Total de visualizações de página

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Aldous Huxley [parte 16]

Eu não suponho, não tenho a ilusão que alguém tome a sério semelhante ideia.
Mas desejava bem que os da Bruzundanga a tomassem, para que mais tarde não tenham que se arrepender.
A nobreza doutoral, lá, está se fazendo aos poucos irritante, e até sendo hereditária. Querem ver? Quando por lá andei, ouvi entre rapazes este curto diálogo:
-- Mas T. foi reprovado?
-- Foi.
-- Como? Pois se é filho do doutor F.?
Os pais mesmo têm essa ideia; as mães também; as irmãs da mesma forma, de modo a só desejarem casar-se com os doutores. Estes vão ocupar os melhores lugares, as gordas sinecuras, pois o povo admite istoe o tem achado justo até agora. Há algumas famílias que são de verdadeiros Polignacs doutorais. Ao lado, porém, delas vai se formando outra corrente, mais ativa, mais consciente da injustiça que sofre, mais inteligente, que, pouco a pouco, há de tirar do povo a ilusão doutoral.
É bom não termos que ver, na minha querida Bruzundanga, aquela cena que a nobreza de sangue provocou, a Taine, no começo da sua grande obra Origens da França Contemporânea, descreve em poucas e eloquentes palavras. Eu as traduzo:
"Na noite de 14 para 15 de julho de 1789, o Duque de Larochefoucaud-Liancourt fez despertar Luís XVI para lhe anunciar a tomada da Bastilha.
-- É. uma revolta? diz o rei.
-- Sire, respondeu o duque, -- é uma revolução".

VII 
A diplomacia da Bruzundanga 


O ideal de todo e qualquer natural da Bruzundanga é viver fora do pais.
Pode-se dizer que todos anseiam por isso; e, como Robinson, vivem nas praias e nos morros, à espera do navio que os venha buscar.
Para eles, a Bruzundanga é tida como pais de exílio ou mais do que isso: como uma ilha de Juan Fernández, onde os humanos perdem a fala, por não terem com quem conversar e não poderem entender o que dizem os pássaros, os animais silvestres e mesmo as cabras semi-selvagens.
Um dos meios de que a nobreza doutoral lança mão para safar-se do país, é obter empregos diplomáticos ou consulares, em falta destes os de adidos e "encostados" às legações e consulados.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 16]


Três encantadoras raparigas da Secção de Propaganda pela Voz Sintética caíram sobre ele quando ia a
sair do elevador.
- Oh! Helmholtz, meu querido, vem conosco fazer um piquenique nos prados de Exmoor!
Agarraram-se a ele, implorantes. Ele acenou negativamente com a cabeça e desnvencilhou-se delas,
abrindo passagem.
- Não, não.
- Não convidaremos outro homem. Mas Helmholtz não se deixou abalar pela deliciosa promessa.
- Não - repetiu -, tenho que fazer. - E continuou o seu caminho.
As raparigas arrastaram-se atrás dele. Apenas quando subiu para o helicóptero de Bernard e fechou a
porta elas abandonaram a perseguição. E não sem recriminações.
- Estas mulheres! - disse, enquanto o aparelho se elevava no ar. - Estas mulheres! - Sacudiu a cabeça,
franzindo o sobrolho. - São uma estopada!
Bernard exprimiu hipocritamente o seu acordo, mas teria desejado no momento em que pronunciava as
palavras ter tantas jovens como Helmholtz, e com a mesma facilidade. Foi tomado de um súbito e
urgente desejo de se gabar.
- Vou levar Lenina Crowne ao Novo México - disse no tom mais banal que lhe foi possível.
- Sério? - perguntou Helmholtz, com uma total ausência de interesse. Depois, após uma pequena pausa:
- Há uma semana ou duas que abandonei todas as minhas comissões e todas as minhas mulheres. Não
calcula que complicações eles arranjaram no Colégio. O que não impede que tenha valido a pena,
parece-me. Os efeitos... - Hesitou. - Bem! São bizarros, muito estranhos.
Uma insuficiência física podia produzir uma espécie de excesso mental. O processo era aparentemente
reversível. O excesso mental podia produzir, para fins pessoais, a cegueira e a surdez voluntárias da
solidão deliberadamente desejada, a impotência artificial do ascetismo.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 15]

Veio, porém, a borracha dos ingleses e tudo foi por água abaixo, porque o preço de venda da da Bruzundanga mal dava para pagar os impostos. A riqueza fez-se pobreza...
A província deixou de pagar as dívidas e houve desembargadores dela a mendigar pelas ruas, por não receberem os vencimentos desde mais de dois anos.
Eis como são as riquezas do país da Bruzunganda.


VI
O ensino na Bruzundanga

Já vos falei na nobreza doutoral desse país; é lógico, portanto, que vos  fale do ensino que é ministrado nas suas escolas, donde se origina essa nobreza. Há diversas espécies de escolas mantidas pelo governo geral,  pelos governos provinciais e por particulares. Estas últimas são chamadas
livres e as outras oficiais, mas todas elas são equiparadas entre si e os seus diplomas se equivalem. Os meninos ou rapazes, que se destinam a elas,  não têm medo absolutamente das dificuldades que o curso de qualquer  delas possa apresentar. Do que eles têm medo, é dos exames preliminares.
De forma que os filhos dos poderosos fazem os pais desdobrar bancas de  exames, pôr em certas mesas pessoas suas, conseguindo aprovar os pequenos em aritmética sem que ao menos saibam somar frações, outros em francês sem que possam traduzir o mais fácil autor. Com tais manobras, conseguem sair-se da alhada e lá vão, cinco ou seis anos depois, ocupar gordas  sinecuras com a sua importância de "doutor".
Há casos tão escandalosos que, só em contá-los, metem dó.
Passando assim pelo que nós chamamos preparatórios, os futuros  diretores da República dos Estados Unidos da Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e presunçosos do que quando para lá entraram.
São esses tais que berram: "Sou formado! Está falando com um homem  formado!"

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 15]

O terraço do edifício principal estava efervescente com a chegada e a partida dos helicópteros.
- Safa! - disse Lenina. - Estou muito contente por não ser uma Gama.
Dez minutos mais tarde estavam em Stoke Poges e tinham começado a primeira volta de golf de
obstáculos.
Conservando os olhos baixos a maior parte do tempo e desviando-os imediatamente se, por acaso,
caíam sobre os seus semelhantes, Bernard apressou-se a atravessar o terraço. Parecia-se com um
homem que fosse perseguido, mas perseguido por inimigos que não queria ver, temendo que eles lhe
parecessem ainda mais temíveis do que havia imaginado, e que, portanto, lhe fizessem experimentar
uma sensação de maior culpa e de ainda mais profunda solidão.
«Esse antipático Benito Hoover!» E, no entanto, o rapaz agira, em suma, com boa intenção. O que era
ainda pior, considerando as coisas sob um certo ponto de vista. Os que tinham boas intenções
conduziam-se da mesma maneira que os que tinham más. A própria Lenina fazia-o sofrer. Lembrou-se
dessas semanas de tímida indecisão, durante as quais tinha contemplado, desejado, desesperando de
vir alguma vez a ter coragem para a convidar. Ousaria ele correr o risco de ser humilhado por uma
recusa depreciativa? Mas se ela dissesse sim, que delirante felicidade! E eis que ela lho havia dito. E
ele continuava miserável, miserável porque ela tinha achado que estava uma magnífica tarde para o
golf de obstáculos, porque ela fora, sem nenhuma explicação, ter com Henry Foster, porque ela achara
engraçado que não se falasse em público dos seus assuntos pessoais. Miserável, numa palavra, porque
ela se conduzira como o devia fazer toda a jovem inglesa sã e virtuosa, e não de qualquer outra maneira
anormal e extraordinária.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 14]

Quando se pergunta aos sábios do país porque isto se dá, eles fazem um relatório deste tamanho e nada dizem. Falam em calorias, em teor de enxofre, em escórias, em grelhas, em fornalhas, em carvão americano, em briquettes, em camadas e nada explicam de todo. Os do povo, porém, concluem logo que o tal carvão de pedra da Bruzundanga não serve para fornalhas, mas, com certeza, pode ser aproveitado como material de construção, por ser de pedra.
O que se dá,com o carvão, dá-se com as outras riquezas da Bruzundanga. Elas existem, mas ninguém as conhece. O ouro, por exemplo, é tido como uma das fortunas da Bruzundanga, mas lá não corre uma moeda
desse metal. Mesmo, nas montras dos cambistas, as que vemos são estraneiras. Podem ser turcas, abexins, chinas, gregas, mas do pais não há nenhuma. Contudo, todos afirmam que o país é a pátria do ouro.
O povo da Bruzundanga é doce e crente, mais supersticioso do que  crente, e entre as suas superstições está esta do ouro. Ele nunca o viu, ele nunca sentiu o seu brilho fascinador; mas todo o bruzundanguense está
certo de que possui no seu quintal um filão de ouro.
Com o café dá-se uma cousa interessante. O café é tido como uma das maiores riquezas do país; entretanto é uma das maiores pobrezas.
Sabem por quê? Porque o café é o maior "mordedor" das finanças da  Bruzundanga.
Eu me explico. O café, ou antes, a cultura do café é a base da  oligarquia política que domina a nação. A sua árvore é cultivada em  grandes latifúndios pertencentes a essa gente, que, em geral, mal os co-
nhece, deixando-os entregues a administradores, senhores, nessas vastas terras, de baraço e cutelo, distribuindo soberanamente justiça, só não cunhando moeda, porque, desde séculos, tal cousa é privilégio do Rei. 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 13]

