Total de visualizações de página

domingo, 10 de março de 2013

A dialética do esclarecimento - Theodor W. Adorno

Conceito de Esclarecimento (parte 2)


O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objectividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação. Essa identidade constitui a unidade da natureza. Assim como a unidade do sujeito, ela tampouco constitui um pressuposto da conjuração mágica. Os ritos do xamã dirigiam-se ao vento, à chuva, à serpente lá fora ou ao demónio dentro do doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e o mesmo espírito que se dedicava à magia; ele mudava igual às máscaras do culto, que deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos. A magia é a pura e simples inverdade, mas nela a dominação ainda não é negada, ao se colocar , transformada na pura verdade, como a base do mundo que a ela sucumbiu. O feiticeiro torna-se semelhante aos demónios; para assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar assustadiço ou suave. Embora seu ofício seja a repetição, diferentemente do civilizado - para quem os modestos campos de caça se transformam no cosmo unificado, no conjunto de todas as possibilidades de presas - ele ainda não se declarou à imagem e semelhança do poder invisível. É só enquanto tal imagem e semelhança que o homem alcança a identidade do eu que não pode se perder na identificação com o outro, mas toma definitivamente posse de si como máscara impenetrável. É à identidade do espírito e a seu correlato, à unidade da natureza, que sucumbem as múltiplas qualidades. A natureza desqualificada torna-se a matéria caótica para uma simples classificação, e o eu todo-poderoso torna-se o mero ter, a identidade abstracta. Na magia existe uma substitutividade específica. O que acontece à lança do inimigo, à sua cabeleira, a seu nome, afecta ao mesmo tempo a pessoa; em vez do deus, é o animal sacrificial que é massacrado. A substituição no sacrifício assinala um novo passo em direcção à lógica discursiva. Embora a cerva oferecida em lugar da filha e o cordeiro em lugar do primogénito ainda devessem ter qualidades próprias, eles já representavam o género e exibiam a indiferença do exemplar. 


Mas a sacralidade do hic et nunc, a singularidade histórica do escolhido, que recai sobre o elemento substituto, distingue-o radicalmente, torna-o introcável na troca. É a isso que a ciência dá fim. Nela não há nenhuma substitutividade específica: se ainda há animais sacrificiais, não há mais Deus. A substitutividade converte-se na fungibilidade universal. Um átomo é desintegrado, não em substituição, mas como um espécime da matéria, e a cobaia atravessa, não em substituição, mas desconhecida como um simples exemplar, a paixão do laboratório. Porque na ciência funcional as distinções são tão fluidas que tudo desaparece na matéria una, o objecto científico se petrifica, e o rígido ritual de outrora parece flexível porquanto substituía a um também o outro. O mundo da magia ainda continha distinções, cujos vestígios desapareceram até mesmo da forma linguística. (13) As múltiplas afinidades entre os entes são recalcadas pela única relação entre o sujeito doador de sentido e o objecto sem sentido, entre o significado racional e o portador ocasional do significado. No estágio mágico, sonho e imagem não eram tidos como meros sinais da coisa, mas como ligados a esta por semelhança ou pelo nome. A relação não é a da intenção, mas do parentesco. Como a ciência, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objecto. Ela não se baseia de modo algum na "omnipotência dos pensamentos", que o primitivo se atribuiria, segundo se diz, assim como o neurótico. (14) Não pode haver uma "superestimação dos processos psíquicos por oposição à realidade", quando o pensamento e a realidade não estão radicalmente separados. A "confiança inabalável na possibilidade de dominar o mundo", (15) que Freud anacronicamente atribui à magia, só vem corresponder a uma dominação realista do mundo graças a uma ciência mais astuciosa do que a magia. Para substituir as práticas localizadas do curandeiro pela técnica industrial universal foi preciso, primeiro, que os pensamentos se tornassem autónomos em face dos objectos, como ocorre no ego ajustado à realidade.

Enquanto totalidade desenvolvida linguisticamente, que desvaloriza, com sua pretensão de verdade, a crença mítica mais antiga: a religião popular, o mito patriarcal solar é ele próprio esclarecimento, com o qual o esclarecimento filosófico pode-se medir no mesmo plano. A ele se paga, agora, na mesma moeda. A própria mitologia desfecha o processo sem fim do esclarecimento, no qual toda concepção teórica determinada acaba fatalmente por sucumbir a uma crítica arrasadora, à crítica de ser apenas uma crença, até que os próprios conceitos de espírito, de verdade, e até mesmo de esclarecimento tenham-se convertido em magia animista. O princípio da necessidade fatal, que traz a desgraça aos heróis míticos e que se desdobra a partir da sentença oracular como uma consequência lógica, não apenas domina todo sistema racionalista da filosofia ocidental, onde se vê depurado até atingir o rigor da lógica formal, mas impera até mesmo sobre a série dos sistemas, que começa com a hierarquia dos deuses e, num permanente crepúsculo dos ídolos, transmite sempre o mesmo conteúdo: a ira pela falta de honestidade. Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que dá, na mitologia. Todo conteúdo, ele o recebe dos mitos, para destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na órbita do mito. Ele quer se furtar ao processo do destino e da retribuição, fazendo-o pagão, ele próprio, uma retribuição. No mito, tudo o que acontece deve expiar uma pena pelo facto de ter acontecido. E assim continua no esclarecimento: o facto torna-se nulo, mal acabou de acontecer. A doutrina da igualdade entre a acção e a reacção afirmava o poder da repetição sobre o que existe muito tempo após os homens terem renunciado à ilusão de que pela repetição poderiam se identificar com a realidade repetida e, assim, escapar a seu poder. Mas quanto mais se desvanece a ilusão mágica, tanto mais inexoravelmente a repetição, sob o título da submissão à lei, prende o homem naquele ciclo que, objectualizado sob a forma da lei natural, parecia garanti-lo como um sujeito livre. O princípio da imanência, a explicação de todo acontecimento como repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio mito. A insossa sabedoria para a qual não há nada de novo sob o sol, porque todas as cartas do jogo sem-sentido já teriam sido jogadas, porque todos grandes pensamentos já teriam sido pensados, porque as descobertas possíveis poderiam ser projectadas de antemão, e os homens estariam forçados a assegurar a autoconservação pela adaptação - essa insossa sabedoria reproduz tão-somente a sabedoria fantástica que ela rejeita: a ratificação do destino que, pela retribuição, reproduz sem cessar o que já era. O que seria diferente é igualado. Esse é o veredicto que estabelece criticamente os limites da experiência possível. 


Nenhum comentário: