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terça-feira, 16 de julho de 2013

A síndrome do "copia e cola" - Edgard Murano

                                

A dificuldade de identificar a autoria de textos e ideias em tempos de "Ctrl-c, Ctrl-v"

       Foram 13 anos até que o Superior Tribunal de Justiça concedesse ganho de causa à rede Globo num processo por plágio. 

A escritora de livros infantis Eliane Ganem alegava que a minissérie global Aquarela do Brasil, escrita por Lauro Cesar Muniz, usava um argumento seu, que ela diz ter submetido a outras emissoras na época. Muniz afirmou em sua defesa que o mote principal da série - o da personagem que se torna famosa - era uma ideia banal, que carecia de ineditismo.                                 



Apesar da vitória da emissora, o caso ganha ambiguidade pelo simples fato de Eliane ter registrado a obra na Biblioteca Nacional em 1996 com o mesmo nome da minissérie, que foi ao ar quatro anos depois. Em 2008, a Justiça já havia ordenado o pagamento de uma indenização de R$ 100 mil à autora. Mas agora, com a decisão da 4ª Turma do STJ, a ação foi definitivamente encerrada. 



Rede
O que disputas como essa parecem evidenciar, para além das reviravoltas jurídicas, é a delicada questão da autoria. O que caracteriza uma ideia original? Numa seara como a da propriedade intelectual, em que a materialidade das provas às vezes é tão palpável quanto fumaça, a velha pergunta sobre o que é novo volta revigorada a cada escândalo de plágio. A complexidade dos casos acaba colocando em xeque o próprio conceito de originalidade. 



A internet facilitou o manuseio da informação. Seus mecanismos automatizaram nossa relação com o texto. Sinal disso é a popularidade da expressão "Ctrl-c, Ctrl-v", comando equivalente a "copiar e colar" em navegadores e processadores de texto, emblema de uma geração que pouco digere do material que encontra na internet, reproduzindo-o como se fosse seu. 



Outro sintoma alarmante da banalização do plágio também se encontra no ambiente universitário e acadêmico, cuja credibilidade vem sendo solapada por denúncias de apropriações não creditadas de teses e artigos acadêmicos [ver quadro da página ao lado]. 



Espírito
No jornalismo, o plágio também já fez suas vítimas: nos EUA, o jornalista e escritor Fareed Zakaria foi suspenso pela revista Time por se apropriar de trechos de um artigo da New Yorker em 2012. 



Nem a literatura escapou desse fantasma no episódio, agora célebre, que envolveu Max e os Felinos (1981), de Moacyr Scliar, e A Vida de Pi (2001), de Yan Martel. 



- Até onde possa me lembrar, nunca fui vítima de plágio. Até porque em literatura isso é muito complexo. Os temas são eternos e nós todos circulamos entre eles. Aqueles que procuram escrever a todo custo terminam copiando e, é claro, errando. Muitos escritores fracassam porque querem o sucesso e não o êxito. E, em literatura, só o êxito interessa - afirma o escritor Raimundo Carrero, autor de Tangolomango (Record). 



O sucesso, no entanto, parece ter vindo acompanhado também pelo êxito no caso do escritor canadense Yan Martel. Vencedor do Booker Prize 2002 com o romance A Vida de Pi, adaptado em 2012 para os cinemas por Ang Lee, Martel não só assume ter se inspirado na premissa de Max e os Felinos como se gabou de ter aproveitado melhor a história do menino preso num barco com um tigre. 



As semelhanças entre as obras foram notadas pela primeira vez pelo jornal inglês The Guardian, à época do lançamento do livro de Martel, que, pressionado pela imprensa, contra-atacou: "Será que haveria o mesmo escândalo se eu dissesse que me inspirei na arca de Noé?". 



Mais tarde, Martel e Scliar entrariam em acordo amigável, intermediado por Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, que passaria a editar o escritor gaúcho. 



O que parece estar em jogo na provocação do escritor canadense, no entanto, é o fato de que certas ideias não são exclusivas de uma cabeça, mas pertencem a uma narrativa maior, de domínio coletivo, podendo ser retrabalhadas por vários autores em tempos diferentes e de formas diversas. O que não exclui o fato de que as similaridades entre as obras de Martel e Scliar são muito mais concretas e específicas do que a metáfora genérica da arca de Noé. 



