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sábado, 25 de junho de 2011

3 - A VIRGEM DE DALTON E OUTRAS MULHERES

3.1 - A mulher na sociedade


No decorrer da história a mulher teve uma perda considerável com o desmoronamento do direito materno.  Para KOLONTAI (2003) essa foi a primeira grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo.  Surgiu então a família patriarcal, presidida pelo pai e cuja vontade era lei.  Com isso o homem apoderou-se da direção da casa, a mulher viu-se como degradada, convertida em servidora, escrava da luxúria do homem e apenas instrumento de reprodução.

Essa baixa condição da mulher vem sendo gradualmente retocada, dissimulada e em certos casos até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida.

O primeiro efeito do poder exlclusivo dos homens, desde que se instaurou foi assegurar a finalidade da mulher e a paternidade dos filhos.  Lembrando, entretanto, que ao homem era reservado o direito à infidelidade e que assim se caracterizava sua supremacia absoluta sobre a mulher.  Conforme Friedrich Engels (1984: p.96) "para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, aquela é entregue, sem reservas, ao poder do homem, quando este a mata, não faz mais do que exercer o seu direito".  O que nos remete novamente a Uta Ranke-Heinemann quando explica que para os judeus a relação com as esposas era de posse, como visto no capítulo anterior.

Em "Virgem Louca" o personagem masculino de Dalton Trevisan sente-se no direito de exercer esse direito de possuidor, direito até de matar se o aprouver.  Ele demonstra isso com suas ameaças: "- Se for eu te mato". (p.21)

Sobre esse direito que o homem acredita ter sobre a mulher, é possível citar a explicação:

Mary o´Brien (...) definiu a dominação masculina como o efeito do desejo dos homens de transcender sua privação dos meios de reprodução da espécie.  O princípeio de continuidade da geração restitui a primazia da paternidade e obscurece o duro trabalho fornecido pelas mulheres na maternidade e a realidade social disto.  (SCOTT: 1990 p.8)

Como também foi analisado no capítulo anterior, "o ensinamento de Jesus revoga esse privilegiado conceito masculino de adultério.  Também revoga a poligamia, que os judeus julgavam ter sido outorgada por Deus". (RANKE-HEINANN, 1996: p.46-47).  A crença masculina na sua supremacia, portanto, apesar de estar socialmente arraigada, inclusive  com o apoio da igreja, não tem a fundamentação teológica da qual se servem os seus disseminadores.

Por meio da engenhosidade feminina, todavia, sugem na história duas figuras sociais características: o amante da mulher casada e o marido traído.

De acordo com Engels (1984) com o advento da indústria, as mulheres deixaram o lar e lançaram-se no mercado de trabalho, convertendo-se muitas vezes em sutentáculo da casa, deixando desprovidos de qualquer base os restos de supremacia do homem nos lares proletários.

Neste sentido, a mulher enquanto operária é igual ao homem, aprendeu a ganhar o suficiente para   sutentar-se a si mesma e até, em alguns casos, ao marido e aos filhos.  Por outro lado, ficaram à margem a casa, a educação e até a criação dos filhos.

Dessa forma, mesmo buscando seu espaço no mercado de trabalho, alcançando diversos direitos aos quais não tinha acesso, a mulher ainda não conseguiu encontrar uma solução para resolver os impasses da vida familiar e profissional.

No conto em análise, temos dois exemplos de mulheres que ocupam o espaço determinado pelo homem para elas: a esposa que cuida da casa e dos filhos, traída e de certa foma conformada; e a amante, ingênua e sem perspectivas, que para ser aceita novamente pela família precisa negar seu passado e esquecer tudo o que aconteceu.



3.2 Bênção ou maldição

As mulheres bíblicas também são vasto material para as criações literárias oferecendo um contraponto ao universo masculino difundido pela igreja e incorporado pela sociedade cristã moderna.