Encontrou o caminho de Damasco que é ainda uma cidade opulenta.
Entretanto, eu quando frequentei a Universidade da Bruzundanga, o conheci como adepto do positivismo do rito do nosso Teixeira Mendes.
Quis meter-se na política, fugiu do positivismo e, antes de dez anos, ei-lo de balandrau e vara a acompanhar procissões.
Depois da sua conversão, foi eleito definidor, fabriqueiro, escrivão de várias irmandades e ordens terceiras.
Aliás, na Bruzundanga, não há sujeito ateu ou materialista em regra que, ao se casar com mulher rica, não se faça instantaneamente católico apostólico romano. Assim fez esse meu antigo colega.
Esse homem, ou antes este rapaz, que tão rapidamente se passou de uma ideia religiosa para a outra, esse rapaz cuja insinceridade é evidente, é ajudado em todas as suas pretensões, veleidades, desejos, pelos bispos,
frades, padres e irmãs de caridade.
As irmãs de caridade gozam, lá na Bruzundanga, de uma, influência poderosa. Não quero negar que, como enfermeiras de hospitais, elas prestem serviços humanitários dignos de todo o nosso respeito; mas não são
essas que os cínicos ambiciosos da Bruzundanga cortejam. Eles cortejam aquelas que dirigem colégios de meninas ricas. Casando-se com uma destas, obtêm eles a influência das colegas, casadas também com grandes figurões, para arranjarem posições e lugares rendosos.
Toda a gente sabe como o pessoal eclesiástico consegue manter a influência sobre os seus discípulos, mesmo depois de terminarem os seuscursos. Anatole France, em L'Église et lu République, mostrou isso muito
bem. Os padres, freiras, irmãs de caridade não abandonam os seus alunos absolutamente. Mantêm sociedades, recepções, etc., para os seus antigos educandos; seguem-lhes a vida de toda a forma, no casamento, nas carreiras, nos seus lutos, etc.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 12]

Alguns nobres da casta dos doutores acumulam também a outra nobreza. São condes ou duques e doutores; e usam alternativamente o título de uma e o da outra aristocracia. Passam assim a ser conhecidos por dois
nomes -- cousa que é quase verificada entre os malfeitores e outros conhecidos da polícia.
Essa recrudescência de títulos nobiliárquicos apareceu desde que a Bruzundanga se fez república, e desconheceu os títulos de nobreza porque o país havia sido governado pelo regime monárquico, com uma nobreza modesta não hereditária, que mais parecia o tchin russo, isto é, uma nobreza de burocratas, do que mesmo uma nobreza feudal. O rei que a criou não a chamava mesmo "nobreza", mas taffetas.
No país, esses titulares de palpite não tem importância alguma na massa popular. Os do povo respeitam mais um modesto doutor de farmácia pobre do que um altissonante Medina Sidonia de última hora; a elite, porém,
a nata, -- essa sim! -- tem por eles o respeito que se devia aos antigos nobres.
O povo sempre os recebe com o respeito que nós tínhamos, aqui, pelo Príncipe Ubá II, d'Africa.
A gente civilizada e rica, entretanto, não pensa assim, leva-os a sério e os seus títulos são berrados nos salões como se estivessem ali um Montmorency, um Conde de Vidigueira, um Duque d'Alba, que, por sinal,
foi tomado para ascendente de um grave senhor da Bruzundanga, que desejava a incorporação do proletário à sociedade moderna.
Os costumes daquele longínquo país são assim interessantes e dignos de acurado estudo. Eles têm uma curiosa mistura de ingenuidade infantil e idiotice senil. Certas vezes, como que merecem invectivas de profeta
judaico; mas, quase sempre, o riso bonachão de Rabelais.
O que ficou dito sobre as suas duas nobrezas, penso eu, justifica esse juízo. E para elas ainda é bom não esquecer que devemos julgá-las como aconselha Anatole France; com ironia e piedade.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 14]

O riso de Lenina foi franco e totalmente isento de maldade.
- Como você é engraçado! - disse. E, muito sinceramente, achava-o engraçado. - Previna-me, pelo
menos, com oito dias de antecedência, sim? - continuou, noutro tom. - Suponho que tomaremos o
Foguete Azul do Pacífico. Parte da torre de Charing-T?(*) Ou de Hampstead?
Antes que Bernard pudesse responder, o elevador parou.
- Terraço! - gritou uma voz áspera.
O encarregado do elevador era um pequeno ser simiesco, vestido com a blusa negra de um semiaborto
Epsilão-Menos.
- Terraço! Abriu as portas de par em par. O calor triunfal do sol da tarde fê-lo sobressaltar e piscar os
olhos. «Ah, terraço», repetiu com voz satisfeita. Dir-se-ia que acabava súbita e alegremente de acordar
de um negro torpor aniquilante. «Terraço!»
Levantou os olhos, sorrindo, para os rostos dos seus passageiros, com uma espécie de adoração de cão
esperando uma carícia. Conversando e rindo entre si, saíram para o terraço. O encarregado do ascensor
seguiu-os com o olhar. - Terraço? - disse ainda uma vez em tom interrogativo.
Uma campainha soou e do teto do ascensor um alto-falante começou num tom suave mas, no entanto,
imperioso, a dar ordens.
«Descer - dizia ele. - Descer. Décimo oitavo andar. Descer.
Décimo oitavo andar. Descer, descer ... »
O encarregado do ascensor fechou as portas, carregou num botão e mergulhou imediatamente na
penumbra zunidora da gaiola, na penumbra do seu próprio torpor habitual.
No terraço havia calor e claridade. A tarde de Verão estava como que adormecida sob o zumbido dos
helicópteros que passavam; o rugido mais grave dos aviões-foguetes que passavam, invisíveis, através
do céu luminoso, nove ou dez quilômetros mais acima, parecia uma carícia no ar tépido. Bernard Marx
respirou profundamente. Ergueu os olhos para o céu, circunvagando o horizonte azul, e finalmente
mergulhou o olhar no rosto de Lenina.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 13]

- Depois houve o célebre massacre do Museu Britânico. Dois mil fanáticos da cultura mortos com
gases de sulfito de dicloroetilo.
Um boné de jóquei verde e branco protegia os cabelos de Lenina; os seus sapatos eram verde-vivos e
extraordinariamente brilhantes.
- Finalmente - disse Mustafá Mond -, os Administradores verificaram a ineficácia da violência. Os
métodos mais lentos, mas infinitamente mais seguros, da ectogênese, do condicionamento
neopavloviano e da hipnopedia...
À volta da cintura levava um cinto de pseudomarroquim
verde com guarnições de prata, cheia (pois Lenina não era nenhuma neutra) de preservativos.
- Utilizaram-se enfim as descobertas de Pfitzner e de Kawaguchi. Uma intensa propaganda contra a
reprodução vivípara ...
- Maravilhoso! - disse Fanny, entusiasticamente. Nunca podia resistir muito tempo ao encanto de
Lenina. - E que amor de cinto maltusiano!
- Acompanhada por uma campanha contra o passado, pelo encerramento dos museus, pela destruição
dos monumentos históricos (felizmente, a maioria deles tinha sido já destruída durante a Guerra dos
Nove Anos), pela supressão de todos os livros publicados antes do ano 150 de N. F.
- Gostava de arranjar um igual - disse Fanny.
- Havia umas coisas chamadas pirâmides, por exemplo.
- O meu velho cinto de couro preto ...
- E um homem chamado Shakespeare. Nunca ouviram falar dele, naturalmente...
- O meu velho cinto é detestável.
- Tais são as vantagens de uma educação verdadeiramente científica.
"Quanto mais se remenda, pior se fica. Quanto mais se remenda, pior se ..."
- A introdução do primeiro modelo T de Nosso Ford ...

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 12]

 
Fanny teve um sobressalto de surpresa.
       - Não pretendes dizer que?...
      - Porque não? Bernard é um Alfa-Mais. Além disso, convidou-me a ir com ele a uma Reserva de
      Selvagens. Sempre desejei ver uma Reserva de Selvagens.
      - Mas então e a reputação que ele tem?
      - Que me interessa a sua reputação?
       - Diz-se que ele não gosta do golf de obstáculos.
       - Diz-se, diz-se... - troçou Lenina.
      - E depois, ele passa a maior parte do seu tempo só... só... - Havia uma entonação horrorizada na voz de
       Fanny.- Pois bem! Ele não estará só quando estiver comigo. E além disso, porque são todos tão
      desagradáveis para ele? Por
       mim, acho-o bastante simpático.
       Sorriu para si própria. Como ele fora ridiculamente tímido! Tão atrapalhado como se ela fosse um
      Administrador Mundial e ele um mecânico Gama-Menos.
       - Considerem a vossa própria existência - disse Mustafá Mond. - Algum de vocês encontrou,
      porventura, um obstáculo insuperável?
      Feita a pergunta, a resposta foi um silêncio negativo. - Algum dos senhores foi já obrigado a esperar
      um longo intervalo de tempo entre a consciência de um desejo e a sua satisfação?
      - Bem, eu... - começou um dos rapazes. Depois hesitou.
      - Diga - ordenou o D. I. C. - Não faça Sua Forderia esperar.
      - Uma vez tive de aguardar perto de quatro semanas antes que uma rapariga que eu desejava se
      resolvesse a deixar-me possuí-la.
      - E o senhor sofreu, em consequência, uma forte comoção?

