O Conceito de Esclarecimento (parte 1)
No sentido mais amplo do progresso do
pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objectivo de livrar os
homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente
esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do
esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos
e substituir a imaginação pelo saber . Bacon, "o pai da filosofia
experimental", (l) já reunira seus diferentes temas. Ele desprezava os
adeptos da tradição, que "primeiro acreditam que os outros sabem o que
eles não sabem; e depois que eles próprios sabem o que não sabem. Contudo, a
credulidade, a aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com
o saber , a timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguiça nas
investigações pessoais, o fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos
parciais: isto e coisas semelhantes impediram um casamento feliz do
entendimento humano com a natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso, a
conceitos vãos e experimentos erráticos; o fruto e a posteridade de tão
gloriosa união pode-se facilmente imaginar. A imprensa não passou de uma
invenção grosseira; o canhão era uma invenção que já estava praticamente
assegurada; a bússola já era, até certo ponto, conhecida. Mas que mudança essas
três invenções produziram - uma na ciência, a outra na guerra, a terceira nas
finanças, no comércio e na navegação! E foi apenas por acaso, digo eu, que a
gente tropeçou e caiu sobre elas. Portanto, a superioridade do homem está no
saber, disso não há dúvida. Nele muitas coisas estão guardadas que os reis, com
todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre as quais sua vontade não
impera, das quais seus espias e informantes nenhuma notícia trazem, e que
provêm de países que seus navegantes e descobridores não podem alcançar. Hoje,
apenas presumimos dominar a natureza, mas, de facto, estamos submetidos à sua
necessidade; se contudo nos deixássemos guiar por ela na invenção, nós a
comandaríamos na prática". (2)
Apesar de seu alheamento à matemática,
Bacon capturou bem a mentalidade da ciência que se fez depois dele. O casamento
feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas que ele tem em mente
é patriarcal: o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a
natureza desencantada. O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na
escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo. Do
mesmo modo que está a serviço de todos os fins da economia burguesa na fábrica
e no campo de batalha, assim também está à disposição dos empresários, não
importa sua origem. Os reis não controlam a técnica mais directamente do que os
comerciantes: ela é tão democrática quanto o sistema económico com o qual se
desenvolve. A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e
imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho
de outros, o capital. As múltiplas coisas que, segundo Bacon, ele ainda encerra
nada mais são do que instrumentos: o rádio, que é a imprensa sublimada; o avião
de caça, que é uma artilharia mais eficaz; o controle remoto, que é uma bússola
mais confiável. O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la
para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor
consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o último
resto de sua própria autoconsciência. Só o pensamento que se faz violência a si
mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos. Diante do actual triunfo
da mentalidade factual, até mesmo o credo nominalista de Bacon seria suspeito
de metafísica e incorreria no veredicto de vacuidade que proferiu contra a
escolástica. Poder e conhecimento são sinónimos. (3) Para Bacon, como para
Lutero, o estéril prazer que o conhecimento proporciona não passa de uma
espécie de lascívia. O que importa não é aquela satisfação que, para os homens,
se chama "verdade", mas a "operation", o
procedimento eficaz. Pois não é nos "discursos plausíveis, capazes de
proporcionar deleite, de inspirar respeito ou de impressionar de uma maneira
qualquer, nem em quaisquer argumentos verosímeis, mas em obrar e trabalhar e na
descoberta de particularidades antes desconhecidas, para melhor prover e
auxiliar a vida", que reside "o verdadeiro objectivo e função da
ciência". (4) Não deve haver nenhum mistério, mas tampouco o desejo de sua
revelação.