No caso da minissérie global Aquarela do Brasil, o resultado da perícia atestou que tanto a ideia de Lauro Cesar Muniz quanto a de Eliane Ganem eram inéditas, sem semelhanças suficientes que configurassem plágio. É como se as duas ideias, na verdade uma só, tivessem nascido pelas mãos de autores diferentes separados no tempo e no espaço, resultado de algum espírito de época [Zeitgeist, em alemão] ou sob inspiração de algum elemento cultural recorrente. 



Em outras palavras, a trajetória de uma cantora que sai da pobreza para o estrelato, posto dessa maneira, não chega a ser novidade, ainda que a "coincidência" entre os nomes das tramas de Muniz e Eliane nos deixe com a pulga atrás da orelha. 



"Não é possível deter direitos sobre temas", afirmou o ministro e relator do processo Luis Felipe Salomão, que por sua vez citou em sua decisão o doutrinador Hermano Duval, para quem ideia e forma de expressão são coisas independentes. 



Em Direitos Autorais nas Invenções Modernas (1956), obra de referência nos estudos sobre propriedade intelectual, Duval afirma que uma ideia "não pertence exclusivamente aos autores das obras em conflito, pertence a um patrimônio comum da humanidade". 



Se no conteúdo as evidências de plágio tendem a ser vagas, passíveis de reformulações e subterfúgios de estilo, na expressão a forma com frequência denuncia o decalque. 



Com estilo
O escritor francês Michel Houellebecq que o diga. Em 2010, foi acusado de plágio pelo site Slate, que descobriu trechos inteiros de verbetes da Wikipédia francesa reproduzidos no romance O Mapa e o Território (Record). 



Houellebecq, obviamente, negou as acusações, as quais considerou "rídiculas". Mas sua inocência deve-se antes ao gesto deliberado de reproduzir os trechos do que ao crime de falsa autoria. "Se as pessoas de fato pensam isso, então elas não têm a menor noção do que é literatura. Isso faz parte do meu método", rebateu. 



A premissa de Houellebecq, fundamentada no uso estilístico do plágio, mostra-se afinada com as vanguardas literárias mais recentes, cujos experimentos com a matéria verbal partem de princípios como reorganização, reciclagem, reapropriação e até mesmo plágio deliberado. 



Não por acaso, o escritor Kenneth Goldsmith, editor do site UbuWeb - dedicado à literatura conceitual - pegou emprestado o termo "unoriginal" [algo como "desoriginal"] da crítica literária Marjorie Perloff para tecer seu artigo-manifesto It''s Not Plagiarism. In the Digital Age, It''s "Repurposing." [Não é plágio. Na era digital, é "repropósito"]. 



Para Goldsmith, numa época abarrotada de textos como a atual, não haveria necessidade de escrever mais. Em vez disso, ele defende a necessidade de "aprender a negociar a vasta quantidade que já existe". "Como eu abro caminho em meio a esse matagal de informação - como eu o gerencio, analiso, organizo e distribuo - é o que distingue a minha escrita da sua." 



- É uma literatura em que o autor quase não escreve, e cujos métodos se assemelham à colagem dos pintores cubistas e à apropriação de objetos industriais feita por artistas como Marcel Duchamp ou Andy Warhol - explica o escritor Braulio Tavares, colunista de Língua, referindo-se ao método preconizado por Goldsmith. 



Mas aquilo que as vanguardas pós-modernas passaram a tratar como colagem, reapropriação ou seja lá que nome leve, no início do século 20 já se encontrava formulado pelos primeiros modernistas, premidos pela perspectiva de que nada mais pudesse ser feito, já que tudo havia sido dito pelas gerações anteriores. 



A questão da originalidade, por exemplo, foi tema central na obra de escritores como T. S. Eliot, autor de Terra Devastada, que comparou os poetas aos ladrões no ensaio "Philip Massinger", em Sacred Wood [floresta sagrada]: 



"Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam; maus poetas deformam aquilo que tomam, e bons poetas fazem daquilo algo melhor, ou ao menos algo diferente".