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O DOCE ENIGMA DO BRIGADEIRO - Mário Eduardo Viaro

Recentemente, fui procurado por uma jornalista com uma dúvida etimológica. Não foi o caso, mas comumente, nessa situação, é difícil convencer as pessoas de que o trabalho etimológico sério demanda pesquisa, investimento, método e, portanto, tempo, não raro equipes de investigadores financiados.

Muitas pesquisas podem não gerar um resultado imediato ou conclusivo e isso pode ser algo frustrante. Espera-se com frequência que o etimólogo tire a solução da sua cartola erudita, de preferência, o mais rapidamente possível, e que essa solução, ademais, seja surpreendente, senão cômica. A questão da jornalista era sobre o doce chamado "brigadeiro". Por que tem esse nome?

A palavra "brigadeiro", com o sentido básico de "oficial comandante de uma brigada", ao que tudo indica tem datação abonada no Houaiss para início do século 18. A palavra "brigada", da qual se deriva, é de meados do século 17. E, de fato, ambas são mais antigas na língua de que se extraem os étimos das palavras portuguesas: o francês aponta para 1640 a primeira ocorrência de brigadier e para cerca de 1360 a palavra brigade. O italiano também tomou por empréstimo do francês a palavra brigadière (abonada em 1674), embora brigata seja o étimo da francesa brigade e aparece, no italiano, com o sentido de "grupo de amigos" já no século 13 (com o sentido bélico, apenas no século seguinte).

Mãos Atadas – o fim da letra cursiva - Juliana Holanda

Revista Língua Portuguesa - Ano 6 - nº 71 Setembro 2011

Revista Educação – Edição 173


Decisão americana de acabar com o ensino da letra cursiva abre discussão sobre as motivações do ensino ofertado às crianças na era digital 

Ela pode ser torta, trêmula, rebuscada, altiva ou até mesmo tímida. Bonita ou não, é capaz de revelar, ao mesmo tempo, um período histórico e a individualidade humana. Mas a letra cursiva está sob a ameaça da contemporaneidade. Com a ascensão do computador, seu presente é associado ao passado. E seu futuro parece incerto. A recomendação de 46 estados americanos para que as escolas abandonem o ensino da letra cursiva levanta questões mais amplas que o simples domínio motor de uma técnica: será que no afã de formar as crianças do futuro precisamos comprometer o seu presente? Afinal, mesmo na hipótese de que a escrita à mão seja abolida no longo prazo, como essas crianças se inserem na atualidade? E quais os impactos para o seu desenvolvimento cognitivo, motor, e enquanto indivíduos que
se expressam?

A comunicação feita por slides

Revista Língua Portuguesa - Ano 5 - nº 58 - Agosto 2010
Como aprimorar o uso de recursos multimidiáticos em apresentações
Maria Helena de Nóbrega


Falar em público não é mais uma atividade restrita a grupos específicos de profissionais. Além de professores e advogados, muitas outras categorias veem-se obrigadas a vencer a fobia social e encarar apresentações para grupos grandes ou pequenos. Seja para demonstrar os resultados dos negócios, seja para justificar mudanças na estratégia empresarial, poucos escapam da situação de ter de se expor publicamente. Até os estudantes de graduação têm de fazer a apresentação oral do trabalho de conclusão de curso e enfrentar a arguição dos avaliadores.



A apreensão natural decorrente dessas atividades agrava-se pela obrigatoriedade bastante generalizada de que algum recurso visual deva ser utilizado. Dentre as várias opções - quadro branco, blocos de papel (flip chart), projetor de slides, projetor de vídeo, retroprojetor -, o projetor multimídia tem se destacado. Por ser um sistema que permite demonstrar informações na tela na forma de texto, imagens, sons, vídeos e animações, muitos auditórios e salas de reunião já possuem esse equipamento instalado.
A funcionalidade desse recurso é fácil de ser reconhecida, pois os programas de computador disponíveis no mercado são autoexplicativos e orientam o usuário sobre como criar as telas. O problema decorre da má utilização dos numerosos recursos gráficos, ferramentas de formatação, cores, sons e animação. Usados em excesso, esses visuais podem confundir o público, em vez de auxiliá-lo na apreensão da mensagem.    
Portanto, telas com textos longos, lidos pelo apresentador, exemplificam mau uso da ferramenta. Visuais que distraem a atenção do público devem ser dispensados. Em suma, se o elemento visual cria rivalidade com a fala do orador, rouba-lhe a cena, não se harmoniza com o conteúdo da fala, é melhor que ele não participe do evento.
Para fazer do multimídia um aliado poderoso, é preciso analisar como ocorre o processo de recepção da mensagem. A produção de efeitos adequados ao conteúdo da mensagem é, afinal, condição para que a tecnologia visual facilite a exposição e compreensão do tema, contribuindo de forma decisiva para a dinâmica da apresentação.
O fato indiscutível é que as telas, sozinhas, não garantem boas apresentações. Recursos tecnológicos bem utilizados precisam, sobretudo, somar-se à linguagem corporal natural e elegante, bem como ao estilo marcante do orador. No somatório desses elementos, no carisma e na credibilidade de quem fala é que se encontra o sucesso da apresentação.
Maria Helena da Nóbrega é professora de língua portuguesa na USP, autora de Estratégias de comunicação em grupo (Atlas, 2007).

Os 10 caminhos para falar bem

Revista Língua Portuguesa - Ano 4 - Nº 53 - Março/2011

As principais orientações para quem quer melhorar o desempenho de uma apresentação em público.
Osório Antonio Cândido da Silva

Ao planejar o que vai dizer, leve em consideração uma lista mental de questões a que sua fala deve responder; as lacunas que cada afirmação pode provocar à medida que enunciada; o tipo de predisposição do auditório às ideias que você defenderá (conceitos partilhados, preconcei­tos, visão de mundo); as condições e o contexto em a comunicação ocorrerá.
Saber a idade do grupo, suas convicções políti­cas, religião, ocupação e algo mais é de vital impor­tância. As pessoas estarão apoiando sua fala ou se posicionarão contra? Será uma plateia mista? Este­ja preparado para valorizar a oposição.
A primeira real pergunta a ser respondida quan­do se prepara uma apresentação, portanto, é se o seu público é favorável a suas ideias. Será ele hostil? Te­rá ponto de vista oposto?
Explorar fatores como esse é bom ponto de par­tida para um orador iniciante.
Para experientes, é um adicional valioso. A persuasão assume formas variadas e conseguir que as pessoas concordem com sua forma de pensar é uma proeza.

• Com plateia a favor
Antes de tudo, considere se sua plateia vê com bons olhos aquilo que você apresenta.
1) Se o público concorda com seu ponto de vista, concentre-se nele, eliminando, assim, pon­tos de vista opostos. Vejamos um caso atual muito polêmico: se você batalha pela descrirninalização da maconha e pensa que é uma boa causa porque ela poderia ser taxada ou usada em tratamentos médicos, ou não tem efeito suficientemente nocivo para merecer a ilegalida­de, isso será, provavelmente, tudo o que você deve dizer.

A LÍNGUA É UMA ARMA CARREGADA

Revista Língua portuguesa - Ano 5 - Nº 66 - Abril  2011/

Usado para mostrar a inferioridade alheia, idioma pode se tornar um perigo nas mãos de letrados ignorantes


Quem nasce "dentro" de um dado idioma - isto é, quem adquire uma língua no berço e na presença de parentes e depois aprende as primeiras letras na escola - não passa pelo mesmo processo vivenciado por quem começa a estudar línguas depois da puberdade. Norte-americano, cursei a língua espanhola na adolescência e, já na vida de adulto, iniciei o estudo formal do português.

Lembro-me de que, nas aulas de português nos EUA, aprendi a falar "Maria, eu a conheço" e "Pedro? Não o vi hoje". No Brasil, ouvi outro uso: "Não conheço ela" e "Não vi ele hoje". No início, usei a forma aprendida na escola até ter mais dados a respeito dos usos dos pronomes. Adquirir uma língua estrangeira é um desafio.

Os brasileiros são pacientes e benevolentes com a produção oral e escrita de estrangeiros que vivem no Brasil. Nem sempre há a mesma paciência entre brasileiros. Alguns, nem todos, tendem a debochar dos cidadãos que dizem "seje" ou "nóis vai" e assim demonstram preconceito contra os que foram obrigados a trabalhar desde cedo na vida sem poder ter acesso à escola e aos livros. 

A linguagem que impressiona

Revista Língua Portuguesa - Ano 5 - Nº 66 - Abril de 2011

7 dicas vindas do cinema, da literatura, da publicidade e até da política que são capazes de dar molho ao seu texto


Mudar o eixo em que as coisas são apresentadas está no cerne do texto bem escrito. O raciocínio comum funciona dentro de um quadro de referências aparente e familiar. O texto que impressiona diz algo além do que está na superfície, associa o domínio inicial de um problema a outro quadro de referência. Há sempre o que é dito e o que é realizado, a diferença entre o que é enunciado e a enunciação (o que se comunicou, de fato).