No Antigo Testamenteo, em Gênesis 21, 17-21, apresenta-se a narração da primeira bênção derramada sobre o feminino - "... porque farei dele um grande povo" (v.18) -, Agar clama no deserto: "Agar é a única mulher a receber pessoalmente a divina bênção dos descendentes, o que lhe dá, de fato, o papel feminino de um patriarca.  No princípio da história, Agar ocupa o lugar de Sara; mais tarde ocupa o lugar de Abraão."  (FEILER: 2001, p.74)

Agar é a concunbina que dá a Abraão seus primogênito, Ismael, tomando assim o lugar de Sara.  No entanto, mais importante do que tomar o lugar de Sara, a esposa oficialo, é tomar o lugar de Abraão, um homem que recebeu de Deus a promessa de tornar-se uma grande nação, mesma promessa feita a ela no deserto.

Outra figura de suma importância para a cristandade é Maria Madalena, que foi transformada pela igreja em prostituta, quando há registros dela com tendo sido um dos discípulos de Cristo:

O evangelho segudo Felipe diz que Jesus amava Madalena mais que todos os discípulos.  O problema foi que a igreja aceitou pacificamente a lenda de que Madalena foi uma prostituta para contrapô-la à Maria, mãe de Jesus, a santa e imaculada.  Talvez, transformando Madalena numa prostituta, a igreja tenha tentado minimizar o seu papel de líder  (FERRAZ: 2003, p.01)

Dessa forma, Madalena teria um papel tão ou até mais importante que os outros discípulos.

Nem sempre a mulher foi tido como inferior ao homem, os relatos bíblicos, assim como a história, mostram que  prestígio fo feminino veio resolver os anseios masculinos:

A mulher, assim  como o homem, foi feita à imagem de Deus(Gn1,27), nas leis dos hebreus, a mãe devia ser honrada (Êx. 20, 10) e podia ser proprietária de terras em seu próprio nome se não houvesse herdeiros masculino.  (...) Posteriormente, por causa dos ensinos rabínios, as mulheres passaram a receber um papel inferior. (WILLIAMS, 2000: p.243)

Uma das figuras mais importantes da bíblia é Maria, a mãe de Jesus.  Entretanto, sobre ela não se sabe muita coisa.  A igreja a tem como virgem imaculada, o que de acordo com Uta Ranke-Heinemann (19996: p.74) é uma outra invenção para confirmar a demonização da sexualidade:

O relato da vida de Maria - mãe de Jesus nos evangelhos - é extremamente complicado dentro da história do Cristianismo, pois há muitos pontos obscuros sobre sua biografia, e nos quatro evangelhos sua figura é quase que 'eclipsad' nos relatos.  (FERRAZ, 1988: p.72)

Nos relatos bíblicos fica clara a valorização das mulheres por parte de Jesus, até mesmo na figura de sua mãe: "No Novo Testamente Jesus manteve contato com algumas mulheres.  Sua própria mãe era 'bendita' por Deus (Lc 1. 28,42), e Jesus na cruz a entregou aos cuidados de João (Jo 19, 26)". (WILLIAMS, 2000: p.243)

A opressão à mulher, no entanto, se faz presente na sociedade que se pretende moderna, universalmente, não apenas na ciedade em que o conto é ambientado.  E a sociedade baseia seus preceitos nos ensinamentos das entidades que exercem maior influência sobre ela, como na igreja, por exemplo.  A igreja por sua vez, afirma basear suas prerrogativas nos ensinamentos de Cristo, mas parece que os distorce algumas vezes, como é possível observar quando se trata de discutir o papel da mulher na sociedade.  Enquanto a igreja reprime a sexualidade e o feminino, há relatos que mostram que o comportamento de Jesus era diferente:

