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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 16]

- É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada.
A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo. D. Josefa Dias, D. Maria da Assunção falavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, numa delícia inquisitorial de exterminação devota. Amélia e a Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre a roupa branca, as fitas e as calcinhas, à caça dos "objetos excomungados". E a S. Joaneira assistia, atônita e assustada, àquele alarido de auto-de-fé que atravessava bruscamente a sua pacata, refugiada ao pé do cônego, que depois de ter rosnado algumas palavras sobre "a Inquisição em casas particulares", se enterrara comodamente na poltrona.
- É para lhes fazer sentir que se não perde impunemente o respeito à batina, dizia Natário baixo a Amaro.
O pároco assentiu, com um gesto mudo de cabeça, contente daquelas cóleras beatas que eram como a afirmação ruidosa do amor que lhe tinham as senhoras.
Mas D. Josefa impacientava-se. Agarrara já o Panorama com as pontas do xale, para evitar o contágio, e gritava para dentro, para o quarto, onde continuava pelos gavetões uma rebusca furiosa:
- Então apareceu?
- Cá está, cá está!
Era a Gansoso que entrava triunfante com a cigarreira, a velha luva e o lenço de algodão.
E as senhoras, com alarido, arremeteram para a cozinha. A mesmas S. Joaneira as seguiu, como boa dona de casa, para fiscalizar a fogueira.
- Os três padres então, sós, olharam-se - e riram.
- As mulheres têm o diabo no corpo, disse o cônego filosoficamente.
- Não senhor, padre-mestre, não senhor, acudiu logo Natário fazendo-se sério. Eu rio, porque a coisa, assim vista, parece patusca. Mas o sentimento é bom. Para a verdadeira devoção ao sacerdócio, horror à impiedade... enfim o sentimento é excelente.

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 15]


E João Eduardo ia seguir para os lados da alameda - quando apareceram no terraço da igreja, da banda da sacristia, o padre Silvério e o padre Amaro, conversando, devagar.
Batia então um quarto na torre, e o padre Silvério parou a acertar o seu cebolão. Depois os dois padres observaram maliciosamente a janela da administração de vidraças abertas, onde se via, no escuro, o vulto do senhor administrador de binóculo cravado para a casa do Teles alfaiate. E desceram enfim a escadaria da Sé, rindo de ombro a ombro, divertidos com aquela paixão que escandalizava Leiria.
Foi então que o pároco viu João Eduardo que estacara no meio do largo. Parou para voltar à Sé decerto, evitar o encontro; mas viu o portão fechado, e ia seguir de olhos baixos, ao lado do bom Silvério que tirava tranquilamente a sua caixa de rapé, - quando João Eduardo, arremessando-se, sem uma palavra, atirou a toda a força um murro no ombro de Amaro.
O pároco, aturdido, ergueu frouxamente o guarda-chuva.
- Acudam! berrou logo o padre Silvério, recuando de braços no ar. Acudam!
Da porta da administração um homem correu, agarrou furiosamente o escrevente pela gola:
- Está preso! rugia. Está preso!
- Acudam, acudam! berrava Silvério a distância.
Janelas no largo abriam-se à pressa. A Amparo da botica, em saia branca, apareceu à varanda, espavorida; o Carlos precipitara-se do laboratório em chinelas; e o senhor administrador, debruçado na sacada, bracejava, com o binóculo na mão.
Enfim o escrivão da administração, o Domingos, compareceu, muito grave, de mangas de lustrina enfiadas; e com o cabo de polícia levou logo para a administração o escrevente, que não resistia, todo pálido...
O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor pároco para a botica; fez preparar, com estrépito, flor de laranja e éter; gritou pela esposa, para arranjar uma cama... Queria examinar o ombro de sua senhoria: haveria intumescência?

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro [parte 14]


Era-o com efeito; e o tipógrafo considerava-o com uma admiração crescente. Já não era o Pacatinho, o escrevente do Nunes, o chichisbéu da Rua da Misericórdia - era uma vítima das perseguições religiosas. Era a primeira que o tipógrafo via; e, apesar de não lhe aparecer na atitude tradicional das estampas de propaganda, amarrado a um poste de fogueira ou fugindo com a família espavorida a soldados que galopam da sombra do último plano, achava-o interessante. Invejava-lhe secretamente aquela honra social. Que chique que lhe daria a ele entre a rapaziada de Alcântara! Famosa pechincha, ser uma vítima da reação, sem perder o conforto das iscas do tio Osório e os salários inteiros ao sábado! - Mas sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o! Para se vingarem dum liberal, intrigarem-no, tirarem-lhe a noiva! - Oh, que canalha!... E esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e à Família, trovejou de alto contra o clero, que é quem sempre destrói essa instituição social, perfeita, de origem divina!
- Isso precisa uma vingança medonha, menino! É necessário arrasá-los! Uma vingança? João Eduardo desejava-a, vorazmente! Mas qual?
- Qual? Contar tudo no Distrito, num artigo tremendo!
João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho: dali por diante o Distrito estava fechado aos senhores livres-pensadores!
- Cavalgadura! rugiu o tipógrafo.
Mas tinha uma ideia, caramba! Publicar um folheto! Um folheto de vinte páginas, o que se chama no Brasil uma mofina, mas num estilo floreado (ele se encarregava disso), caindo sobre o clero com um desabamento de verdades mortais!
João Eduardo entusiasmou-se. E diante daquela simpatia ativa de Gustavo, vendo nele um irmão, soltou as últimas confidências, as mais dolorosas. O que havia no fundo da intriga era a paixão do padre Amaro pela pequena, e era para se apoderar dela que o escorraçava a ele... O inimigo, o malvado, o carrasco - era o pároco!

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 13]

Procurava assim à força convencer-se que "a culpa não era dela"; recordava os meses de felicidade antes da chegada do pároco; arranjava explicações naturais para aquelas maneirinhas ternas que ela outrora tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciúmes desesperados: era o desejo, coitada, de ser agradável ao hóspede, ao amigo do senhor cônego, de o reter para vantagem da mãe e da casa! E além disso, como ela andava contente depois de resolvido o casamento! A sua indignação contra o Comunicado, estava certo, não era natural dela - vinha-lhe soprada pelo pároco e belas beatas. E achava uma consolação nesta ideia que não era repelido como namorado, como marido - mas que era uma vítima das intrigas do torpe padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto acumulava-lhe na alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava ansiosamente uma vingança, atirando a imaginação, aqui e além - mas vinha-lhe sempre a mesma ideia, o artigo do jornal, a verrina, a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se tivesse por si um figurão!
Um homem do campo, amarelo como uma cidra, que ia caminhando devagar, com o braço ao peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor Gouveia.
- Na primeira rua, à esquerda, o portão verde ao pé do lampião, disse João Eduardo.
E uma esperança imensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouveia é que o podia salvar! O doutor era seu amigo; tratava-o por tu desde que o curara havia três anos da pneumonia; aprovava muito o seu casamento com Amélia; havia ainda semanas perguntara-lhe ao pé da Praça: - "Então, quando se faz essa rapariga feliz?" E que respeitado, que temido na Rua da Misericórdia! Era médico de todas as amigas da casa que, apesar de se escandalizarem com a sua irreligião, dependiam humildemente da sua ciência para os achaques, os flatos, os xaropes. Além disso, o doutor Gouveia, inimigo decidido da padraria, decerto se ia indignar com aquela intriga beata: e João Eduardo via-se já entrando na Rua da Misericórdia atrás do doutor Gouveia, que repreendia a S. Joaneira, arrasava o padre Amaro, convencia as velhas, - e a sua felicidade recomeçava, inabalável agora!