Reapropriação
Seguindo a metáfora eliotiana, o escritor e tradutor Gabriel Perissé, de Língua, acrescenta: 



- Devemos ser tão bons ladrões que ninguém perceba que fizemos com o alheio algo melhor. O plágio criativo perfeito é quando o roubo é seguido de assassinato, e nem precisamos citar a vítima, cuja alma absorvemos e cujo corpo escondemos dentro do nosso próprio texto.



Uma frase em particular, já atribuída a tantos autores no século passado a ponto de ser considerada apócrifa, dá bem a medida da relativização do conceito de originalidade em nossa época, além de ser ela própria uma "licença poética" para o plágio criativo: 



"Se você rouba de um autor, é plágio; se você rouba de vários, é pesquisa". 



Segundo o site Quote investigator, o primeiro registro desse enunciado é de 1932, seguido de variações que às vezes levavam em conta "livros" em vez de "autor", "novidade" em vez de "pesquisa", entre outras equivalências. Sua mensagem, porém, permaneceu intacta. Em outras palavras, reside na multiplicidade de vozes a base de uma linguagem original. E quanto menor o número de fontes de inspiração e de pesquisa, maior a chance de soar parecido com algo que já foi produzido. 



Criptomnésia
Um dos casos mais conhecidos de "roubo" na literatura talvez seja o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, publicado em 1955. 



Diferentemente do que se imagina, a história do homem culto, que recorda seu caso tórrido com uma pré-adolescente, na verdade foi publicada pela primeira vez sob a forma de um conto pelo alemão Heinz von Lichberg, em 1916. 



O escritor e ensaísta Jonathan Lethem relata a estranha coincidência entre essas duas narrativas no artigo "O êxtase da influência", publicado em 2007 pela Harper''s. No texto, Lethem se detém sobre a possibilidade de Nabokov ter se apoderado da trama conscientemente enquanto esteve em Berlim, em 1937. 



Outra hipótese levantada pelo ensaísta é a de que um dos romances mais populares do século 20 tenha sido fruto de um fenômeno conhecido como criptomnésia, espécie de plágio "não deliberado" que ocorre quando uma memória ressurge sem que o sujeito se dê conta de sua origem, tratando-a como se fosse original. 



- A criptomnésia é uma memória escondida, que não se sabe ter. O fenômeno pode ser cogitado quando o artista nega ter feito o plágio de forma intencional ou não se lembra de ter "copiado" algo - explica Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo e coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica. 



Para Barros, a tese da criptomnésia, na prática, é muito difícil de ser provada, mas por ser uma tese acatada pela Justiça, pode servir como atenuante. 



- Embora não se trate de uma doença, não há deliberação racional ou produção intencional - pondera. 



Ainda que a modernidade tenha colocado na berlinda a questão da autoria - e os pós modernos a esgarçaram a ponto de quase aniquilar o conceito - há quem discorde dessa pulverização do autor. 



Para o crítico e escritor Antonio Cicero está claro que "a morte do autor", postulada pelo teórico Roland Barthes em ensaio homônimo [ver quadro na próxima página], deve ser entendida em termos da autonomia do texto em relação ao seu produtor, e não propriamente como a insignificância deste. Em ensaio publicado na Folha de S.Paulo em 2010, Cicero questiona o conceito que influenciou gerações de estruturalistas e de estudos literários: 



"Ao contrário do que Barthes pretende, não é verdade que o autor seja ''uma figura moderna'', um produto de nossa sociedade na medida em que, ao emergir da Idade Média com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz de modo mais elevado, da ''pessoa humana''". 



Cicero acrescenta que "A figura do autor é indissociável do próprio emprego da escritura e já se encontra inteiramente definida na Antiguidade clássica."



Se a segunda metade do século 20 assistiu ao declínio do autor nos círculos teóricos e acadêmicos, talvez estejamos presenciando um renascimento, neste início de século 21, do conceito de autor como uma espécie de "curador" de conteúdos e formas. 



Não que seu papel tenha se restringido à mera reprodução do que já foi dito. Mas a onipresença de informações proporcionada pelas novas tecnologias de comunicação desobrigou-o da originalidade absoluta, idealizada, cabendo-lhe organizar e dialogar com outras ideias e discursos em busca de uma nova identidade, ainda que fragmentada. 




         



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