Jesus perdoava, ensinava e curava mulheres assim como fazia com os homens, e elas por sua vez, o serviam e lhe supriam as provisões necessárias; desse modo, colocava-as em pé de igualdade com os homens, exigia delas os mesmos padrões e lhes oferecia a mesma salvação oferecida aos homens.  Depois da ressurreição, as mulheres receberam o Espírito Santo (At 2, 1ss, 18);a casa de uma mulher veio a ser o centro da igreja em Jerusalém (At 12, 12); foi uma umlher a primeira pessoa na Europa a se converter no ministério de Paulo (At 16, 14);  e na igreja primitiva as mulheres exerciam ministérios importantes (e.g., At 21, 9).  Paulo, ao estabelecer o princípio da igualdade dos sexos diante de Deus (Gl 3, 28); lidou com as situações locais exigindo que as convenções daquela época fossem observadas." (WILLIANS, 2000: p. 243)

Não por acaso, a protagonista do conto analisado se chama Maria, nome pelo qual, como já foi dito, só é chamada uma única vez.  Nas demais vezes é chamada de Mirinha, o que pode ter alguma relação com a Miriã bíblica, irmã de Arão e Moisés, mulher de destaque em seu tempo:

Há muitos exemplos de mulheres na bíblia, como Miriã e Débora, que desempenharam papel importante na vida nacional, e da grande influência contra a verdadeira religião exercida por mulheres como Jezabel.  (WILLIANS: 2000, p. 243)

Assim, também a Mirinha de Dalton Trevisan pode simbolizar o papel da mulher na vida nacional, mulher que tenta se libertar, mas não consegue, pois quando sai debaixo do jugo do amante volta para a opressão da casa paterna.

A Miriã bíblica teve um importante papel ao acompanhar seu irmão Moisés na tarea de conduzir o povo hebreu para a Terra Prometida dirigindo os cânticos de louvor e de agradecimento.  No entanto, como Mirinha no conto, ela também teve um conflito, que é relatado em Números 12:

Miriã e Arão falaram contra Moisés em razão da mulher etíope que este tomara; porque tinha tomada uma etíope.
E disseram: Por acaso o Senhor falou apenas por Moisés? Não falou também por nós?
E o Senhor ouviu isto.
Mas Moisés era homem muito manso, mais do que todos os homens sobre a terra.
E de repente o Senhor disse a Moisés, a Arão e a Miriã:  Saí vós três à tenda da congregação. E eles saíram.
E o Senhor desceu numa coluna de nuvem, e se colocou à entrada da tenda; e chamou Arão e Miriã, e ambos saíram.
E ele disse: Escutai, agora, minhas palavras: se dentre vós houver profeta, eu o Senhor, me farei  conhecer em visão, e falarei a ele em sonhos.
Mas com seu servo Moisés, que é fiel em toda minha casa, não é assim;
Eu falo com ele boca a boca, abertamente e não em enigmas; pois ele vê a imagem do Senhor.  Por que não temestes falar contra o meu servo Moisés?
E a ira do Senhor se inflamou contra eles; e Ele se retirou.
E a nuvem se retirou de sobre a tenda; e esis que Miriã ficou leprosa, como a neve; e Arão se voltou para Miriã  e eis que ela estava leprosa.
E Arão disse a Moisés: Meu senhor, por favor! Não  coloque sobre nós este pecado porque agimos como loucos, e pecamos.
Não seja ela como um morto que sai do ventre de sua mãe, com a metade de sua carne já consumida.
E Moisés clamou ao Senhor dizendo: Ó Deus, por favor, cura-a.
E o Senhor disse a Moisés: Se o pai dela tivesse cuspido em rosto não estaria envergonhada durante sete dias? Fique, pois, isolada durante sete dias fora do acampamento, e depois seja trazida de volta.
E Miriã ficou confinada fora do acamapamento durante sete dias; e o povo não partiu, até que Miriã fosse trazida de volta.  E depois o povo partiu de Hazerote, e se acampou no deserto de Parã.