O Crime do Padre Amaro - [parte 12]

 Provarei, disse Amaro, tomando um ladrilho em que cravou os dentes com dignidade.
- É dos marmelos da D. Maria. Saiu-me melhor que a das Gansosinhos...
- Pois adeus, D. Josefa... Ah, é verdade, que diz o nosso cônego deste caso do escrevente?
- O mano?...
Neste momento a campainha embaixo repicou com furor.
- Há de ser ele, disse logo D. Josefa. E vem zangado!
Vinha, com efeito, da fazenda - furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos homens. Tinham-lhe roubado uma porção de cebolinho; e, abafado de cólera, aliviava-se repetindo com gozo o nome do Inimigo.
- Credo, mano, que até lhe fica mal! - exclamou D. Josefa tomada de escrúpulos.
- Ora, mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co'os diabos! e repito co'os diabos! Mas eu lá disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo!
- Há uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.
- Há uma falta de respeito por tudo! exclamou o cônego. Um cebolinho que dava saúde só olhar para ele! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu chamo um sacrilégio!... Um desaforado sacrilégio! - acrescentou com convicção; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho dum cônego, parecia-lhe um ato tão negro de impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da Sé.
- Falta de temor a Deus, falta de religião, observou D. Josefa.
- Qual falta de religião! replicou o cônego exasperado. Falta de cabos de polícia, é o que é! - E voltando-se para Amaro: - Hoje é o enterro da velha, hem? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!
O padre Amaro então, retomado pela sua preocupação:
- Estávamos cá a falar do caso do João Eduardo: o Comunicado!

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

AGENDE-SE


AGENDE-SE


AGENDE-SE


Simulado PROVA BRASIL - LÍNGUA PORTUGUESA 9º ANO

Texto I

Cinquenta camundongos, alguns dos quais clones, derrubaram os obstáculos técnicos à clonagem. Eles foram produzidos por dois cientistas da Universidade do Havaí num estudo considerado revolucionário pela revista britânica "Nature", uma das mais importantes do mundo. [...]

A notícia de que cientistas da Universidade do Havaí desenvolveram uma técnica eficiente de clonagem fez muitos pesquisadores temerem o uso do método para clonar seres humanos.

O Globo. Caderno Ciências e Vida, 23 jul. 1998, p.36


Texto II

Cientistas dos EUA anunciaram a clonagem de 50 ratos a partir de células de animais adultos, inclusive de alguns já clonados.  Seriam os primeiros clones de clones, segundo estudos publicados na edição de hoje da revista "Nature".

A técnica empregada na pesquisa teria um aproveitamento de embriões - da fertilização ao nascimento - três vezes maior que a técnica utilizada por pesquisadores britânicos para gerar a ovelha Dolly.

Folha de S. Paulo. 1º caderno - Mundo. 03 jul.1998, p.16

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Socorro, alguém pode me ajudar???

Desde hoje pela manhã  tem acontecido algo inusitado, não consigo postar nada aqui no blog. Pra vocês terem uma ideia estou digitando essa mensagem apenas com uma das mãos porque a outra está segurando o botão direito do mouse enquanto eu digito. Só desta é que consegui fazer esta postagem, pois se assim não for o cursor não aparece no campo destinado ao texto. Será que alguém aí pode me ajudar???

Abraços,
Rosilda

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Narradores de Javé


Hotel Ruanda


Reflexos e Reflexões - Paulinho Moska


Cinzas - Paulinho Moska


O Último Dia - Paulinho Moska


A Flor e o Espinho - Paulinho Moska


Felicidade - Paulinho Moska


domingo, 10 de novembro de 2013

A Seta e o Alvo - Paulinho Moska


Quantas vidas você tem - Paulinho Moska


A idade do céu - Paulinho Moska


Tudo Novo de Novo - Paulinho Moska


Seu Olhar - Paulinho Moska


Admiração - Paulinho Moska


Você Abusou - Vinícius de Moraes


O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 10]

- O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro amanuense, hem? Pois vou-lhe desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que é dos meus, homem de boas ideias, vai pô-lo fora do cartório... E que escreva então Comunicados!
Amaro teve horror àquela intriga rancorosa:
- Deus me perdoe, Natário, mas isso é perder o rapaz.
- Enquanto o não vir por essas ruas a pedir um bocado de pão, não o largo, padre Amaro, não o largo!
- Oh, Natário! oh, colega! isso é de pouca caridade... Isso não é de cristão... E então aqui que Deus está a ouvi-lo...
- Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, não é a resmungar Padre-Nossos. Para ímpios não há caridade! A Inquisição atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacá-los pela fome. Tudo é permitido a quem serve uma causa santa... Que se não metesse comigo!
Iam a sair; mas Natário deitou um olhar para o caixão do morto, e apontando com o guarda-chuva:
- Quem está ali?
- O Morais, disse Amaro.
- O gordo, picado das bexigas?
- Sim.
- Boa besta!
E depois de um silêncio:
- Foram os Ofícios do Morais... Eu nem dei por isso, ocupado cá na minha campanha... E a viúva fica rica. É generosa, é presenteadora... Quem a confessa é o Silvério, hem? Tem as melhores pechinchas de Leiria, aquele elefante!

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 10]

Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante dela deram-lhe o desejo de escrever ao padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o seu amor, com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com que aceitava por marido o outro?... Acusá-lo da sua cobardia, mostrar o seu desgosto - era humilhar-se! E apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silêncio, para sempre!... Separarem-se por quê? - pensou. Depois de casada podia bem ver o Sr, padre Amaro. E a mesma ideia voltava, sutilmente, mas numa forma tão honesta agora, que a não repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciência; haveria então entre eles uma troca deliciosa e constante de confidências, de doces admoestações; todos os sábados iria receber ao confessionário, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquilo seria casto, muito picante, e para a glória de Deus.
Sentiu-se quase satisfeita com a impressão, que não definia bem, duma existência em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos duma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E daí a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor pároco.
Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando à janela, falaram do casamento. Amélia não se queria separar da mãe, e, como a casa tinha acomodações, os noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor cônego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua de mel para a fazenda da D. Maria. E Amélia àquelas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãe que, de luneta na ponta do nariz, a admirava, babosa.

sábado, 9 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 9]


Mas a voz imperturbável do cônego retomara a leitura. Agora era o retrato dele, traçado com ódio:
"...Cônego bojudo e glutão, antigo caceteiro do Sr. D. Miguel, que foi expulso da freguesia de Ourém, outrora mestre de Moral num seminário e hoje mestre de imoralidade em Leiria..."
- Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
O cônego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
- Você pensa que me dá isto cuidado? disse ele. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a Deus! Deixar rosnar quem rosna!
- Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de brio!
- ora, mana! replicou o cônego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguém lhe pede a sua opinião!
- Nem preciso que ma peçam, gritou ela empertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!
- Então! então! disseram em roda, acalmando-a.
- Menos língua, mana, menos língua! disse o cônego fechando os seus óculos. Olhe, não lhe caiam os dentes postiços!
- Seu malcriado!
Ia falar, mas sufocou-se; e começou subitamente a soltar ais.
Recearam logo que lhe desse o flato; a S. Joaneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o quarto, embaixo, amparando-a, com palavras brandas:
- Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escândalo! Nossa Senhora te valha!
Amélia mandava buscar água de flor de laranja.