E isso vale para a ficção e para o texto argumentativo. A história da cultura, da literatura, do cinema, da publicidade e até da política nos legaram muitas lições sobre como impressionar um leitor. Nas páginas que seguem, sete dicas de variadas fontes podem ajudar o redator a romper com as expectativas e conquistar algo mais do que o esperado. A transposição inesperada de uma qualidade para uma realidade outra é feita ao se recombinar coisas já existentes em outros contextos, dando-lhes novas finalidades - ou ao se modificar o jogo das coisas no momento em que se relacionam. 

10 passos para a redação nota 10

Revista Língua Portuguesa - Ano 5 - Nº 69 - Julho 2011

Dicas e conselhos para escrever melhor e sair-se bem ante a exigência de bons textos no mercado de trabalho, nos processos seletivos e no cotidiano

Redigir textos virou exigência tão difundida na sociedade contemporânea que chega a ser quase impossível tocar a vida sem ser obrigado a adquirir familiaridade com qualidades da escrita.

A concorrência nunca esteve tão acirrada e em campos que ressaltam o papel da redação como um filtro. O Enem deste ano, por exemplo, conta com 6,2 milhões de candidatos (1,5 milhão a mais do que em 2010). O vestibular da Unesp, um dos maiores do país, registrou a maior concorrência de sua história: 12.375 inscritos para 510 vagas (24,3 por vaga). Como tantas outras instituições, a PUC-Minas computou aumento no número de candidatos (42,6%) em seu processo seletivo.

Provas de redação viraram o grande vilão dos concursos públicos no Brasil. A avaliação é da Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (Anfac), que registra, por ano, cerca de 10 milhões de candidatos, um terço dos quais têm cadeira cativa em cursos preparatórios, uma indústria que movimenta R$ 1 bilhão por ano. Uma parte substancial do trabalho preparatório, mesmo de provas técnicas, está centrado no ensino de redação.

Originalidade inspirada pelo cotidiano

Ano 5 - Nº 61 - Nov 2010 - Revista Língua Portuguesa



Profissionais da escrita revelam as estratégias para quem deseja tirar boas ideias do dia a dia para escrever um texto criativo

By Carmen Guerreiro

A busca por fontes de inspiração já levou um sem-número de profissionais da escrita à loucura ante uma folha de papel ou tela em branco, à espera de um estopim criativo que desse início a um texto sagaz e estimulante. A resposta para a origem de boas ideias, no entanto, pode estar mais próxima de nós do que imaginamos: no cotidiano.

Segundo a psicóloga Denise Bragotto, pesquisadora em criatividade e escrita criativa, a explicação é até simples. A inspiração não é necessariamente um insight, uma revelação que surge a partir do nada. É um exercício de observação meticulosa e criteriosa do mundo a nossa volta e, enfim, a tradução dos fatos do dia a dia em um bom texto.

- Podemos beber das mais variadas fontes para encontrar ideias, porém é preciso ser um observador atento do mundo, saber acolher as ideias, mesmo que pareçam absurdas ou ridículas, e ter ampla bagagem de conhecimento sobre assuntos variados - afirma Denise. 

O Bruzundangas - Lima Barreto [parte 11]


Da outra nobreza, tratarei mais tarde, deixando de lado as meninas das Escolas Normais, com os seus bonés de universidade americana, e os bacharéis em letras da Bruzundanga, porque lá não são considerados nobres,
Entretanto, as primeiras têm um anel distintivo que parece uma montra de joalheria, pela quantidade de pedras que possui; e os últimos anunciam o seu curso com uma opala vulgar. Ambos esses formados são lá considerados como falsa nobreza.

III
A outra nobreza da Bruzundanga

NO artigo precedente, dei rápidas e curtas indicações sobre a primeira espécie da nobiliarquia da República da Bruzundanga. Falei da nobreza doutoral. Agora vou falar de uma outra mais curiosa e interessante.
A nobreza dos doutores se baseia em alguma cousa. No conceito popular, ela é firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das moças casadoiras é que os doutores têm direito,
pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar muito.
Enfim, em falta de outra qualquer base, há o tal pergaminho, mais ou menos carimbado pelo governo, com um fitão e uma lata de prata, onde há um selo, e na tampa uma dedicatória à dama dos pensamentos do
gentil cavalheiro que se fez doutor.
A outra nobreza da Bruzundanga, porém, não tem base em cousa alguma; não é firmada em lei ou costume; não é documentada por qualquer espécie de papel, édito, código, carta, diploma, lei ou o que seja. Foi por
isso que eu a chamei de nobreza de palpite. Vou dar alguns exemplos dessa singular instituição, para elucidar bem o espírito dos leitores.
Um cidadão da democrática República da Bruzundanga chamava-se, por exemplo, Ricardo Silva da Conceição. Durante a meninice e a adolescência foi conhecido assim em todos os assentamentos oficiais. Um belo
dia, mete-se em especulações felizes e enriquece. Não sendo doutor, julga o seu nome muito vulgar. Cogita mudá-lo de modo a parecer mais nobre.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 10]

Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dois títulos, mas há ainda aí uma dificuldade na precedência deles, isto é, se se devem designar tais senhores por -- doutor coronel -- ou -- coronel doutor.
Está aí um problema que deve merecer acurado estudo do nosso sábio Mayrinck. Se o nosso grande especialista em cousas protocolares resolver o problema, muito ganhará a fama da inteligência brasileira.
Quanto aos costumes, é isto que se observa em relação à nobreza doutoral. Temos, agora, que ver no tocante às leis. 
O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo. Os regulamentos rezam isto, apesar da Constituição, etc., etc.
Tendo crescido imensamente o número de doutores, eles, os seus pais, sogros, etc., trataram de reservar o maior número de lugares do Estado para eles. Capciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vão conseguindo esse desideratum.
Assim, é que os simples lugares de alcaides de polícia, equivalentes aos nossos delegados, cargos que exigem o conhecimento de simples rudimentos de direito, mas muito tirocínio e hábito de lidar com malfeitores, só
podem ser exercidos por advogados, nomeados temporariamente. A Constituição da Bruzundanga proíbe as acumulações remuneradas, mas as leis ordinárias acharam meios e modos de permitir que os doutores
acumulassem. São cargos técnicos que exigem aptidões especiais, dizem. A Constituição não fez exceção, mas os doutores hermeneutas acharam uma.
Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da Faculdade de Medicina e inspetores dos telégrafos; há, na Bruzundanga, engenheiros que são a um só tempo professores de grego
no Ginásio Secundário do Estado, professores de oboé, no Conservatório de Música, e peritos louvados e vitalícios dos escombros de incêndios. Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor
jurídico da principal estrada de ferro pertencente ao governo, inspetor dos serviços metalúrgicos do Estado e examinador das candidatas a irmãs de caridade.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 9]


Houve uma crise no ministério e logo ele foi nomeado ministro da  Fazenda, com o orçamento que fizera votar. Foram tais os processos de  contrabando que teve de estudar, tanto meditou sobre eles, que um dia,
telegrafou a um seu subalterno que apreendera um grande, um imenso  contrabando e prendera os infratores, desta forma: "Fuzile todos". 
O homem estava louco e morreu pouco depois. A secção elegante de um jornal de lá, o Diário Mercantil -- "De Cócoras" -- fez-lhe o necrológio; o novo ministro, entretanto, não pagou, ao redator dela, nada pelo serviço assombroso que prestar às letras do país.

II
A nobreza de Bruzundanga 

UM leitor curioso e simpático, por ser curioso, escreveu-me uma amável cartinha, pedindo-me esclarecimentos sobre os usos, os costumes, as instituições civis sociais e políticas da República dos Estados Unidos da
Bruzundanga.  Diz-me ele que procurou informações de tal país em compêndios de
geografia, em dicionários da mesma disciplina e várias obras, nada encontrando a respeito.
O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamente ele não procurou informações nos livros que o governo da Bruzundanga manda imprimir, dando fabulosos lucros aos impressores e edito-
res, livros escritos em várias línguas e destinados a fazer a propaganda do país no estrangeiro.
É estranho; pois que, por meio de tais livros, muita gente tem feito fortuna e adquirido notoriedade nos corredores das Secretarias e nos desvãos do Tesouro da República da Bruzundanga.
Pode ter acontecido, entretanto, que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas livrarias principais; mas não é aí que eles podem ser encontrados.
As obras que a república manda editar para a propaganda de suas riquezas e excelências, logo que são impressas completamente, distribuem-se a mancheias por quem as queira. Todos as aceitam e logo passam adiante, por meio de venda. Não julgue o meu correspondente que os "sebos" as aceitem. São tão mofinas, tão escandalosamente mentirosas, tão infladas de um otimismo de encomenda que ninguém as compra, por sabê-las falsas e destituídas de toda e qualquer honestidade informativa, de forma a não oferecer nenhum lucro aos revendedores de livros, por falta de compradores.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 10]