É interessante observar a referência feita ao pai, como se o crime por ela cometido fosse uma ofensa direta a ele, como no conto, sua presença na casa não pode mais ser tolerada pelo pai, e como ao fim do período em que ficou isolada da família o pai a recebe como se ela jamais tivesse saído de casa:  seriam estes os mesmos sete dias em que Miriã fica confinada fora do acampamento?

Talvez seja possível uma relação entre as personagens, levando-se em conta a teoria da utilização dos espaços vazios deixados na bíblia.  A história de Mirinha pode ser a história de Miriã durante os sete dias em que ficou isolada dos demais, criada pela imaginação de Dalton Trevisan.


3.3 - O homem na ficção de Dalton


O homem no conto de Dalton Trevisan reinvidica os direitos que acredita serem seus, direito de ser infiel e ao mesmo tempo de exigir fidelidde, como pode ser observado em Engels (1984: p.100) "agora, como regra, só o homem pode rompê-los  e repudiar a sua mulher.  Ao homem se concede igualmente o direito à infidelidade conjugal (...) e esse direito exerce-se cada vez mais amplamente, à medida que se processa a evolução da sociedade".

Já no início do conto fica claro que João é um homem casado e ele faz com que pareça natural procurar outra mulher: "-Minha mulher não me compreende. Mais nada entre nós.  Fez de minha vida um inferno.  Só pena dos filhos não me separo".  (TREVISAN, 1979: p.11)

Faz com que a mulher, traída e abandonada, seja também a culpada pela traição, pois ela não o "compreende".  E engana a jovem amante com promessas:  "Teu futuro é ao meu lado.  Aqui na firma. Não atrás do balcão".  (TREVISAN, 1979: p.11)

A esposa, nesse modelo familiar, serve para cuidar da casa e dos filhos, conforme Machel et al (1979: p.39):  "O burguês pensava e pensa ainda que a mulher deve ficar em casa e consagrar a sua atividade à direção dos trabalhos domésticos, tratando do marido, concebendo e criando os filhos".  É o que acontece à esposa de João, que vive para cuidar dos filhos:  João tem mulher - ai, que antipática - e quatro filhos, de um a sete anos".  (TREVISAN,  1979: p.12) É interessante observar ainda que, mesmo sabendo da traição do marido ela continua mantendo relações com ele e concebendo seus filhos, pois estes são quatro no início do conto, mas ao longo da história passam a ser cinco e por fim seis.

Esse homem, ciente de todos os seus direitos como macho, não se importa com a jovem amante, é indiferente às suas sensações:  "Deita-se sobre ela - e entra nela.  Que dá um berro de agonia:  o cigarro aceso na palma da mão.  Mas você pára? Nem ele".  (TREVISAN, 1979: p.13) Ele não se preocupa com a dor e sofrimento da mulher, está tomado pelo próprio prazer.

Em relação à pergunta dirigida "você pára?" que parece interpelar o leitor, provocando-o, colocando-o no mesmo patamar de João.  É válido lembrar que Dalton, como artesão das palavras que é, utiliza-se aí do recurso da comunicação encenada na narrativa, que faz parte da história, nesse caso tem-se o narrador interpelando também a jovem Mirinha.

Conforme Machel et al (1979: p.24) "desde criança a moça é educada diferente do rapaz, sendo-lhe inculcado um sentimento de inferioridade". Assim, Mirinha aceita a situação, apesar de lher causar o sofrimento.

Sobre o pai de Mirinha pouco se sabe, ele aprece mais uma presença espiritual do que física, é a mãe que a expulsa de casa: "- Escolha. Teus pais ou teu cafajeste.  Por mim te odeio.  Para mim é mais nada.  Rua, vagabuda, rua."  (TREVISAN, 1979: p.16)

A presença masculina na família é descompromissada: "O pai sofre do coração e não pode se incomodar, sempre no boteco".  (TREVISAN, 1979: p.15) Fica claro nesta passagem que a responsabilidade pela educação das filhas é a mulher, como no modelo tradicional de família.