O Crime do Padre Amaro - Eça Queirós [parte 8]

Vinha depois a confissão de pecadinhos doces, um ato de contrição de amor, uma penitência terna:
Seis beijinhos de manhã,
De tarde um abraço só...
E pra acalmar doces chamas
Jejuar a pão-de-ló.
Aquela composição galante e devota fora muito apreciada na sociedade eclesiástica de Leiria. O senhor chantre pedira uma cópia, e perguntara, referindo-se ao poeta:
- Quem é o hábil Anacreonte?
E informado que era o escrevente da administração, falou dele com tanto apreço à esposa do senhor governador civil, que Artur obteve a gratificação de oito mil-réis, que havia anos implorava.
Àquelas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua última pilhéria era furtar beijos à Sra. D. Maria da Assunção; a velha escandalizava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revés um olhar guloso. Depois o Libaninho desaparecia um momento, e entrava com uma saia de Amélia vestida, uma touca da S. Joaneira, fingindo uma chama lúbrica por João Eduardo - que, entre as risadas agudas das velhas, recuava, muito escarlate. Brito e Natário vinham às vezes: formava-se então um grande quino. Amaro e Amélia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos colados, ambos vermelhos, permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.
Amaro saía sempre de casa da S. Joaneira mais apaixonado por Amélia. Ia pela rua devagar, ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe dava aquele amor - uns certos olhares dela, o arfar desejoso do seu peito, os contatos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque gostava de pensar nela, às escuras, atabafado nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas sucessivas que ela lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra flor, até que ficava como embriagado de orgulho: era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o a ele, a ele padre, o eterno excluído dos sonhos femininos, o ser melancólico e neutro que ronda como um ser suspeito à beira do sentimento! À sua paixão misturava-se então um reconhecimento por ela; e com as pálpebras cerradas murmurava:
- Tão boa, coitadinha, tão boa!
···

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 7]

Neste momento a S. Joaneira entrou, e logo da porta, abrindo os braços:
- Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o Sr. padre Natário: grande jantar! Conte lá, conte lá!
Amaro teve de dizer os pratos, as pilhérias do Libaninho, a discussão teológica; depois falaram da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer à S. Joaneira que ia deixar a casa, - o que era, coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dial
Na manhã seguinte o cônego foi a casa de Amaro, pela manhã, antes de ir ao coro. O pároco fazia a barba à janela:
- O1á, padre-mestre! Que há de novo?
- Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã... Há uma casita lá para os meus lados, que é um achado. Era do major Nunes, que vai mudado para o 5.
Aquela precipitação desagradou a Amaro: perguntou, dando desconsoladamente o fio à navalha:
- Tem mobília?
- Tem mobília, tem louças, tem roupas, tem tudo.
- Então...
- Então é entrar e começar a gozar. E aqui para nós, Amaro, você tem razão. Estive a pensar no caso... É melhor para você viver só. De modo que vista-se, e vamos ver a casita.
Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
A casa era na Rua das Sousas, de um andar, muito velha, com a madeira carunchosa: a mobília, como disse o cônego, "podia passar a veteranos"; algumas litografias desbotadas pendiam lugubremente de grandes pregos negros; e o imundo major Nunes deixara os vidros quebrados, os soalhos todos escarrados, as paredes riscadas de fósforos, e até sobre um poial da janela duas peúgas quase negras.

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 6]


Odiou-a então, e o seu vestido afogado e a sua honestidade! A estúpida, que não percebia que ao pé dela, sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciência! Desejou que ela fosse como a mãe, - ou pior, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia impudente, traçando a perna e fitando os homens, uma fêmea fácil como uma porta aberta...
- Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! - pensou, recaindo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!
Abafava. Abriu a janela. O céu estava tenebroso; a chuva cessara; o piar das corujas na Misericórdia cortava só o silêncio.
Enterneceu-se, então, com aquela escuridão, aquela mudez de vila adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu ser, o amor que sentira ao princípio por ela, muito puro, dum sentimentalismo devoto: via a sua linda cabeça, duma beleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ela num desfalecimento de adoração, como no culto a Maria e na Saudação Angélica; pediu-lhe perdão ansiosamente de a ter ofendido; disse-lhe alto: És uma santa, perdoa! - Foi um momento muito doce, de renunciamento carnal...
E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôs-se a pensar com saudade - que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amorável, delicado, dengueiro, sempre de joelhos, todo de adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! À ideia daquelas felicidades inacessíveis, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas. Amaldiçoou, num desespero, "a pega da marquesa que o fizera padre", e o bispo que o confirmara!

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 5]

VI

Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em comodidades, Amaro sentiu-se feliz. A S. Joaneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o "quarto do senhor pároco andava que nem um brinco"! Amélia tinha com ele uma familiaridade picante de parenta bonita: "tinham calhado um com o outro", como dissera, encantada, D. Maria da Assunção. Os dias iam assim passando para Amaro, fáceis, com boa mesa, colchões macios e a convivência meiga de mulheres. A estação ia tão linda que até as tílias floresceram no jardim do Paço: "quase milagre!", disse-se: o senhor chantre, contemplando-as todas as manhãs da janela do seu quarto, em robe-de-chambre, citava versos das Éclogas. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrela, dos desconsolos do seminário e do áspero Inverno na Gralheira - aquela vida em Leiria era para Amaro como uma casa seca e abrigada onde o alegre lume estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.
Ia cedo dizer a missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas de casimira, meias de lãs por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquela hora só algumas devotas, com o mantéu escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé dum altar envernizado de branco.
Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no lajedo, enquanto o sacristão, pachorrento, contava "as novidades do dia".
Depois, com o cálice na mão, de olhos baixos, passava à igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente diante do Santíssimo Sacramento, subia devagar ao altar onde duas velas de cera esmoreciam com uma claridade pálida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:
- Introibo ad altare Dei. 

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 4]

- Parece milagre! considerou a Sra. D. Maria da Assunção, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas começaram a agasalhar-se. Amélia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polca. João Eduardo aproximou-se dela, e baixando a voz:
- Muitos parabéns por ter quinado com o senhor pároco. Que entusiasmo! - E como ela ia responder: - Boa noite! disse ele secamente, embrulhando-se no seu xale-manta com despeito.
A Ruça alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo adeusinhos. O Sr. Artur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.
Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviário; mas distraia-se, lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes podres de Artur, sobretudo o perfil de Amélia. Sentado à beira da cama, com o Breviário aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da agulha, o seu buçozinho gracioso...
Sentia a cabeça pesada do jantar do cônego e da monotonia do quino, com uma grande sede além disso das lulas e do vinhito do Porto. Quis beber, mas não tinha água no quarto. Lembrou-se então que na sala de jantar havia uma bilha de Extremoz com água fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o castiçal, subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o reposteiro corrido; ergueu-o e recuou com um ah! Vira num relance Amélia, em saia branca a desfazer o atacador do colete; estava junto do candeeiro e as mangas curtas, o decote da camisa deixavam ver os seus braços brancos, o seio delicioso. Ela deu um pequeno grito, correu para o quarto.

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 3]

- Ai, nem diga isso! Que o padre Félix é uma pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset tem uma religião mais... - e com um gesto delicado procurava a palavra: - mais fina, mais distinta... Enfim, vive com outra gente. - E sorrindo para Amaro: - Pois não acha?
Amaro não conhecia o padre Félix, não se recordava do padre Liset.
- Já é velho o Sr. padre Liset, observou ao acaso.
- Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que entusiasmo!... Ai, é outra coisa! - E voltando-se para a senhora que estava junto do piano: - Pois não achas, Teresa?
- Já vou, respondeu Teresa, toda absorvida.
Amaro afirmou-se então nela. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura, uma linha de ombros e de seio magnífica; os cabelos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a palidez do rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Maria Antonieta; o seu vestido preto, de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom monótono das alvuras da sala; o colo, os braços estavam cobertos por uma gaze preta, que fazia aparecer através da brancura da carne; e sentia-se nas suas formas a firmeza dos mármores antigos, com o calor dum sangue rico.
Falava baixo, sorrindo, numa língua áspera que Amaro não compreendia, cerrando e abrindo o seu leque preto - e o rapaz louro, bonito, escutava-a retorcendo a ponta de um bigode fino, com um quadrado de vidro entalado no olho.
- Havia muita devoção na sua paróquia, Sr. Amaro? perguntava, no entanto, a condessa.
- Muita, muito boa gente.