- Mães e pais, irmãos e irmãs. Mas havia também maridos, mulheres e amantes. E também havia
monogamia e sentimentos romanescos. Se bem que, provavelmente, os senhores não saibam o que é
tudo isso - disse Mustafá Mond. Acenaram com a"" cabeça negativamente. - A família, a monogamia, o
romanesco. Por toda a parte o sentimento do exclusivo, por toda a parte a concentração de interesses
sobre um único assunto, uma estreita canalização dos impulsos e da energia. "Mas cada um pertence a
todos os outros", concluiu, citando o provérbio hipnopédico.
Os estudantes concordaram com um sinal de cabeça, marcando vigorosamente o seu acordo a uma
afirmação que mais de sessenta e duas mil repetições lhes tinham feito aceitar, não, simplesmente
como verdadeira, mas como axiomática, evidente em si, totalmente indiscutível.
- Mas, afinal - protestou Lenina não há ainda quatro meses que ando com Henry.
- Não há ainda quatro meses! Está boa! E, além disso - continuou Fanny, apontando para ela um
dedo acusador -, não houve mais ninguém, além de Henry, durante esse tempo todo, não é verdade?
Lenina fez-se vermelha, mas os seus olhos, o tom da sua voz, continuaram desafiadores.
- Não, não houve mais ninguém - respondeu, quase com cólera. - E não vejo por que razão devia ter
havido.
- Ah! Ela não vê então porque não devia ter havido - repetiu Fanny, como se se dirigisse a um
invisível auditório atrás do ombro esquerdo de Lenina. Depois, mudando subitamente de tom: - Mas, a
sério - disse -, acho, francamente, que devias tomar atenção. É uma horrível conduta essa, com um só
homem. Aos quarenta anos, ou mesmo aos trinta e cinco, isso não seria tão mau. Mas com a tua idade,
Lenina, Não, com franqueza, isso não se faz. E tu sabes bem como o D. I. C. se opõe a tudo que seja
intenso ou que dure muito. Quatro meses com Henry Foster, sem ter um outro homem... ele ficaria
furioso, se soubesse ...
- Imaginem água sob pressão num tubo. - Eles imaginaram. - Faço-lhe um furo - disse o Administrador.
- Um enorme jacto!
Furou-o vinte vezes. Obteve vinte pequenos e mesquinhos jactos de água.
- Meu bebê! Meu bebê!

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 9]

CAPÍTULO TERCEIRO

Lá fora, no jardim, era a hora do recreio. Nus , sob o doce calor do sol de junho, seiscentos ou
setecentos garotos e garotas corriam nos relvados soltando gritos agudos, ou jogavam à bola, ou
estavam agachados em silêncio em grupos de dois ou três entre os arbustos floridos. As rosas
desabrochavam, dois rouxinóis davam um concerto nas ramagens, um cuco emitia sonoramente os seus
gritos dissonantes por entre as tílias. O ar era embalado sonolentamente pelo murmúrio das abelhas e
dos helicópteros.
O Diretor e os estudantes demoraram-se algum tempo a observar uma partida de bola centrífuga.
Vinte crianças estavam agrupadas em círculo à volta de uma torre de aço cromado. Uma bola lançada
ao ar de maneira a cair sobre a plataforma do alto da torre rebolava para o interior, saía num disco em
rápida rotação, era projetada através de uma ou outra das numerosas aberturas existentes no
revestimento cilíndrico e tinha de ser apanhada.
- Bizarro - comentou o Diretor enquanto se afastavam é bizarro pensar que, mesmo no tempo de
Nosso Ford, a maioria dos jogos não possuíam mais acessórios que uma ou duas bolas, com algumas
varas e talvez um pedaço de rede. Vejam a estupidez que existe em permitir às pessoas a prática de
complicados jogos que de nada servem para aumentar o consumo. É loucura. Atualmente, os
Administradores só dão a sua aprovação a um novo jogo quando possa ser demonstrado que ele exige
pelo menos tantos acessórios como o mais complicado dos existentes. - Interrompeu-se. - Eis um
encantador grupinho - dísse, apontando.
Numa escavação relvada, entre dois maciços de urzes mediterrânicas, duas crianças, um garoto de sete
anos aproximadamente e uma menina que poderia ter um ano mais, divertiam-se com toda a gravidade
e com a concentrada atenção de sábios mergulhados num trabalho de descoberta com um jogo sexual
rudimentar.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 8]

O elogio que o tal senhor fez aos ademanes do doutor Karpatoso tinha origem no boato a correr de que, muito em breve, ele seria indicado para ministro da Fazenda, e o tal redator da secção -- "De Cócoras" --
tinha sempre em mira descobrir os ministros futuros, para ulteriores serviços de sua profissão e recompensas consequentes.                                                                                                                                                                             Mikel de Bouillon é que ficou aborrecido com a cousa; mas como tinha certeza de sair, pelo menos, vice-presidente da Bruzundanga, abafou o azedume, encerou bem os bigodes e continuou a pisar os passeios das ruas centrais da capital, com uma estudada solenidade -- lento, erecto como um soba africano que tivesse envergado um fardão de oficial de marinha e se coberto com o respectivo chapéu armado, encontrados nos salvados de um naufrágio, em uma praia deserta. Via-se bem que Turenne Calmon era daqueles que se satisfazem em ser o segundo em Roma, e  que segundo!
Desde que se rosnou que o doutor Karpatoso seria ministro da Fazenda do futuro quadriênio, a sua casa começou a encher-se. Kaipatoso  era casado com uma senhora da roça, muito segura das suas origens nobres; ela pertencia à família dos Kilvas, cujo armorial e pergaminhos não tinham sido outorgados por nenhum príncipe soberano. Como Napoleão que, segundo dizem, na sua sagração de imperador, pôs ele mesmo a coroa na cabeça, Dona Hengrácia Ben Manuela Kilva tinha ela mesmo  se enobrecido.
Felixhimino, como bom financeiro que era, possuía qualidades harpa gonescas de economia e poupança, de forma que se zangava muito com aquelas despesas de chá e biscoitos, que era obrigado a oferecer aos visitantes. A fim de não mexer nas economias que fazia sobre seu subsídio teve a ideia genial de fundar uma casa de herbanário, em uma espécie de Rua Larga de São Joaquim da capital da República da Bruzundanga.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 8]

(risadinha) do pequeno Reuben, essa conferência foi, é claro, perfeitamente incompreensível, e,
imaginando que o filho tinha endoidecido subitamente, chamaram um médico. Este, felizmente,
sabendo inglês, reconheceu o discurso como sendo aquele que Shaw tinha feito pela T. S. F. Dando-se
conta da importância do acontecimento, escreveu a esse respeito uma carta à imprensa médica.
- O princípio do ensino durante o sono, ou hipnopedia, tinha sido descoberto. - O D. I. C. fez uma
impressionante pausa. - O princípio tinha sido descoberto, mas deviam passar ainda muitos anos antes
que esse princípio tivesse aplicações úteis.
O caso do pequeno Reuben produziu-se apenas vinte e três anos depois do lançamento do primeiro
modelo T de Nosso Ford.
Nessa altura o Diretor fez um sinal de T à altura do estômago, no que foi imitado reverentemente por
todos os estudantes. - E no entanto...
Furiosamente, os estudantes rabiscaram: «A hipnopedia, primeiro emprego oficial no ano 214 de N. F.
Porque não mais cedo? Duas razões: a) ... »
- Esses primeiros experimentadores - dizia o D. I. C. - estavam no mau caminho. julgavam eles que se
podia fazer da hipnopedia um instrumento de educação intelectual.
Um rapazinho adormecido sobre o lado direito, o braço fora da cama, a mão pendendo molemente.
Saindo de uma abertura redonda e gradeada na face de uma caixa, uma voz fala docemente:
"O Nilo é o rio mais comprido da África e, em comprimento, o segundo de todos os rios do mundo. Se
bem que não atinja o comprimento do Mississípi-Missuri, o Nilo vem à cabeça de todos os rios pela
importância da sua bacia, que se estende por trinta e cinco graus de latitude ... »

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 7]

O Diretor esfregou as mãos.
- Excelente! - disse. - Mesmo feito de propósito, não poderia ser melhor.
Os gatinhadores mais rápidos tinham já atingido o seu alvo.O Pequenas mãos se estenderam, incertas,
tocando, segurando, desfolhando as rosas transfiguradas, rasgando as páginas iluminadas dos livros. O
diretor esperou que todos estivessem alegremente ocupados. Depois disse:
- Observem bem. E, levantando a mão, fez um sinal. A enfermeira-chefe, que se encontrava junto de
um quadro de comandos elétricos, no outro extremo da sala, baixou um pequeno manípulo.
Houve uma violenta explosão. Aguda, cada vez mais aguda, uma sereia apitou. Campainhas de alarme
vibraram, obsidiantes.
As crianças assustaram-se e começaram a berrar. Os seus pequenos rostos estavam contorcidos de
terror.
- E agora - gritou o Diretor (o ruído era de ensurdecer) agora passemos à operação que tem por fim
fazer penetrar a lição a fundo por meio de uma ligeira descarga elétrica.
Agitou de novo a mão e a enfermeira-chefe baixou um Segundo manípulo. Os gritos das crianças
mudaram subitamente de tom. Havia qualquer coisa de desesperado, quase de demente, nos uivos
penetrantes e espasmódicos que então lançavam. Os pequenos corpos contraíam-se e retesavam-se, os
membros agitavam-se em movimentos sacudidos, como se fossem puxados por fios invisíveis.
- Podemos fazer passar a corrente em toda esta metade do soalho - gritou o Diretor, como explicação.
- Mas isto chega - disse, fazendo um sinal à enfermeira.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 6]

