna, sim, ninguém nos levará a atacar um ao outro; no debate e no voto podemos e devemos dissentir.
        —Apoiado; mas, se você um dia achar que deve vir para os meus arraiais, venha. Você nem eu hipotecamos o juízo.
        —Apoiado.
Pessoalmente, nem sempre havia este acordo. Os contrastes não eram raros, nem os ímpetos, mas a lembrança da mãe estava tão fresca, a morte tão próxima, que eles sopitavam qualquer movimento, por mais que lhes custasse, e viviam unidos. Na Câmara, o dissentimento político e a fusão pessoa cada vez os fazia mais admiráveis.
A Câmara terminou os seus trabalhos em dezembro. Quando tornou em maio seguinte, só Pedro lhe apareceu. Paulo tinha ido a Minas, uns diziam que a ver noiva, outros que a catar diamantes, mas parece que foi só a passeio. Pouco depois regressou, entrando na Câmara sozinho, ao contrário do ano anterior em que os dous irmãos subiam as escadas juntos, quase pegados. O olho dos amigos não tardou em descobrir que não viviam bem, pouco depois que se detestavam. Não faltou indiscreto que lhes perguntasse a um e a outro o que houvera no intervalo das duas sessões; nenhum respondia nada. O presidente da câmara, a conselho do líder, nomeou-os para a mesma comissão. Pedro e Paulo, cada um por sua vez, foram pedir-lhe que os dispensasse.
        —São outros, disse o presidente na sala do café.
        —Totalmente outros, confirmaram os deputados presentes.
Aires soube daquela conclusão no dia seguinte, por um deputado, seu amigo, que morava em uma das casas de pensão do Catete. Tinha ido almoçar com ele, e, em conversação, como o deputado soubesse das relações de Aires com os dous colegas, contou-lhe o ano anterior e o presente, a mudança radical e inexplicável. Contou também a opinião da Câmara.
Nada era novidade para o conselheiro, que assistira à ligação e desligação dos dous gêmeos. Enquanto o outro falava, ele ia remontando os tempos e a vida deles, recompondo as lutas os contrastes, a aversão recíproca, apenas disfarçada, apenas interrompida por algum motivo mais forte, mas persistente no sangue, como necessidade virtual. Não lhe esqueceram os pedidos da mãe, nem a ambição desta em os ver grandes homens.
        —O senhor que se dá com eles diga-me o que é que os fez mudar, concluiu o amigo.
        —Mudar? Não mudaram nada; são os mesmos.
        —Os mesmos?
        —Sim, são os mesmos.
        —Não é possível.
Tinham acabado o almoço. O deputado subiu ao quarto para se compor de todo. Aires foi esperá-lo à porta da rua. Quando o deputado desceu, vinha com um achado nos olhos.
        —Ora, espere, não será... Quem sabe se não será a herança da mãe que os mudou? Pode ter sido a herança, questões de inventário...
Aires sabia que não era a herança, mas não quis repetir que eles eram os mesmos, desde o útero. Preferiu aceitar a hipótese, para evitar debate, e saiu apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.

 FIM


Um comentário:

Unknown disse...

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Guilherme Nardes
8 ano 3