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 2]

A marquesa de Alegros ficara viúva aos quarenta e três anos, e passava a maior parte do ano retirada na sua quinta de Carcavelos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capela em casa, um respeito devoto pelos padres de S. Luís, sempre preocupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do céu e nas preocupações da Moda, eram beatas e faziam o chique falando com igual fervor da humildade cristã e do último figurino de Bruxelas. Um jornalista de então dissera delas: - Pensam todos os dias na toalete com que hão-de entrar no Paraíso.
No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocráticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então ocupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguesia, bordavam frontais para os altares da igreja. De Maio a Outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e doces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de Verão.
A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesiástica. A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido: era já afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado ao pé das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas. A senhora marquesa não o quis mandar ao colégio porque receava a impiedade dos tempos, e as camaradagens imorais. O capelão da casa ensinava- lhe o latim, e a filha mais velha, a Sra. D. Luísa, que tinha um nariz de cavalete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francês e de geografia.
Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha-morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se à tarde acompanhava a senhora marquesa às alamedas da quinta, quando ela descia pelo braço do padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, mono, muito encolhido, torcendo com as mãos úmidas o forro das algibeiras, - vagamente assustado das espessuras de arvoredos e do vigor das relvas altas.

O Crime do Padre Amaro - Eça de Queirós [parte 1]

Prefácio da Segunda Edição

A designação inscrita no frontispício deste livro - Edição Definitiva - necessita uma explicação.
O Crime do Padre Amaro foi escrito há quatro ou cinco anos, e desde essa época esteve esquecido entre os meus papéis - como um esboço informe e pouco aproveitável.
Por circunstâncias que não são bastante interessantes para serem impressas - este esboço de romance, em que a ação, os caracteres e o estilo eram uma improvisação desleixada, foi publicado em 1875 nos primeiros fascículos da Revista Ocidental, sem alterações, sem correções, conservando toda a sua feição de esboço, e de um improviso
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Hoje O Crime do Padre Amaro aparece em volume - refundido e transformado. Deitou-se parte da velha casa abaixo para erguer a casa nova. Muitos capítulos foram reconstruídos linha por linha; capítulos novos acrescentados; a ação modificada e desenvolvida; os caracteres mais estudados, e completados; toda a obra enfim mais trabalhada.
Assim, O Crime do Padre Amaro da Revista Ocidental era um rascunho, a edição provisória; o que hoje se publica é a obra acabada, a edição definitiva .
Este trabalho novo conserva todavia - naturalmente - no estilo, no desenho dos personagens, em certos traços da ação e do diálogo, muitos dos defeitos do trabalho antigo: conserva vestígios consideráveis de certas preocupações de Escola e de Partido, - lamentáveis sob o ponto de vista da pura Arte - que tiveram outrora uma influência poderosa no plano original do livro. Mas como estes defeitos provêm da concepção mesma da obra, e do seu desenvolvimento lógico - não podiam ser eliminados, sem que o romance fosse totalmente refeito na ideia e na forma. Todo o mundo compreenderá que - correções, emendas, entrelinhas, folhas intercaladas não bastam para alterar absolutamente a concepção primitiva de um livro, e a sua primitiva execução.
Akenside Tewace -
5 de Julho de 1875.
EÇA DE QUEIRÓS

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Discurso do Método - René Descartes [parte final]

No entanto, o que mais me satisfazia nesse método era o fato de que, por
ele, tinha certeza de usar em tudo minha razão, se não à perfeição, ao menos o
melhor que eu pudesse; ademais, sentia, ao utilizá-lo, que meu espírito se
habituava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e
que, não o havendo sujeitado a nenhuma matéria em especial, prometia a mim
mesmo empregá-lo com a mesma utilidade a respeito das dificuldades das outras
ciências como o fizera com as da álgebra. Não que me atrevesse a empreender
primeiramente a análise de todas as que se me apresentassem, pois isso seria
contrário à ordem que ele prescreve. Porém, havendo percebido que os seus
princípios deviam ser todos tomados à filosofia, na qual até então não encontrava
sequer um que fosse correto, pensei que seria preciso, em princípio, tentar ali
estabelecê-los; e que, sendo isso a coisa mais importante do mundo, e em que a
pressa e a prevenção eram mais de recear, não devia pôr em execução sua realização
antes de atingir uma idade bem mais madura do que a dos 23 anos que eu
tinha naquela época e antes de ter gasto muito tempo em preparar-me para isso,
tanto extirpando de meu espírito todas as más opiniões que nele dera acolhida até
então, como reunindo numerosas experiências para servirem logo depois de matéria
aos meus processos racionais, e adestrando-me no método que me
preceituara, com o propósito de me fixar sempre mais nele.

DISCURSO DO MÉTODO - René Descartes [parte 1]

PRIMEIRA PARTE

INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso,
visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais
difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo
mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito;
mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir
entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou
razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de
nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que
outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e
não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o
mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores
vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar
podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que
aqueles que correm e dele se afastam.
Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito
do que os dos outros; com freqüência desejei ter o pensamento tão rápido, ou a
imaginação tão clara e diferente, ou a memória tão abrangente ou tão pronta,
quanto alguns outros. E desconheço quaisquer outras qualidades, afora as que
servem para o aperfeiçoamento do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso,
posto que é a única coisa que nos torna homens e nos diferencia dos animais,
acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinião geral
dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos senão entre os acidentes,
e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie.

Cândido - Voltaire [parte final]

23 de Out

Tem ele máximas de que um homem discreto pode tirar proveito e que, estando condensadas em
versos enérgicos, se gravam mais facilmente na memória. Mas pouco se me dá da sua viagem a Brindes,
e da sua descrição de um mau jantar, e da discussão de carregadores entre um tal Pupilus, cujas palavras,
diz ele, eram cheias de pus, e outro cujas palavras eram vinagre. Foi com repugnância que li seus
grosseiros versos contra velhas e feiticeiras; e não sei que mérito possa haver em dizer a seu amigo
Mecenas que, se for posto por este no rol dos poetas líricos, tocará os astros com a sua fronte sublime. Os
tolos admiram tudo em um autor estimado. Leio apenas para mim; só gosto do que está na minha medida.
Cândido, que fora educado de modo a nada julgar por conta própria, estava muito admirado do que
ouvia; e Martinho achava muito razoável o ponto de vista de Pococurante.
- Oh! eis aqui um Cícero - disse Cândido. - Quanto a esse grande homem, penso que Vossa
Excelência jamais se cansa de o ler.
- Nunca o leio - respondeu o veneziano. - Que me importa que ele haja pleiteado a favor de Rabirio ou
de Cluêncio? Bastam-me os processos que tenho de julgar. Dar-me-ia melhor com as suas obras
filosóficas; mas, quando vi que Cícero duvidava de tudo, cheguei à conclusão de que sabia tanto quanto
ele, e que não tinha necessidade de ninguém para ser ignorante.
- Ah! - exclamou Martinho. - Eis aqui oitenta volumes dos anais de uma academia de ciências; deve
haver nisso tudo alguma coisa de bom.
- Haveria - disse Pococurante - se um só dos autores dessa moxinifada tivesse inventado ao menos a
arte de fabricar alfinetes; mas em todos esses volumes não há mais que inócuos sistemas e nenhuma
coisa útil.
- Quantas peças de teatro vejo aqui! - disse Cândido, - em italiano, em espanhol, em francês!
- São três mil ao todo - disse o senador, - mas não há três dúzias que prestem. Quanto a essas
coletâneas de sermões, que não valem em conjunto uma página de Sêneca, e todos esses grossos volumes
de teologia, bem compreende o senhor que não os abro nunca, nem eu nem ninguém.
Martinho divisou prateleiras cheias de livros ingleses.
- Creio - disse ele. - que um republicano deve comprazer-se na leitura dessas obras escritas com tanta
liberdade.