Desencantar o mundo é destruir o
animismo. Xenófanes zombava da multidão de deuses, porque eram iguais aos
homens, que os produziram, em tudo aquilo que é contingente e mau, e a lógica
mais recente denuncia as palavras cunhadas pela linguagem como moedas falsas,
que será melhor substituir por fichas neutras. O mundo torna-se o caos, e a
síntese, a salvação. Nenhuma distinção deve haver entre o animal totémico, os
sonhos do visionário e a Ideia absoluta. No trajecto para a ciência moderna, os
homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa
pela regra e pela probabilidade. A causa foi apenas o último conceito
filosófico que serviu de padrão para a crítica científica, porque ela era, por
assim dizer, dentre todas as ideias antigas, o único conceito que a ela ainda
se apresentava, derradeira secularização do princípio criador. A filosofia
buscou sempre, desde Bacon, uma definição moderna de substância e qualidade, de
acção e paixão, do ser e da existência, mas a ciência já podia passar sem
semelhantes categorias. Essas categorias tinham ficado para trás como idola
theatri da antiga metafísica e já eram, em sua época, monumentos de
entidades e potências de um passado pré-histórico. Para este, a vida e a morte
haviam se explicado e entrelaçado nos mitos. As categorias, nas quais a
filosofia ocidental determinava sua ordem natural eterna, marcavam os lugares
outrora ocupados por Ocnos e Perséfone, Ariadne e Nereu. As cosmologias
pré-socráticas fixam o instante da transição. O húmido, o indiviso, o ar, o
fogo, aí citados como a matéria primordial da natureza, são apenas sedimentos
racionalizados da intuição mítica. Assim como as imagens da geração a partir
das águas do rio e da terra se tornaram, entre os gregos, princípios
hilozoistas, elementos, assim também toda a luxuriante plurivocidade dos
demónios míticos espiritualizou-se na forma pura das entidades ontológicas. Com
as Idéias de Platão, finalmente, também os deuses patriarcais do Olimpo foram
capturados pelo logos filosófico.
O esclarecimento, porém, reconheceu as
antigas potências no legado platónico e aristotélico da metafísica e instaurou
um processo contra a pretensão de verdade dos universais, acusando-a de
superstição. Na autoridade dos conceitos universais ele crê enxergar ainda o
medo pelos demónios, cujas imagens eram o meio, de que se serviam os homens, no
ritual mágico, para tentar influenciar a natureza. Doravante, a matéria deve
ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a
ilusão de qualidades ocultas. O que não se submete ao critério da
calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento. A
partir do momento em que ele pode se desenvolver sem a interferência da coerção
externa, nada mais pode segurá-lo. Passa-se então com as suas ideias acerca do
direito humano o mesmo que se passou com os universais mais antigos. Cada
resistência espiritual que ele encontra serve apenas para aumentar sua força.
(5) Isso se deve ao facto de que o esclarecimento ainda se reconhece a si mesmo
nos próprios mitos. Quaisquer que sejam os mitos de que possa se valer a
resistência, o simples facto de que eles se tornam argumentos por uma tal
oposição significa que eles adoptam o princípio da racionalidade corrosiva da
qual acusam o esclarecimento. O esclarecimento é totalitário.
Para ele, o elemento básico do mito
foi sempre o antropomorfismo, a projeção do subjetivo na natureza. (6) O
sobrenatural, o espírito e os demónios seriam as imagens especulares dos homens
que se deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras míticas podem se
reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito. A
resposta de Édipo ao enigma da esfinge: "É o homem!" é a informação
estereotipada invariavelmente repetida pelo esclarecimento, não importa se este
se confronta com uma parte de um sentido objectivo, o esboço de uma ordem, o
medo de potências maléficas ou a esperança da redenção. De antemão, o
esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela
unidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e cada coisa.
Não é
nisso que sua versão racionalista se distingue da versão empirista. Embora as
diferentes escolas interpretassem de maneira diferente os axiomas, a estrutura
da ciência unitária era sempre a mesma. O postulado baconiano da una
scientia universalis (7) é, apesar de todo o pluralismo das áreas de
pesquisa, tão hostil ao que não pode ser vinculado, quanto a mathesis
universalis de Leibniz à descontinuidade. A multiplicidade das figuras se
reduz à posição e à ordem, a história ao facto, as coisas à matéria. Ainda de
acordo com Bacon, entre os primeiros princípios e os enunciados observacionais
deve subsistir uma ligação lógica unívoca, medida por graus de universalidade.