- Enorme! - murmuraram os rapazes.
O entusiasmo do Sr. Foster era contagioso. As suas explicações tornaram-se mais técnicas: falou da
coordenação anormal das endócrinas, que faz que os homens cresçam tão lentamente, e admitiu, para
explicar tal facto, uma mutação germinal. Poder-se-ão destruir os efeitos dessa mutação? Poder-se-á
fazer retroceder o embrião do Epsilão, por meio de uma técnica apropriada, até ao carácter normal que
existe entre os cães e as vacas? Tal era o problema. E estava quase a ser resolvido.
Pilkington, em Mombaça, tinha conseguido produzir indivíduos sexualmente aptos aos quatro anos e
de tamanho adulto aos seis e meio. Um triunfo científico, mas, socialmente, sem utilidade. Os homens
e mulheres de seis anos e meio eram demasiado
estúpidos, até mesmo para realizar o trabalho de um Epsilão. E o processo era do gênero tudo ou nada:
ou não se Conseguia modificar nada, ou se modificava tudo completamente. Tentava-se ainda
encontrar o meio termo ideal entre adultos de vinte anos e adultos de dez. Infelizmente, até ao presente,
sem sucesso algum. O Sr. Foster suspirou, meneando a cabeça.
As suas peregrinações na penumbra avermelhada tinham-nos levado, próximo do metro cento e setenta,
ao porta-garrafas n.º 9. A partir desse ponto, o porta-garrafas desaparecia numa abertura e as provetas
terminavam o restante trajeto numa espécie de túnel, interrompido aqui e ali por aberturas de dois ou
três metros de largura.
- O condicionamento ao calor - explicou o Sr. Foster. Túneis quentes alternavam com túneis frios. O
frio estava combinado com outras sensações desagradáveis, sob a forma de raios X duros.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 5]

- Que lhes mandam os embriões que eles desejam.
- E as provetas chegam aqui para serem predestinadas pormenorizadamente.
- Para depois descerem ao Depósito de Embriões.
- Onde vamos agora. E, abrindo uma porta, o Sr. Foster tomou a dianteira para descer uma escada e
conduzi-los ao subsolo.
A temperatura era ainda tropical. Desceram numa penumbra que cada vez era maior. Duas portas e um
corredor com duas esquinas protegiam a cave contra qualquer possível infiltração da luz diurna.
- Os embriões parecem-se com uma película fotográfica - disse o Sr. Foster humoristicamente, abrindo
a segunda porta. - Apenas suportam a luz vermelha.
Com efeito, a obscuridade, onde reinava um pesado calor, em que os estudantes então seguiram, era
visível e encarnada, como, numa tarde de Verão, é a obscuridade apercebida através das pálpebras
cerradas. Os lados arredondados das provetas que se alinhavam até ao infinito, fila sobre fila, prateleira
sobre prateleira, brilhavam como inúmeros rubis, e entre os rubis moviam-se fantasmas vermelhos e
vagos de homens e de mulheres de olhos purpúreos, de faces rutilantes. Um zunido, um rumor de
máquinas, imprimiam ao ar uma ligeira vibração.
- Dê-lhes alguns números, senhor Foster - disse o Diretor, que estava fatigado de falar.
O Sr. Foster nada mais desejava senão isso.
- Duzentos e vinte metros de comprimento, duzentos de largura, dez de altura. - Apontou com a mão
para cima. Como 9 galinhas a beber água, os estudantes ergueram os olhos para o tecto distante. - Três
andares de porta-provetas: ao nível do solo, primeira galeria, segunda galeria.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [pate 7]

De todos os postiços literários, usava, e de todas as mesquinhezas da
profissão, abusava.
Era este de fato um samoieda típico no intelectual, no moral, no
físico. Tinha fama.
Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos, as suas
regras, as suas superstições; mas não convém fazer semelhante cousa,
porque bem podia acontecer que alguns dos meus compatriotas a quisessem
seguir.
Já temos muitas bobagens e são bastantes.
Fico nisto.

II
Um grande financeiro

A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tinha, como todas
as repúblicas que se prezam, além do presidente e juízes de várias categorias, um Senado e uma Câmara de Deputados, ambos eleitos por sufrágio
direto e temporários ambos, com certa diferença na duração do mandato:
o dos senadores, mais longo; o dos deputados, mais curto.

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 6]

Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação artística,
morrem de fome, mas vestem-se à moda da Sibéria.
Estavam assim vestidos, naquela tarde, quente, ali naquele café da
capital da Bruzundanga, três dos seus novos e soberbos vates; estavam ali:
Kotelniji, Wolpuk e Korspikt, o primeiro que tinha aplicado o vernier
para "medir" versos.
Abanquei-me e pude perceber que acabavam de ouvir uma poesia do
poeta Worspikt. Tratava de lua, de iceberg, -- descobri eu por uma e outra
consideração que fizeram.
Nenhum deles tinha visto um iceberg, mas gabavam os ouvintes a
moção com que o outro traduzira em verso o espetáculo desse fenômeno
das circunvizinhanças dos pólos.
Num dado momento Kotelniji disse para Worspikt:
-- Gostei muito desse teu verso: -- "há luna loura linda leve, luna
bela!"
O autor cumprimentado retrucou:
-- Não fiz mais do que imitar Tuque-Tuque, quando encontrou aquela
soberba harmonia imitativa para dar idéia do luar -- "Loga Kule Kulela
logalam", no seu poema "Kulelau". 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 5]

Havia mais belezas de igual quilate e outras originalidades. Não
obstante, quando apareceu, foi um louco sucesso de riso muito parecido
com o do Tremor de terra de Lisboa, aquela célebre tragédia do cabeleireiro André, a quem Voltaire invejou e escreveu, entretanto, ao receber-lhe a obra, que continuasse a fazer sempre cabeleiras -- "toujours des
perruques", Senhor André.
Chalat afrontou a crítica e não podendo defender-se com os clássicos
franceses, apelou para a poesia em língua samoieda, que conhecia um pouco
por ter sido marinheiro de um baleeiro que naufragou nas proximidades
da terra desses lapões, entre os quais passou alguns meses. Não desconhecia
o livro do Senhor Switbilter, como tive ocasião de verificar nos fragmentos
de um seu tratado poético, citado na tradução da obra de um seu discípulo
basco por onde os "samoiedas" da Bruzundanga estudaram a escola que
verdadeiramente Chalat ou Chamat fundara.
O seu desafio à crítica, escudado na poética e estética das margens do
glacial Ártico, trouxe-lhe logo uma certa notoriedade e discípulos. 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 4]

O  príncipe chamava-se Tuque-Tuque Fit-Fit e o seu poema Parikáithont
Vakochan, o que quer dizer no nosso calão -- O silêncio das renas no
campo de gelo.
Tuque-Tuque Fit-Fit era descrito pelos "samoiedas" da Bruzundanga
como sendo uma beleza sem par e triunfal entre as deidades daquelas regiões
árticas.
Tudo isto era fantástico, mas graças à credulidade dos sábios do país,
só um ou outro desalmado tinha a coragem de contestar tais lendas.
Como todos nós sabemos, a raça samoieda é de estatura baixa, pouco
menos que a dos lapões, cabelos longos, duros e negros de jade, vivendo da
carne de renas, de urso branco, quando a felicidade lhe fornece um. Tais
homens andam em trenós e fazem kayacs de peles de renas ou focas que
eles empregam para capturar estas últimas.
As suas concepções religiosas são reduzidas, e os seus ídolos, manipansos hediondos, tocos de pau besuntados de pinturas incoerentes. Vestem-se, os samoiedas, com peles de renas e outros animais hiperbóreos.
Entretanto, na opinião dos poetas daquela república, que dizem seguir
as teorias da literatura do Oceano Ártico, não são os samoiedas assim, como
o contam os mais autorizados viajantes; mas sim os mais belos espécimes
da raça humana, possuindo uma civilização digna da Grécia antiga. 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 3]

"Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele:
reformemos!"
A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com
que esse final foi recebido.
O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande
salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.
O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam
como um só traço de fogo; depois sumiram-se.
O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa
fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.
Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma
hora, o mesmo minuto da sua saída da festa.
-- Cocheiro, onde vamos?
Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.
Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente,
Gritou ao cocheiro:
-- Onde vamos? Miserável, onde me levas? 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Aos interessados...





EDITAL DE SELEÇÃO 02/13

MESTRADO EM PATRIMÔNIO CULTURAL E SOCIEDADE – TURMA VII

A Fundação Educacional da Região de Joinville – FURJ, mantenedora da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, comunica a abertura das inscrições ao processo seletivo para ingresso de alunos no Programa de Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da UNIVILLE, para o ano 2014.
1. NÚMERO TOTAL DE VAGAS: 20
2. PÚBLICO ALVO
Por sua característica interdisciplinar, o curso de Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade é dirigido a profissionais de diferentes formações: gestores culturais e ambientais, profissionais que atuam em museus, arquivos, centros culturais e de memória, professores, advogados, comunicadores visuais, administradores e demais profissionais da área de Sociais e Humanidades que queiram ou necessitem ampliar sua formação.

