A polissemia presente nas palavras e apresentada em cena mostra
a valência semântica de muitos termos intercambiáveis; praticamente
desconhecidos ao olhar desatento, desconectados de significados suficientemente
fortes para fragmentar o que se acumula entre narrativa e espaço, aludindo à
questões que se remetem ao brasileiro como povo sem pátria e, para o qual o
Brasil é apenas um lugar sem perspectivas, onde não há espaço para sonhos, realizações,
tampouco estabilidades, sejam elas econômicas, sociais, culturais ou qualquer
outra que pudesse ser vislumbrada. Talvez
por isso uma das falas de Alex, personagem de Fernanda Torres, brasileira,
vivendo/sobrevivendo em Lisboa e, ao mesmo tempo, buscando como porto seguro,
uma terra que lhe é desconhecida, um sonho de outrem (Paco) herdado ainda de
outro alguém (Manuela) seja esta, ao encerrar a película, “Não depende do
lugar, quanto mais
o tempo passa, mais eu me sinto
estrangeira...” O que segundo Bauman
(2005, p. 23) pode ser assim definido, “você só tende a perceber as coisas e
colocá-las no foco do seu olhar perscrutador e de sua contemplação quando elas
se desvanecem, fracassam, começam a se comportar estranhamente ou o decepcionam
de alguma outra forma”.
O Brasil foi para essas personagens o pano de fundo da decepção,
que os fez buscar por outro lugar, querendo ardentemente fugir do fracasso e do
estranhamento que sentiam em sua própria terra. Vislumbravam no exterior a (errônea)
possibilidade de se enxergarem protegidos, ultrapassando uma linha divisória que
possivelmente os tornaria figuras menos apagadas e desgastadas.
A partir dessas imbricações de linguagem a trama ficcional
traz fortes apelos de documentário apresentando também um conflito de
identidade de brasileiros que buscam uma saída para toda esta desesperança em
terras estrangeiras. Lisboa passa então a ser o cenário da história e ali é possível
perceber o desconforto de ser estrangeiro, não ter, ou não alimentar um
sentimento de pertença por um lugar que possa ser chamado de seu. O que ao
olhar de Larrosa (2002, p.69) pode ser assim definido, “Sentir a estranheza dele próprio e não poder
se sentir mais em casa, esse é o movimento fundamental do espírito, cujo ser não
é senão a saída de si mesmo (sua permanência posta em questão) no encontro com
o outro.”
Vale ressaltar ainda que ser estrangeiro é o apagamento do
sujeito, e o aparecimento daquele que se sujeita a ser escória da sociedade,
pois, conforme Larrosa (2002, p.83) esclarece “O estrangeiro não se deixa
representar. Não permite que nada o represente (que nada fale em seu nome) e
não quer representar a nada e nem a ninguém. O estrangeiro não representa nada,
senão ele mesmo... Não será o
estrangeiro que nos faz conscientes de que também somos a morada do ausente?”
Diante destas perspectivas, a complexidade da representação
do Brasil e da anulação do sujeito enquanto estrangeiro, reflete as
transformações socioculturais pelas quais passou o país e as discussões acerca
de identidade e estrangeirismo ancoradas no pensamento de teóricos Zygmunt
Bauman e Jorge Larrosa Bondía. Os personagens, na trama, desabafam seus medos,
de se sentirem estrangeiros, desenraizados que estão, sem um território
determinado, tendo como seu, para lhes dar a sensação de um pouco de
identidade, apenas a língua, relacionam-se com os demais buscando demarcar sua
alteridade, mostrando-se como pessoas que delineiam seus papéis em meio à
solidão em que vivem, ao vazio que sentem e procuram lançar um olhar diferente
mesmo em meio às tantas dificuldades encontradas para instaurar a possibilidade
de novas construções em um lugar no qual faça mais sentido ser alguém do que a
representação da imagem de estrangeiros que são.
Além dessas questões a poética do filme encontra-se também na
beleza da fotografia em preto e branco para marcar o período Collor e os sonhos
que com ele ruíram. Em estilo 'noir', é uma exibição brasileira que merece ser
vista e discutida, pois levanta questões para acordar memórias e reconstruir, a
partir de fragmentos, aquilo que está destruído, neste caso, sonhos,
identidades, pertencimentos. Afinal, nessa era de completo triunfo do
espetáculo, expropria-se das pessoas sem que elas sequer percebam, grande parte
de sua capacidade crítico-reflexiva, que por sua vez deveria ser algo tão
normal, tão natural, quanto alimentar-se ou respirar.
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