Cândido - Voltaire [parte 6]


E a bela, tendo percebido dois enormes diamantes nos dedos do seu jovem estrangeiro, pôs-se a
elogiá-los com uma boa fé tão natural que insensivelmente eles passaram dos dedos de Cândido para os
dedos da marquesa.
Cândido, ao voltar com o seu padre, sentiu remorsos de haver cometido uma infidelidade para com a
senhorita Cunegundes; o padre compartilhou das suas penas; só lhe cabia uma pequena parte das
cinqüenta mil libras perdidas ao jogo por Cândido e do valor dos brilhantes meio dados, meio
extorquidos, o seu intuito era aproveitar-se, o mais possível, das vantagens que lhe poderiam trazer as
suas relações com Cândido. Falou-lhe muito de Cunegundes; e Cândido lhe disse que pediria perdão a
ela da sua infidelidade, quando a encontrasse em Veneza.
O padre redobrava de polidez e atenções, e tomava um carinhoso interesse por tudo o que Cândido
dizia, por tudo o que ele fazia, por tudo o que queria fazer.
- Com que então têm os dois um encontro em Veneza?
- Sim, senhor padre: é preciso absolutamente que eu me vá encontrar com a senhorita Cunegundes.
Então, dominado pelo prazer de falar do que amava, contou, segundo o seu costume, uma parte das
aventuras que tivera com essa ilustre vestfaliana.
Suponho - disse o padre - que a senhorita Cunegundes tem muito espírito e deve escrever cartas
encantadoras...
- Nunca recebi nenhuma carta da sua parte - confessou Cândido. - Pois imagine que, tendo sido
expulso do castelo por causa dela, não me foi possível escrever-lhe; depois soube que ela morrera, em
seguida a encontrei, e perdi-a de novo, e ultimamente lhe enviei um próprio a duas mil e quinhentas
léguas daqui, e estou esperando alguma resposta.
O padre ouvia atentamente, e parecia um pouco pensativo. Logo se despediu dos dois estrangeiros,
depois de os abraçar com todo o carinho.
No dia seguinte, ao despertar, Cândido recebeu uma carta concebida nos seguintes termos:
Meu querido, já faz oito dias que estou enferma nesta cidade, e acabo de saber que aqui também te
achas. Voaria logo para os teus braços, se pudesse mover-me. Soube da tua passagem em Bordéus; ah
deixei o fiel Cacambo e a velha, que devem em seguida vir a meu encontro. O governador de Buenos
Aires tudo me tomou, mas ainda me resta o teu coração. Vem, a tua presença me devolverá a vida, ou me
fará morrer de alegria.

Cândido - Voltaire [parte 5]


A sessão durou até as quatro da madrugada. Cândido, escutando todas aquelas aventuras, lembrava-se
do que lhe dissera a velha na viagem para Buenos Aires, e da aposta que fizera, de que não havia
ninguém a bordo a quem não houvessem acontecido as maiores desgraças. "Esse Pangloss - pensava ele -
deveria ficar muito embaraçado para demonstrar o seu sistema. Queria que ele estivesse aqui.
Certamente, se tudo vai bem, é no Eldorado, e não no resto da terra". Decidiu-se afinal per um pobre
sábio que trabalhara dez anos para os livreiros de Amsterdã. Julgou que não havia ofício no mundo de
que se pudesse ficar mais desgostado.
O referido sábio, que era aliás um excelente homem, for a roubado pela mulher, batido pelo filho e
abandonado pela filha, que se fizera raptar por um português. Acabava de ser privado de um modesto
emprego de que vivia, e os pregadores de Surinam o perseguiam porque o tomavam por sociniano.
Cumpre confessar que os outros eram pelo menos tão infelizes quanto ele; mas Cândido esperava que o
sábio o distraísse durante a viagem. Os rivais acharam que Cândido lhes fazia uma grande injustiça, mas
este os sossegou, dando cem piastras a cada um.

CAPÍTULO XX
Do que aconteceu a Cândido e Martinho durante a viagem.
O velho sábio, que se chamava Martinho, embarcou pois para Bordéus em companhia de Cândido.
Um e outro já tinham muito visto e sofrido; e, mesmo que o navio zarpasse de Surinam para o Japão,
pelo cabo da Boa Esperança, teriam eles com que discorrer sobre o mal moral e o mal físico durante toda
a viagem.
Cândido, no entanto, levava grande vantagem sobre Martinho: esperava rever a senhorita
Cunegundes, e Martinho não esperava coisa alguma; de mais a mais, possuía ouro e diamantes; e,
embora houvesse perdido cem grandes carneiros vermelhos carregados dos maiores tesouros da terra,
embora continuasse a doer-lhe a velhacaria do capitão holandês, quando pensava no que lhe restava nos
bolsos, e quando falava de Cunegundes, sobretudo ao fim do jantar, sentia-se então inclinado para o
sistema de Pangloss.
- Mas e o senhor - perguntou ele a Martinho, - que pensa de tudo isso? Qual é a sua idéia sobre o mal
moral e o mal físico?

Cândidio - Voltaire [parte 4]

- Ah! - disse Cândido, - lembro-me de ter ouvido a Pangloss que outrora aconteciam tais acidentes, e
que tal mescla produzira egipãs, faunos, sátiros; que várias personagens da antiguidade os haviam visto;
mas eu tomava tudo isso por fábulas.
- Agora deve estar convencido de que é verdade - disse Cacambo, - e bem vê como se comportam
nesse ponto as pessoas que não receberam certa educação. O que eu temo é que essas damas nos metam
em maus lençóis.
Essas reflexões induziram Cândido a deixar o prado e meter-se no bosque, onde jantaram. E, depois
de terem amaldiçoado o inquisidor de Portugal, o governador de Buenos Aires e o barão, adormeceram
sobre a relva. Ao despertar, sentiram que não podiam mover-se; era que, durante a noite, os orelhões,
habitantes da região, a quem as duas damas os denunciaram, os haviam amarrado com cipós. Estavam
cercados de uns cinqüenta orelhões nus, armados de flechas, maças e machados de pedra. Uns punham
ao fogo uma grande caldeira; outros preparavam espetos. E todos gritavam:
- É um jesuíta, é um jesuíta! Estamos vingados! Agora sim! Vamos comer jesuíta! Vamos comer
jesuíta!
- Bem que eu lhe dizia, patrão - exclamou tristemente Cacambo, - que aquelas duas nos iam pregar
uma boa!
Cândido, atentando na caldeira e nos espetos, lamentou-se:
Com toda a certeza vamos ser assados ou fervidos. Ah! o que não diria Mestre Pangloss, se visse
como é a pura natureza! Tudo está bem; seja, mas confesso que é muito cruel perder a senhorita
Cunegundes e ser assado ao espeto pelos orelhões.
Cacambo, esse, nunca perdia a cabeça.
- Não desespere de nada - disse ele ao desolado Cândido. - Entendo um pouco o jargão dessa gente;
vou falar-lhes.
- Não te esqueças - recomendou Cândido - de lhes significar o quanto é desumano cozinhar pessoas, e
como esse procedimento é pouco cristão.