Os Bruzundanga - Lima Barreto ]parte 2]


Aqui, está uma espécie e outra semelhante só sé encontrará mais além,
distante...
Envelheceu, está caduca e tudo que vem para ela sofre-lhe o contágio
da sua antiguidade: caduquece!
Contudo, e talvez por isso memmo, os seus costumes e hábitos podem
servir-nos de ensinamento, pois, conforme a Arte de furtar diz: "os maiores
ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões".
Por intermédio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga, livremo-nos dos nossos: é o escopo deste pequeno livro.
LIMA BARRETO
Todos os Santos, 2-9-17.
Capítulo especial
Os samoiedas
 

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 1]

 PREFÁCIO

Na arte de furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os
eruditos, há um capítulo, o quarto, que tem como ementa esta singular afirmação: "Como os maiores ladrões são os que têm por oficio livrar-nos de
outros ladrões".
Não li o capítulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso livro,
achei verdadeira a cousa e boa para justificar a publicação destas despretensiosas "Notas".
A "Bruzundanga" fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do
Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é,
portanto, como a dos "maiores" da Arte, livrar-nos dos outros, naturalmente menores.
Bem precisados estávamos nós disto quando temos aqui ministros de
Estado que são simples caixeiros de venda, a roubar-nos muito modestamente no peso da carne-seca, enquanto a Bruzundanga os tem que se
ocupam unicamente, no seu ofício de ministro, de encarecerem o açúcar no
mercado interno, conseguindo isto com o vendê-lo abaixo do preço da
usina aos estrangeiros. Lá, chama-se a isto prover necessidades públicas;
aqui, não sei que nome teria...

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 4]

- Ao processo Bokanovsky - repetiu o Director. E os estudantes sublinharam essas palavras nos
cadernos.
Um ovo, um embrião, um adulto: o processo normal. Mas um ovo bokanovskyzado tem a propriedade
de germinar, de proliferar, de se dividir: de oito a noventa e seis rebentos, e cada rebento tornar-se-á
num embrião perfeitamente formado, e cada embrião num adulto normal. Desenvolvem-se assim
noventa e seis seres humanos onde antes apenas se desenvolvia um só. O progresso.
- A bokanovskyzação - concluiu o D. I. C. - consiste essencialmente
numa série de travagens do desenvolvimento. Detemos o crescimento normal e, embora pareça
paradoxal, o ovo reage proliferando.
"Reage proliferando." Os lápis atarefaram-se.
O Diretor estendeu o braço. Num transportador de movimento muito lento, um suporte cheio de tubos
de ensaio entrava numa grande caixa metálica e um outro saía. Havia um ligeiro ruído de máquinas. Os
tubos levavam oito minutos a atravessar a caixa de uma ponta à outra - explicava-lhes -, ou sejam oito
minutos de exposição aos raios X duros, que é, aproximadamente, o máximo que um ovo pode
suportar. Um pequeno número morria; dos outros, os menos influenciados dividiam-se em dois; a
maioria proliferava em quatro rebentos, alguns em oito. Eram então todos novamente enviados para as
incubadoras, onde os rebentos começavam a desenvolver-se; depois, ao fim de dois dias, eram
subitamente submetidos ao frio e à interrupção de crescimento. Os rebentos dividiam-se, por sua vez,
em dois, quatro, oito; depois, tendo proliferado, eram submetidos a uma dose de álcool quase mortal e,
como consequência, de novo proliferavam, sendo em seguida deixados em paz, rebentos de rebentos de
rebentos, pois toda e qualquer suspensão de crescimento era então, geralmente, fatal. Nessa altura o 
primitivo ovo tinha muitas probabilidades de se transformar num número de embriões entre oito e noventa
e seis, «o que é, devem concordar, um prodigioso aperfeiçoamento em relação à Natureza.

História da Língua Portuguesa - Teleaula


Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto [parte final]

FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS
QUE VIERAM COM PRESENTES, ETC

— De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.

sábado, 14 de setembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 3]

Continuação do prefácio

...quem sabe o que poderá acontecer? Daqui até lá, as outras características desse mundo mais feliz e
mais estável - os equivalentes do soma, da hipnopedia e do sistema científico das castas - não estão
provavelmente afastadas mais de três ou quatro gerações. E a promiscuidade sexual do Admirável
Mundo Novo também não parece estar muito afastada. Existem já certas cidades americanas onde o
número de divórcios é igual ao número de casamentos. Dentro de alguns anos, sem dúvida,         passar-se-ão licenças de casamento como se passam licenças de cães, válidas para um período de doze meses, sem nenhum regulamento que proíba a troca do cão ou a posse de mais de um animal de cada vez. À medida que a liberdade econômica e política diminui, a liberdade sexual tem tendência para aumentar, como compensação. E o ditador (a não ser que tenha necessidade de carne para canhão e de famílias  para colonizar os territórios desabitados ou conquistados) fará bem em encorajar esta liberdade.

Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto [parte 12]

FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM
APARECIDO COM OS VIZINHOS

— Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
os anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

POR QUE PENSAR? - Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra)

Ensaio Completo
Revista LUA NOVA Nº 54 — 2001 1

É um prazer enorme estar aqui, voltar aqui e fazê-lo nestas circunstâncias da celebração dos

25 anos do CEDEC, instituição que me habituei a respeitar há muitos anos, a admirar, a seguir e a
colaborar na medida do possível, nos seus trabalhos e na sua revista, uma revista de resistência, de
criatividade, de pensamento crítico sobre o Brasil. Por todas estas razões eu não poderia faltar à
chamada que a Amélia fez e aqui estou, com todo gosto, pois.

Evidente que eu tenho aquele mínimo de decoro que se espera que um professor

universitário tenha, de não pensar o Brasil no meio de colegas tão insignes, tão ilustres, que eu tanto
admiro . Mas é evidente que a questão que me foi posta para esta ação é uma questão mais ampla
sobre as razões para pensar sobre as sociedades contemporâneas. É uma questão realmente
importante porque é desarmantemente simples. É fácil formular a pergunta, ainda que não seja fácil
respondê-la. Costumo dizer que paradoxalmente é nos períodos de transição paradigmática que as
perguntas simples fazem mais sentido. A complexidade destes períodos reside precisamente na
nossa dificuldade em nomeá-los. E porque não sabemos nomeá-los falamos de períodos de
transição. O curioso é que a complexidade, para ser desvelada, tem de ser interpelada de maneira
simples. Acho que as questões simples são aquelas que, por serem desarmantemente transparentes,
permitem ver melhor qual é a problemática dominante do nosso tempo.


O Nascimento das Fábricas - Edgar Salvadori de Decca

Citações

“[...] basta considerarmos a transformação positiva do significado verbal da palavra trabalho, que até a época moderna sempre foi sinônimo de penalizações e de cansaços insuportáveis, de dor e de esforço extremo, de tal modo que sua origem só poderia estar ligada a um extremo de miséria e pobreza. Seja a palavra latina e inglesa labor, ou francesa travail, ou grega ponos ou alemã Arbeit, todas elas, sem exceção, assinalam a dor e os esforços inerentes a condição do homem.” (p. 7)


“Como sempre vemos na sociedade, seja ela nova ou pré-histórica. O resultado e os modos de uma classe para impor sua ideologia para toda uma sociedade.” (p.7)

“[...] introduzir um relógio moral no coração de cada trabalhador foi a primeira vitória da sociedade burguesa [...] Foi através da porta da fábrica que o homem pobre, a partir do século XVIII foi introduzido ao mundo burguês.” (p. 10)

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 2]

A revolução verdadeiramente revolucionária realizar-se-á não no mundo exterior, mas na alma e na
carne dos seres humanos. Vivendo, como viveu, numa época revolucionária, o marquês de Sade serviu-se muito naturalmente dessa teoria das revoluções a fim de racionalizar o seu gênero particular de demência. Robespierre tinha realizado o gênero mais superficial de revolução: a política. Penetrando um pouco mais profundamente, Babeuf tentara a revolução econômica. Sade considerava-se como o apóstolo da revolução verdadeiramente revolucionária, para além da simples revolução política e econômica - da revolução dos homens, das mulheres e das crianças individuais, para quem o corpo se iria tornar daí em diante a propriedade sexual comum a todos e para quem o espírito deveria ser purgado de todos os pudores naturais, de todas as inibições laboriosamente adquiridas pela civilização tradicional. Não existe, é claro, nenhum laço necessário ou inevitável entre o sadismo e a revolução verdadeiramente revolucionária. Sade era um louco, e o fim mais ou menos consciente da sua revolução era o caos e a destruição universal. Os indivíduos que governam o Admirável Mundo Novo podem não ser sãos de espírito (no sentido absoluto desta palavra), mas não são loucos, e o seu fim não é a anarquia, mas a estabilidade social. É com o fim de assegurar a estabilidade que eles efetuam, por meios científicos, a revolução última pessoal, verdadeiramente revolucionária.

Ignacy Sachs, grande pensador contemporâneo que ajudou a criar o conceito desenvolvimento


Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto [parte 11]

UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU
O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE
VERÁ

— Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabeis que ele é nascido.

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 1]

PREFÁCIO DO AUTOR (1946)

O remorso crônico, e com isto todos os moralistas estão de acordo, é um sentimento bastante indesejável. Se considerais ter agido mal, arrependei-vos, corrigi os vossos erros na medida do possível e tentai conduzir-vos melhor na próxima vez. E não vos entregueis, sob nenhum pretexto, à meditação melancólica das vossas faltas. Rebolar no lodo não é, com certeza, a melhor maneira de alguém se lavar.

Também a arte tem a sua moral e grande parte das regras dessa moral são idênticas, ou pelo menos análogas, às regras da ética vulgar. O remorso, por exemplo, é tão indesejável no que diz respeito à
nossa má conduta como no que se relaciona com a nossa má arte. O que aí existe de mau deve ser encontrado, reconhecido e, se possível, evitado no futuro.

Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto [parte 10]

APROXIMA-SE DO RETIRANTE O
MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE
EXISTEM ENTRE O CAIS E A
ÁGUA DO RIO



— Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabes me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
— Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
— Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega o abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Que é metafísica? [parte final]

A existência científica recebe sua simplicidade e acribia do fato de se
relacionar com o ente e unicamente com ele de modo especialíssimo. A ciência
quisera abandonar, com um gesto sobranceiro, o nada. Agora, porém, se torna
patente, na interrogação, que esta existência científica somente é possível se se
suspende previamente dentro do nada. Apenas então compreende ela realmente
o que é quando não abandona o nada. A aparente sobriedade e superioridade da
ciência se transforma em ridículo, se não leva a sério o nada. Somente porque o
nada se revelou, pode a ciência transformar o próprio ente em objeto de
pesquisa. Somente se a ciência existe graças à metafísica, é ela capaz de
conquistar sempre novamente sua tarefa essencial que não consiste
primeiramente em recolher e ordenar conhecimentos, mas na descoberta de todo
o espaço da verdade da natureza e da história, cuja realização sempre se deve
renovar.

Que é metafísica? - Heidegger [parte 6]

O estar suspenso do ser-aí no nada originado pela angústia escondida
transforma o homem no lugar-tenente do nada. Tão finitos somos nós que
precisamente não somos capazes de nos colocarmos originaria mente diante do
nada por decisão e vontade próprias. Tão insondavelmente a finitização escava
as raízes do ser-aí que a mais genuína e profunda finitude escapa à nossa
liberdade.
O estar suspenso do ser-aí dentro do nada originado pela angústia
escondida é o ultrapassar do ente em sua totalidade: a transcendência.
Nossa interrogação pelo nada tem por meta apresentar-nos a própria
metafísica. O nome metafísica vem do grego: tà metà physiká. Esta surpreendente
expressão foi mais tarde interpretada como caracterização da
interrogação que vai meta — trans “além do ente enquanto tal.
Metafísica é o perguntar além do ente para recuperá-lo, enquanto tal e em
sua totalidade, para a compreensão.

Que é metafísica? - Heidegger [parte 5]

Mas agora devemos dar finalmente a palavra a uma objeção já por tempo
demasiado reprimida. Se o ser-aí somente pode entrar em relação com o ente
enquanto está suspenso no nada, se, portanto, somente assim pode existir e se o
nada somente se revela originalmente na angústia, não devemos nós então pairar
constantemente nesta angústia para, afinal, podermos existir? Não
reconhecemos nós mesmos que esta angústia originária é rara? Mas, antes disso,
está fora de dúvida que todos nós existimos e nos relacionamos com o ente —
tanto aquele ente que somos como aquele que não somos — sem esta angústia.
Não é ela uma invenção arbitrária e o nada a ela atribuído um exagero?
Entretanto, o que quer dizer: esta angústia originária somente acontece em
raros momentos? Não outra coisa que: o nada nos é primeiramente e o mais das
vezes dissimulado em sua originaridade. E por quê? Pelo fato de nos
perdemos, de determinada maneira, absolutamente junto ao ente. Quanto mais
nos voltamos para o ente em nossas ocupações, tanto menos nós o deixamos
enquanto tal, e tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos
jogamos na pública superfície do ser-aí.

Que é metafísica? - Heidegger [parte 4]


A angústia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir,
e assim, justamente, nos acossa o nada, em sua presença, emudece qualquer
dicção do “é”. O fato de nós procurarmos muitas vezes, na estranheza da
angústia, romper o vazio silêncio com palavras sem nexo é apenas o testemunho
da presença do nada. Que a angústia revela o nada é confirmado imediatamente
pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na posse da claridade do
olhar, a lembrança recente nos leva a dizer: Diante de que e por que nós nos
angustiávamos era “propriamente” — nada. Efetivamente: o nada mesmo —
enquanto tal — estava aí.
Com a determinação da disposição de humor fundamental da angústia
atingimos o acontecer do ser-aí no qual o nada está manifesto e a partir do qual
deve ser questionado.
Que acontece com o nada?

Que é metafísica? - Heidegger [parte 3]


A ciência nada quer saber do nada. Mas não é menos certo também que,
justamente, ali, onde ela procura expressar sua própria essência, ela recorre ao
nada. Aquilo que ela rejeita, ela leva em consideração. Que essência
ambivalente se revela ali?
Ao refletirmos sobre nossa existência presente — enquanto uma existência
determinada pela ciência —, desembocamos num paradoxo. Através deste
paradoxo já se desenvolveu uma interrogação. A questão exige apenas uma
formulação adequada: Que acontece com este nada?

A ELABORAÇÃO DA QUESTÃO

A elaboração da questão do nada deve colocar-nos na situação na qual se
torne possível a resposta ou em que então se patenteie sua impossibilidade. O
nada é admitido. A ciência, na sua sobranceira indiferença com relação a ele,
rejeita-o como aquilo que ‘não existe”.

Que é metafísica? - Heidegger [parte 2]


Tão certo como é que nós nunca podemos compreender a totalidade do
ente em si e absolutamente, tão evidente é, contudo, que nos encontramos
postados em meio ao ente de algum modo desvelado em sua totalidade. E está
fora de dúvida que subsiste uma diferença essencial entre o compreender a
totalidade do ente em si e o encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade.
Aquilo é fundamentalmente impossível. Isto, no entanto, acontece
constantemente em nossa existência.
Parece, sem dúvida, que, em nossa rotina cotidiana, estamos presos sempre
apenas a este ou àquele ente, como se estivéssemos perdidos neste ou naquele
domínio do ente. Mas, por mais disperso que possa parecer o cotidiano, ele
retém, mesmo que vagamente, o ente numa unidade de “totalidade”. Mesmo
então e justamente então, quando não estamos propriamente ocupados com as
coisas e com nós mesmos, sobrevém-nos este em totalidade”, por exemplo, no
tédio propriamente dito. Este tédio ainda está muito longe de nossa experiência
quando nos entedia exclusivamente este livro ou aquele espetáculo, aquela
ocupação ou este ócio. Ele desabrocha se “a gente está entediado”.

QUE É METAFÍSICA? - Heidegger [parte 1]


“Que é metafísica?” — A pergunta nos dá esperanças de que falará sobre a
metafísica. Não o faremos. Em vez disso, discutiremos uma determinada
questão metafísica. Parece-nos que, desta maneira, nos situaremos
imediatamente dentro da metafísica. Somente assim lhe damos a melhor
possibilidade de se apresentar a nós em si mesma.
Nossa tarefa inicia-se com o desenvolvimento de uma interrogação
metafísica, procura, logo a seguir, a elaboração da questão, para encerrar-se
com sua resposta.

O DESENVOLVIMENTO DE UMA INTERROGAÇÃO METAFÍSICA

Considerada sob o ponto de vista do são entendimento humano, é a
filosofia, nas palavras de Hegel, o “mundo às avessas’. É por isso que a
peculiaridade do que empreendemos requer uma caracterização prévia. Esta
surge de uma dupla característica da pergunta metafísica.

O Texto em Ambiente de Hipermídia – Lúcia Santaella

 Citações

“Embora não se possa negar que a quantidade de textos produzidos no século XX seja imensa, os meios de impressão não podem competir com o plano espetacularizado das imagens.  Por isso mesmo, para muitos, o século XX foi o século das imagens e da proeminência dos meios audiovisuais.”  [299]

“Os processos de digitalização do computador absorveram-no, provocando sua migração para as telas dos monitores. Ao ser absorvido para este novo suporte, o texto passou por transformações, por verdadeira mudança.”  [300]

“...o hipertexto passou, há alguns anos, a coabitar com os multimeios, misturas de sons, ruídos, imagens de todos os tipos, fixas e animadas, configurando os ambientes de hipermídia.  O que se tem aí é uma linguagem inaugural em um novo tipo de meio ou ambiente de informação no qual ler, perceber, escrever, pensar e sentir adquirem características inéditas (Landow, 1994, p.11)   [300]

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O pós-moderno – Jean-François Lyotard


Citações
“...a questão do vínculo social, enquanto questão, é um jogo de linguagem, o da interrogação, que posiciona imediatamente aquele que a apresenta, aquele a quem ela se dirige e o referente que ela interroga: esta questão já é assim o vínculo social.”  [29]

“...os enunciados de comando nas forças armadas, de prece nas igrejas, de denotação nas escolas, de narração nas famílias, de interrogação nas filosofias, de desempenho nas empresas... A burocratização é o limite extremo dessa tendências”  [32]

“O saber não é a ciência, sobretudo em sua forma atual; e esta, longe de poder ocultar o problema de sua legitimidade, não pode deixar de apresentá-lo em toda sua amplitude, que não é menos sociopolítica que epistemológica.  Precisemos, de início, a natureza do saber narrativo; este exame permitirá, por comparação, discernir melhor pelo menos certas características da forma de que se reveste o saber científico na sociedade contemporânea.”  [35]

Morte e vida Severina - João Cabral de Mello Neto

— Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.
— E que então, ao chegar,
não tem mais o que esperar.
— Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.
— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.
— E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar.
— Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca.
— Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.

Morte e Vida Severina - João Cabral de Mello Neto [parte 8]

— Mas se teu setor é comparado
à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela
onde não para o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem.
— Então por que não pedes,
já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro
se achas mais leve o serviço?
Não creio que te mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos bangüezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros);
bairro também dos industriais,
dos membros das associações patronais
e dos que foram mais horizontais
nas profissões liberais.