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terça-feira, 5 de março de 2013

Uma Noite de Natal - David Gonçalves


Lá vai o homem que alimentará os sonhos nesta noite de Natal. Faz muito calor e ele pedala a velha bicicleta pelas ruas ensolaradas. Está desempregado e as festa para ele sua família serão minguadas. Sem dinheiro, o Menino não entrará em sua casa. O chamado para aquele "bico" veio em boa hora. Nada mal receber 50 reais por uma noite. Para quem não tem nada, poeira é roupa. O suor escorre pelas faces magras. É a primeira vez que se vestirá de Papai-Noel. Sem trabalho, seria o único sustento da família. A loja do shopping mandou chamá-lo. O Papai Noel ficara doente, vítima de uma tosse forte. Lembraram-se dele. Lá vai ele pedalando a bicicleta velha debaixo do sol escaldante.



- Está atrasado! - reclama o lojista. - Vista-se rápido! Maria, arrume um travesseiro para encher a barriga dele. Papai Noel magro não combina, dá azar...

Veste-se rapidamente, coloca o travesseiro sobre a barriga, enfia o capuz sobre a cabeleira postiça, fixa o bigode e a barba brancos. Ah, ainda tem os óculos. Agora, sim. Mira-se no espelho e grita "ôhôhôhhh". O dono aprova. Senta-se na frente da loja, com um saco de balas, à espera das crianças.

Vem o primeiro, um guri de quase dois anos. Faz carinhos distribui afagos, deixa-se fotografar, diz repetidamente. "ôhôhôhhh! Que belo menino!" Joga balas. De repente, as crianças vão chegando, todos querem sentar em seu colo, alguns puxam a sua barba branca, ele dá uns fortes beliscões sem a mãe perceber, o garoto sai chorando.

O  shopping está superlotado. Homens e mulheres passam carregando pacotes de presentes. Há no ar uma alegria viva. O mundo rico desfila diante de seus olhos. Encantado pelo brilho das luzes e os cânticos natalinos, também se sente parte daquele mundo mágico. O Salvador do mundo nascerá novamente. Sente muito calor. Uma leve tontura o deixa exausto, meio bambo. Os meninos querem seu colo.  Pacientemente, ele os recebe. Alguns tímidos, outros - por Deus! - verdadeiros demônios. Mas ele está ali para isso. Distribui balas, afagos e, quando necessário, alguns beliscões fortes. 

Na frente, logo adiante, bares e restaurantes estão lotados. Bebidas são consumidas com avidez. Muitos brindam. Afinal, é Natal, o Salvador do mundo nascerá para salvar a humanidade... Ele sente sede, pede água, mas a sede continua. Há dois anos deixara o álcool. Mas, de repente, uma vontade de beber o assola, deixa a garganta seca. Aos poucos, se irrita. Por que ser saco de pancadas? Por 50 reais! Ele deveria estar no bar, como qualquer pessoa, comemorando. Lembra-se da promessa que fizera: "Evite o primeiro gole!" Volta-se, desesperado, a pensar naquelas crianças - quase todos filhos de ricos. Ah, se não fosse por 50 reais, abandonaria tudo! Estava sendo ridículo, enganando as pessoas. Sentia-se um fantoche, um palhaço, nada mais.

- Você não está dando atenção às crianças! - reclama o dono da loja.

O dinheiro enche o caixa.  A loja está cheia. Nunca se vendeu tanto. Ele olha as horas. Ainda falta uma hora para o shopping fechar. O mundo dos ricos desfila a sua frente. Que martírio! Pensa mil coisas, a garganta seca, louco por um gole de cerveja ou qualquer outra coisa. Menos água. Dá um beliscão forte numa criança travessa, que sai chorando. A mãe o olha assustada, ele sorri  como inocente. O calor aumenta. O suor desce às costas e molha a cueca. Que hora interminável! Entretanto, o sacrifício termina. Ele se livra daquelas roupas, veste as suas - uma camisa xadrez puída e uma calça jeans desbotada, já esfiapada - e se apresenta no caixa da loja. Recebe os 50 reais e sai pedalando a velha bicicleta, desviando-se das pessoas. Lá vai ele - desesperado, a garganta seca e cada porta de bar é um convite.  "Evite o primeiro gole" - ouve alguém gritar em sua consciência. Aos poucos, o mundo dos pobres se apresenta nais vielas e casas tortuosas. Mesmo assim, as ruas e casas estão enfeitadas e brilham. Então, já distante do centro da cidade, ele para: o bar está cheio. Deixa a bicicleta na porta e pede um copo de cachaça. As mãos estão trêmulas, a garganta está seca, o Menino nascerá para salvar a humanidade. Ele joga o líquido amargo de um só golpe goela abaixo e sente a secura aos poucos desaparecer. Pede outro. Sente a alegria renascer. Uma doce sensação de bem-estar dopa o cérebro.  Os 50 reais, copo a copo, vão desaparecendo. O Menino já nasceu. O mundo pode ficar tranquilo: todos estão salvos - inocentes e culpados. Gasta o último centavo. Sente as pernas bambas. As imagens se embaralham. Sai em direção da porta. Onde está a bicicleta? Não a encontra. Tinham roubado. E agora? Sai em ziguezague, tropeçando. É motivo de riso por onde passa. Um cachorro de pelos amarelos e magro late a sua passagem. É quase madrugada e muitos ainda continuam festejando. De repente, zás! Um carro o joga longe. Ninguém lhe presta socorro. Ele está estatelado no asfalto, nem sabe o que aconteceu, o sangue escorre da testa em filetes vivos. Alguém chama a ambulância.

Lá vai o homem dos nossos sonhos nesta noite de Natal... Inconsciente, murmura: "ôhôhôhhh!!!" O sangue ensopa a sua roupa puída. Papai Noel o leva céu afora sobre as luzes da cidade no amanhecer.

Sugestões de atividade para interpretação de texto

1 - No texto "Uma Noite de Natal", de David Gonçalves, que sonhos você imagina que possam ser alimentados?

2 - Este Papai Noel era diferente? Por quê? Justifique sua resposta.

3 - Por que o dono da loja reclamou que Papai Noel não dava atenção às crianças? Qual a segunda intenção por trás desta fala?

4 - Papai Noel ouviu uma voz em sua consciência dizendo: "Evite o primeiro gole". O que isto nos permite inferir?

5 - Pelas pistas deixadas no texto, como você imagina que deve ter sido o natal da família do Papai Noel?

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