Cândido - Voltaire [parte 3]

Soube que os reverendos cavaleiros de Malta nunca deixam de o fazer quando aprisionam turcos e turcas;
é uma lei do direito das gentes, que jamais foi infringida. Não direi o quanto é duro para uma jovem
princesa ser 235 conduzida como escrava a Marrocos, juntamente com sua mãe. Imaginem o que não
sofremos no navio corsário! Minha mãe era ainda muito bonita; e nossas aias, nossas simples criadas,
tinham mais encantos do que se poderiam encontrar por toda a África. Quanto a mim, era encantadora,
era a beleza, a graça em pessoa, e era virgem; não o fui por muito tempo: essa flor que eu reservara para
o belo príncipe de Massa-Carrara me foi arrebatada pelo capitão corsário; era um negro abominável que
ainda por cima estava crente de que me fazia uma grande honra. A senhora princesa de Palestrina e eu
tínhamos de ser mesmo muito fortes para resistir a tudo o que experimentamos até a nossa chegada a
Marrocos. Mas passemos adiante; são coisas comuns, em que não vale a pena insistir.
Marrocos nadava em sangue quando ali chegamos. Os cinqüenta filhos do imperador Muley-Ismael
tinham cada um o seu partido: o que constituía de fato cinqüenta guerras civis, de negro. contra negro, de
negros contra trigueiro, de trigueiros contra trigueiros, de mulatos contra mulatos. Era uma carnagem
contínua em toda a extensão do Império.
Apenas desembarcamos, os negros de uma facção contrária à do nosso corsário vieram arrebatar-lhe a
presa. Depois dos diamantes e do ouro, éramos nós o que ele tinha de mais precioso. Fui testemunha de
um combate como não se vê igual em climas europeus, Os povos setentrionais não têm sangue bastante
ardente. Não tem esse furor pelas mulheres que se vê na África. Parece que o. europeus têm leite nas
veias; pois é vitríolo, é fogo que corre nas veias dos habitantes do monte Atlas e dos países vizinhos.
Combateram com a sanha dos leões, dos tigres e das serpentes da região para ver quem nos possuiria.
Um mouro agarrou minha mãe pelo braço direito, um lugar-tenente de meu capitão segurou-a pelo
esquerdo; um soldado mouro pegou-a por uma perna, um dos nossos piratas pela outra. Em um instante,
quase todas as nossas mulheres se viram assim puxadas por quatro soldados. Meu capitão me conservava
oculta atrás de si. Empunhava. a cimitarra e matava quem quer que se lhe opusesse. Vi afinal todas as
nossas italianas e a minha mãe despedaçadas, retalhadas, massacradas pelos monstros que as disputavam.
Os meus companheiros cativos, os que os haviam aprisionado, soldados, marinheiros, negros, trigueiros,
brancos, mulatos, e o meu capitão, foi tudo assassinado, e eu ali fiquei, agonizante, sobre um montão de
cadáveres. Cenas tais ocorriam numa extensão de trezentas léguas, sem que ninguém faltasse às cinco
preces diárias ordenadas por Maomé. 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Cândido - Voltaire [parte 2]

Alguns estilhaços de pedra haviam ferido Cândido, que se achava estendido no meio da rua e coberto
de destroços.
- Ai! - dizia ele a Pangloss, consegue-me um pouco de vinho e de óleo, que estou morrendo.
- Este terremoto não é novidade nenhuma - respondeu Pangloss. - A cidade de Lima experimentou os
mesmos tremores de terra no ano passado; iguais causas, iguais efeitos: há com certeza uma corrente
subterrânea de enxofre, desde Lima até Lisboa.
- Nada mais provável - respondeu Cândido, - mas, por amor de Deus, arranja-me óleo e vinho.
- Como, provável? - replicou. - Sustento que é a coisa mais demonstrada que existe.
Cândido perdeu os sentidos, e Pangloss trouxe-lhe um pouco de água de uma fonte vizinha.
No dia seguinte, havendo encontrado alguma provisão de boca em meio aos escombros, repararam um
pouco as forças. Em seguida puseram-se a trabalhar como os outros para auxiliar os habitantes escapados
à morte. Alguns cidadãos por eles socorridos deram-lhes o melhor almoço que poderiam encontrar em
tais circunstâncias. Verdade que a refeição era triste; os convivas regavam o pão com lágrimas. Mas
Pangloss consolou-os, assegurando-lhes que as coisas não poderiam ser de outra maneira: "Pois tudo isto
- dizia ele - é o que há de melhor. Pois, se há um vulcão em Lisboa, não poderia estar noutra parte. Pois é
impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem".
Um homenzinho de preto, familiar da Inquisição, que se achava a seu lado, tomou polidamente a
palavra e disse:
- Pelo visto, o senhor não crê no pecado original; pois, se tudo está o melhor possível, não houve nem
queda, nem castigo.
- Peço humildemente perdão a Vossa Excelência - disse Pangloss ainda mais polidamente, - pois a
queda do homem e a maldição entravam necessariamente no melhor dos mundos possíveis.
- O senhor não crê então na liberdade? - perguntou o familiar.
- Vossa Excelência me desculpará - disse Pangloss; - a liberdade pode subsistir com a necessidade
absoluta; pois era necessário que fôssemos livres, porque enfim a liberdade determinada...
Pangloss estava no meio da frase, quando o familiar fez um sinal de cabeça para o seu lacaio, que lhe
servia vinho do Porto.

Cândido - Voltaire [PARTE 1]


CAPÍTULO I

De como foi Cândido criado em um lindo castelo, e como dali o escorraçaram
Havia em Vestfália, no castelo do senhor barão de Thunder-ten-tronckh, um jovem a quem a natureza
dotara da índole mais suave. Sua fisionomia lhe anunciava a alma. Era reto de juízo e simples de espírito,
razão pela qual, creio eu, o chamavam de Cândido. Suspeitavam os velhos criados que fosse filho da
irmã do senhor barão e de um bom e honrado gentil-homem da vizinhança, com quem esta jamais
consentira em casar-se, porque ele só pudera alegar setenta e uma gerações, havendo as injúrias do tempo
destruído o resto da sua arvore genealógica.
Era o senhor barão um dos mais poderosos senhores de Vestfália. Sua sala de honra ostentava, até,
uma tapeçaria. Todos os seus cães, reunidos, formavam, em caso de precisão, uma boa matilha; o vigário
da aldeia era o seu esmoler-mor. Tratavam-no todos por Monsenhor e riam quando ele contava histórias.
A senhora baronesa, que pesava cerca de trezentas e cinqüenta libras, granjeava com isso enorme
consideração, e fazia as honras da casa com uma dignidade que a tornava ainda mais respeitável. Sua
filha Cunegundes, que contava dezessete anos, era corada, fresca, rechonchuda, apetitosa. O filho do
barão parecia em tudo digno do pai. o preceptor Pangloss era o oráculo da casa, e o pequeno Cândido
escutava as suas lições com toda a boa fé da sua idade e do seu caráter.
Pangloss ensinava metafísico - teólogo - cosmolonigologia. Provava admiravelmente que não há
efeito sem causa e que, neste que é o melhor possível dos mundos, o castelo do senhor barão era o mais
belo possível dos castelos e a senhora a melhor das baronesas possíveis.
Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra maneira: pois, como tudo foi feito
para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim. Queiram notar que os narizes foram
feitos para usar óculos, e por isso nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para as
calças, e por isso temos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas e edificar castelos, e por isso
Monsenhor tem um lindo castelo; o mais considerável barão da província deve ser o mais bem alojado; e,
como os porcos foram feitos para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro: por conseguinte,
aqueles que asseveravam que tudo está bem disseram uma tolice; deviam era dizer que tudo está o
melhor possível. 

Auto da Barca do Inferno - Gil Vicente [ parte final]


DIABO Quero-te desenganar:
se o que disse tomaras,
certo é que te salvaras.
Não o quiseste tomar...
- Alto! Todos a tirar,
que está em seco o batel!
- Saí vós, Frei Babriel!
Ajudai ali a botar!
Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrecentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assi cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:
CAVALEIROS À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória , por Deus, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais, 

Auto da Barca do Inferno - Gil Vicente [parte 4]


Levai o cabrão na trela!
Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:
CORREGEDOR Hou da barca!
DIABO Que quereis?
CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?
DIABO Oh amador de perdiz.
gentil cárrega trazeis!
CORREGEDOR No meu ar conhecereis
que não é ela do meu jeito.
DIABO Como vai lá o direito?
CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.
DIABO Ora, pois, entrai. Veremos
que diz i nesse papel...
CORREGEDOR E onde vai o batel?
DIABO No Inferno vos poeremos.
CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há-de ir um corregedor?
DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!
Ora, entrai, pois que viestes! 

Auto da Barca do Inferno - Gil Vicente [parte 3]

Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assi Deus me dê saúde,
que eu estou maravilhado!
DIABO Não curês de mais detença.
Embarcai e partiremos:
tomareis um par de ramos.
FRADE Nom ficou isso n'avença.
DIABO Pois dada está já a sentença!