De Maistre zomba de Bacon por cultivar "une idole d'échelle".
(8) A lógica formal era a grande escola da unificação. Ela oferecia aos
esclarecedores o esquema da calculabilidade do mundo. O equacionamento
mitologizante das Ideias com os números nos últimos escritos de Platão exprime
o anseio de toda desmitologização: o número tomou-se o cânon do esclarecimento.
As mesmas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil. "Não é
a regra: 'se
adicionares o desigual ao igual obterás algo de desigual' (Si inaequalibus
aequalia addas, omnia erunt inaequalia) um princípio tanto da justiça
quanto da matemática? E não existe uma verdadeira coincidência entre a justiça
cumulativa e distributiva por um lado e as proporções geométricas e aritméticas
por outro lado? (9) A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela
torna o heterogéneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstractas. Para o
esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a
ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura.
"Unidade" continua a ser a divisa, de Parménides a Russell. O que se
continua a exigir insistentemente é a destruição dos deuses e das qualidades.
Mas os mitos que caem vítimas do
esclarecimento já eram o produto do próprio esclarecimento. No cálculo
científico dos acontecimentos anula-se a conta que outrora o pensamento dera,
nos mitos, dos acontecimentos. O mito queria relatar, denominar, dizer a
origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registo e a colecção dos
mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para
se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma representação dos
acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia. Esse
elemento teórico do ritual tornou-se autónomo nas primeiras epopeias dos povos.
Os mitos, como os encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo
daquela disciplina e poder que Bacon enaltece como o objectivo a se alcançar. O
lugar dos espíritos e demónios locais foi tomado pelo céu e sua hierarquia; o
lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, pelo sacrifício bem
dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando. As deidades olímpicas não
se identificam mais directamente aos elementos, mas passam a significá-los. Em
Homero, Zeus preside o céu diurno, Apolo guia o sol, Hélio e Éo já tendem para
o alegórico. Os deuses separam-se dos elementos materiais como sua suprema
manifestação. De agora em diante, o ser se resolve no logos - que, com o
progresso da filosofia, se reduz à mónada, mero ponto de referência - e na
massa de todas as coisas e criaturas exteriores a ele. Uma única distinção, a
distinção entre a própria existência e a realidade, engolfa todas as outras
distinções. Destruídas as distinções, o mundo é submetido ao domínio dos
homens. Nisso estão de acordo a história judia da criação e a religião
olímpica. " ...e dominarão os peixes do mar e as aves do céu e o gado e a
terra inteira e todos os répteis que se arrastam sobre a terra." (10)
"Zeus, nosso pai, sois o senhor dos céus, e a vosso olhar não escapa
nenhuma obra humana, sacrílegas ou justas, e nem mesmo a turbulência dos
animais, e estimais a rectidão."(11) "E assim se passa que um expia
logo, um outro mais tarde. E mesmo que alguém escape ao castigo e o fado
ameaçador dos deuses não o alcance, este acaba sempre por chegar, e são pessoas
inocentes - seus filhos ou uma outra geração - que terão de expiar o
crime." (12) Perante os deuses, só consegue se afirmar quem se submete sem
restrições. O despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como
o princípio de todas as relações. Em face da unidade de tal razão, a separação
de Deus e do homem reduz-se àquela irrelevância que, inabalável, a razão
assinalava desde a mais antiga crítica de Homero. Enquanto soberanos da
natureza, o deus criador e o espírito ordenador se igualam. A imagem e
semelhança divinas do homem consistem na soberania sobre a existência, no olhar
do senhor, no comando.
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