FRADE Pardeus! Essa seria ela!
Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.
Como? Por ser namorado
e folgar com üa mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?!...
DIABO Ora estás bem aviado!
FRADE Mais estás bem corregido!
DIABO Dovoto padre marido,
haveis de ser cá pingado... 

Auto da Barca do Inferno - Gil Vicente [parte 2]


ONZENEIRO Havemos logo de partir?
DIABO Não cures de mais linguagem.
ONZENEIRO Mas pera onde é a passagem?
DIABO Pera a infernal comarca.
ONZENEIRO Dix! Nom vou eu tal barca.
Estoutra tem avantagem.
Vai-se à barca do Anjo, e diz:
Hou da barca! Houlá! Hou!
Haveis logo de partir?
ANJO E onde queres tu ir?
ONZENEIRO Eu pera o Paraíso vou.
ANJO Pois cant'eu mui fora estou
de te levar para lá.
Essoutra te levará;
vai pera quem te enganou!
ONZENEIRO Porquê?
ANJO Porque esse bolsão
tomará todo o navio.
ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio! 

AUTO DA BARCA DO INFERNO - Gil Vicente [parte 1]


Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome. 
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.
O primeiro intrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha.
DIABO À barca, à barca, houlá!
que temos gentil maré!
- Ora venha o carro a ré!
COMPANHEIRO Feito, feito!
Bem está!
Vai tu muitieramá,
e atesa aquele palanco
e despeja aquele banco,
pera a gente que virá.
À barca, à barca, hu-u!
Asinha, que se quer ir! 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte final]


Os outros fitaram-no, espantados.
- Você quer dizer que o fez propositadamente? - perguntou Bernard.
- É assim que os índios se purificam sempre. - Sentou-se e, suspirando, passou a mão pela testa. - Vou
repousar uns minutos - disse. - Estou um pouco fatigado.
- Está bem, não me admira - volveu Helmholtz. E, depois de um silêncio, continuou: - Viemos dizerlhe
adeus. Partimos amanhã de manhã.
- Sim, partimos amanhã de manhã - confirmou Bernard, em cujo rosto o Selvagem descobriu uma
expressão nova de determinação resignada. - E, a propósito, john - continuou,
inclinando-se para diante na cadeira e pousando uma mão no joelho do Selvagem , quero dizerlhe,
quanto lamento tudo o que se passou ontem. - Corou. - Como estou envergonhado - acrescentou em
voz incerta -, quanto, na verdade ...
O Selvagem interrompeu-o bruscamente e, pegando-lhe na mão, apertou-lha afectuosamente.
- Helmholtz foi extraordinariamente gentil para mim - continuou Bernard depois de uma certa pausa. -
Sem ele, teria...
- Vamos, vamos - protestou Helmholtz. Estabeleceu-se um silêncio. Apesar da sua tristeza, ou, até,
devido a ela, porque a tristeza era o sintoma de afeição que os ligava uns aos outros, os três jovens
sentiam-se felizes.
- Fui visitar o Administrador esta manhã - disse por fim o Selvagem.
- Para quê?
- Para lhe perguntar se podia ir para a ilha com vocês.
- E que disse ele? - perguntou avidamente Helmholtz.
O Selvagem abanou a cabeça.
- Não me deu autorização.
- Porque não?

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte final]

E assim os outros. Chegam, aturdem nos primeiros minutos, depois dão algumas horas de palestra, bebem dois goles de chá, e adeus.
Portanto, não tenho assunto. Não hei de, à falta dele, meter-me a encarecer alguma ação bonita. As boas ações têm o preço na consciência dos que as praticam; elogiá-las muito é ofender a modéstia dos autores. Lá uma ou outra palavrinha doce, -não muito doce. - um aperto de mão, e, se houver copo d'água, um bom par de queixos, sim, senhor, é comigo. Querer, porém, que eu. além do trabalho de digerir o jantar de um homem, venha cá para fora dizer que ele e virtuoso, não é comigo, é aqui com o meu vizinho. Nesse caso preferia roer num duro escândalo, a papar o melhor guisado deste mundo.
São gostos. É como o Cristo de Bernardelli. Com franqueza. acho que estão fazendo barulho demais. Já se fala em dar a mão ao rapaz, já ele é um bom talento, já tem grande futuro. e outras coisas desse jaez, como se todos não fôssemos filhos de Deus, e se Deus para fazer escultor a um homem, precisasse saber primeiro se ele se chama Bernardelli.
Também eu gosto de mármore. Tenho cá em casa uma pia de lavar as mãos, que é de mármore: não é tão bonito como o do Cristo. mas não é feio. O que há, é que o uso já o tem estragado bastante. Custou-me oitenta mil-réis, tudo; oitenta ou cem, tenho as contas guardadas.
Afinal, vão ver que tudo isso são balelas de estudantes. Eu, que lá fui à academia duas vezes (a segunda foi para falar a um empregado que me deve quinze-mil-réis) vi sempre estudantes que entravam. com os seus livros debaixo do braço, e ficavam pasmados diante do grupo. Não os censuro, por isso; são rapazes. Também eu fui rapaz: também gostei de bonecos.

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 11]

12 de Out
Pode-se, é verdade, ler os jornais à noite, e assim matar o tempo. Mas como deixar resfriar noticias importantes? Vá que o façamos nos dias em que eles, para acudir aos cochilos da agência Havas, transcrevem da Nación, de Buenos Aires, notícias telegráficas da vida política e internacional do mundo; mas como fazê-lo, quando, ainda há dias, a mesma agência nos comunicou este caso grave: "Adelina Patti ganhou o processo de divórcio contra o seu marido, o Marquês de Caux".
Façam-me o favor de dizer com que cara ficaria um homem que se respeita, andando pela rua, e ouvindo perguntar a todos se sabiam do grande sucesso, do sucesso indescritível e incomensurável, o sucesso dos sucessos: Adelina e Caux estão judicialmente separados. - Não me diga isto!- É o que lhe digo: estão separados.
Tudo isto me levou a propor um divertimento barato para as famílias honestas e econômicas, um jogo de prendas. Não se riam: o jogo de prendas já foi o nosso teatro lírico.
Joga-se com qualquer número de pessoas, mas nunca menos de dez. Podem ser vinte, trinta, quarenta, e quanto mais melhor. Cada pessoa escolhe um personagem. Um é o vigário, outro o sacristão, outro o sineiro, outro o moleque do vigário, outro o coadjutor, outro o barbeiro, e etc. Chama-se o roubo do consulado. Joga-se completamente às escuras.
O diretor do jogo coloca-se no meio da sala e conta que, tendo desaparecido as sobrepelizes da igreja, é provável que estejam na casa da costureira do vigário. Acode a costureira:
- Mentes tu!
-Onde estavas tu?
- Estava em casa do sineiro.
Acode o sineiro:
- Mentes tu!
- Onde estavas tu?
- Em casa do sacristão.

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 10]

9 de Out
Trago isto à colação, como dizia o outro, para perguntar ao leitor como é que procederia, se tivesse de julgar este homem. Ele é verdade que ia vender as reses envenenadas, que receberia por elas um cobrindo, compraria um burro, talvez dois, talvez três burros, viria à corte, ao teatro, para rir um pouco, mas é certo que não as ia vender em Sorocaba. Une nuance, quoi! Ia vendê-las alhures, na Limeira, em S. José dos Campos, longe dos olhos, longe do coração. Se há uma virtude universal e outra nacional, por que não há de haver uma virtude municipal? Verdade em Sorocaba, erro na Limeira. Para os ventres da Limeira, Custódio é execrando; para os de Sorocaba, é angélico, verdadeiro Custódio, Custódio sem mais nada.
Cristo Júnior não fez a mesma coisa, mas não é menos sutil o problema que oferece, nem menos nobre o seu impulso. Não se trata de um martírio, como se pode crer pelo nome; não morreu nem morrerá na cruz. Entretanto, o nome de Cristo Júnior parece estar aqui para distingui-lo do outro Cristo, que é o Xênio. Chamamos-lhe simplesmente Júnior.
Júnior parece que falsificava uns bilhetes de loteria, e entrou a vendê-los. Aparentemente, é um crime; mas se atentarmos bem, veremos que é, pelo menos, meia virtude.
Convém notar que Júnior pode ter cedido a uma tal ou qual comichão interior. Santo Antônio teve igual prurido, e resistiu, donde lhe veio a canonização; Júnior não resistiu. Comendo-lhe o caráter, não pôde deixar de meter-lhe as unhas e coçá-lo até fartar a epiderme. Em termos lisos, Júnior teve cócegas de falsificar alguma coisa neste mundo, fosse o que fosse, à escolha, virtude ou vício; e escolheu o vício.
Podia imitar uma nota de duzentos mil-réis (bela e rara virtude!) mas preferiu os dez tostões da loteria, e fez uma imitação tão perfeita, que ia dando com os burros (do vizinho) n'água. O pior que podia acontecer à gente, era ficar com os bilhetes brancos na mão mas nem seria a primeira vez nem a última.

Balas de Estalo - Machado de Assis [arte 9]

6 de Out
Na imaginação:
- Foi o Imperador que disse ao Ministro da Justiça, em despacho: "Sr. Lafayette, não esqueça o Faro".
- Que Faro? - O Faro de Sergipe. - Cá está o decreto; digne-se Vossa Majestade de assiná-lo. E o Imperador, assinando o decreto, ia dizendo ao ministro: - Posso afirmar-lhe, Sr. Lafayette, que tenho as melhores notícias deste Faro. Também eu, acudiu o Ministro da Justiça. - Todos nós, disseram os outros. E foi um coro de elogios: cada qual notava o teu zelo, retidão e clareza de espírito, temperança dos costumes, afabilidade das maneiras, sintaxe, penteado, filosofia, etc., etc.
Tudo isso desaparece com a revelação do Sr. Prado Pimentel. Não desaparece para esse somente, mas para todos os agraciados, que vão perder os aplausos da consciência e as visões da imaginação; passaram a ser agraciados de um amigo, de um compadre, de um colega, que vem à corte e escreve no rol de lembranças: "arranjar para o Chico Boticário uma comenda". Lá se vai toda a teoria das graças do Estado. Não, o Dr. Prado Pimentel não podia desvendar o segredo profissional .
A segunda causa do meu atormento foi a notícia que li, nuns versos publicados em honra de Vítor Hugo, versos cheios de sentimento e vigor, entre os quais estes dois que me estromparam:
Com suas filhas e netos,
Levou a cruz ao Calvário
Como se vê, foi um suplício de família; mas, ainda sendo de família, todos os suplícios são lamentáveis. E aqui a consternação foi imensa. Ver aquele grande homem, ladeado de duas moças e duas crianças, Calvário acima, para lá pôr uma cruz, é ainda mais doloroso; que estupendo. E para que levaria lá aquela cruz, se não tinha de; morrer nela eis aí o que me pareceu requinte da malvadez A compensação única de levar uma cruz ao Calvário é morrer nela. Deram ao pobre velho um suplício, além de coletivo, gratuito.

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 8]

O remédio é este:
Li há dias, anteontem, que a assembléia provincial da Bahia foi adiada por falta de subsídio. Assim temos que na Bahia há deputados sem subsídio, e em Sergipe subsídio sem deputados. O remédio é transferir o subsídio de Sergipe para os deputados da Bahia, e os deputados do referido Sergipe para quando se anunciar. No atual estado, nem Sergipe nem Bahia têm leis, por falta de uma ou de outra coisa; mas, com o meio que lembro, uma das duas províncias ganha a legislatura. Dir-me-ão que Sergipe não ganha nada. Perdão, e a experiência?

[l0 maio]
AMANHÃ é um grande dia! exclamou o meu amigo, faiscando-lhe os olhos de contentamento.
Não posso dizer o nome dele; suponhamo-lo Calisto. Amanhã é um grande dia para ele, porque é o da apresentação do ministério às câmaras, fato que na vida do meu amigo equivale a um batizado de criança na vida de todos os pais. Vão entendê-lo em poucas linhas.
Calisto só adora uma coisa, mais do que as crises ministeriais, é a apresentação dos ministérios novos às câmaras. Moção anunciada pode contar com ele. E gosta das crises compridas, atrapalhadas, arrastadas, cheias de esperanças longas e boatos infinitos. Mas tão depressa se organiza o ministério, como lhe cai a alma aos pés. O que o consola então, e muito, é a ideia da apresentação; nem mais nem menos o que lhe acontece desde o dia 4.

sábado, 2 de novembro de 2013

Estética da criação verbal - Mikail Bakhtin [Esquema]

Gêneros – Algumas Acepções
  • Bakhtin pensava a linguagem enquanto atividade humana, podendo aparecer nas diferentes esferas de circulação;
  • Considerava o momento em que foi criado o gênero, bem como os elementos que o formam;
  • Cada tipo de texto, verbal ou não verbal, possui características, forma e materialidade = mais ou menos flexíveis – os menos flexíveis são mais rigorosos na sua estrutura = acadêmicos;
  • Reconhece-se um gênero por sua função social;

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

OS GÊNEROS DO DISCURSO – MIKAIL BAKHTIN

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Problemática e definição

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que seja, estão sempre relacionadas com a utilização da  língua.  Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana. [279]

O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo  verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional... (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação... cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis  de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. [279]

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 7]

A segunda foi esta: "O padre, em geral, (disse o Sr. vigário Santos) procura as melhores freguesias, nas quais possa subsistir sem o grande ônus de cura d'almas."
Desta vez caí no chão. Ao levantar-me, reli o trecho, era aquilo mesmo, sem perífrase. A perífrase é um grande tempero para essas drogas amargas. Se eu chamar tratante a um homem, ele investe para mim, mas se eu Lhe disser que o seu procedimento não é adequado aos princípios corretos e sãos que Deus pôs na consciência humana para o seguro caminho de uma vida rigorosamente moral-quando o meu ouvinte houver desembrulhado o pacote, já eu voltei à esquina. Foi o que o Sr. vigário Santos não fez, e podia fazê-lo.
Que o padre, em geral, procure as melhores freguesias, em que possa subsistir, vá; nem todos hão de ser uns S. Paulos, nem os tempos comportam a mesma vida. Mas o que me fez cismar, foi este acréscimo: "sem o grande ônus de cura d'almas". Isto, se bem entendo, quer dizer ganhar muito sem nenhum trabalho. Mas, vigário meu é justamente o emprego que eu procuro, e não acho, há uns vinte e cinco anos, pelo menos. Não cheguei a pôr anúncios, porque acho feio; mas falo a todos os amigos e conhecidos, obtenho cartas de recomendação, palavras doces, e mais nada. Se tiver notícia de algum escreva-me pelo correio, caixa n. 1712.

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 6]

Bem; adiemos a instrução primária para tempos melhores. Não nos falta tudo, temos as farmácias, que é parte beneficente.
O pior é que a associação ainda não começou os seus trabalhos, e já pesa sobre ela a mão da fatalidade, trazendo uma lacuna, ainda que passageira, à diretoria. Adoeceu uma pessoa da família do tesoureiro, e este teve de retirar-se para o interior, donde oxalá que volte, antes mesmo que a instrução principie. Tudo, porém, se recompôs ficando a tesouraria interinamente confiada a um dos farmacêuticos, que já era membro do conselho. Creio haver dito que vão ser contratados outros farmacêuticos, e consequentemente outras farmácias tanto alopáticas como homeopáticas... Mas, com os diabos! On ne parle ici que de ma mort!