Longe de casa ela sonha com o pai "caindo ali da janela.  Olha para ela, tão triste:  Você errou, minha filha.  Você errou.   De braço abertos salta no vazio.  Sò por tua causa". (TREVISAN, 1979: p.19) Mais tarde sabe-se que o pai realmente sofria do coração, pois tem um ataque.  O sonho mostra o quanto a aprovação do pai é importante para a protagonista.

Assim, durante seu isolamento da família, não se tem novamente notícia do pai, que surge novamete apenas na conclusão, da caminhada de Mirinha, como também acontece com o Filho Pródigo na bíblia (Lucas 15, 20-24)

Quando ele ainda estava longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu, o abraçou e o beijou.
O filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; não sou digno de ser chamado te filho.
Mas o pai disse a seus servos:  Trazei depressa a melhor roupa e vesti-o, ponde um anel em seu dedo e sandálias nos pés.
Trazei também e matai o novilho gordo.  Comamos e alegremo-nos,
Porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado.  E começaram a alegrar-se.

No entanto, ao contrário da história bíblica, a personagem de Trevisan não é recebida com a mesma alegria. É interessante notar que na bíblia temos a história de um filho, e Dalton Trevisan escreveu sobre uma filha, mostrando que a mulher não é recebida pela famíla com o mesmo entusiasmo que o homem e foi:

A voz rouca do pai:
- Quem está aí?
- Alegre-se, meu velho.  Ela voltou.
- Essa gorda?
Acorda no meio da noite.  Escuta-o que, de mansinho acende a luz e fica longamente parado na porta.
De manhã pai e filha cruzam na cozinha sem uma palavra.  Para os dois ela nunca saiu de casa. (TREVISAN, 1979: p.59-60)

Como parábola - e começaram a alegrar-sem - também no conto a palavra alegria se faz presente, entretanto mais como uma súplica, que aliás não parece ser atendida - Alegre-se meu velho.  Novamente é a mãe que estabelece as regras e recebe a filha, o pai a recebe com repulsa, chamando-a de gorda.  Não há diálogo entre eles.


3.4 - A virgem imprudente


Mirinha, ao romper definitivamente com João, tomou ares de mulher moderna e decidida.

Entretanto, um rápido estudo basta para nos convencer de que esse novo tipo de mulher que se imagina que irá surgir depois do rompimento é falso.

A protagonista, mulher de emoções diversas, não realizadas, ou ainda, frustradas, apresenta necessidades diferentes do que se imagina para alguém que abandona a família para viver um relacionamento sem futuro aparente, pois João é casado e deixa mostras evidentes de que não quer se separar.

Mirinha, ex-virgem, é incapaz de aprender e crescer ao lado de seu amante; depara-se com muitas dificuldades e sua figura ao lado dele é curva e servil, pois aceita passivamente, em primeira instância, os desmandos de João.

Depois de sua ida ao Rio de Janeiro com a irmã Lili, volta liberta do jugo de seu amante, pois sua feição psicológica já é outra, encontra-se agora em um outro patamar.  Quer se libertar de João e pede ajuda ao pai dele para isso: "-Me persegue dia e noite.  Assim perco o emprego. Já sofri demais. Que fique com a mulher e os seis filhos". (TREVISAN, 1979: p.34) Interessante observar aqui a forma como o narrador declara que João continua com sua esposa, pois os filhos que no início eram quatro, depois cinco, agora são seis.

João deixa de procurá-la, está livre.  Mesmo assim, continua desprovida de direção e como prova disso cai nos descaminhos da vida.  Vencido o "obstáculo João", é absorvida ainda mais pelo submundo, bebidas e cigarro como vícios incontroláveis e como moradia, uma casa que funcionava como bordel.

O período que viveu fora da casa dos pais deixou em Mirinha uma nódoa sombria. Não se sentia à vontade ante as orgias transcorridas no bordel em que morava e demonstrava asco às aproximações tanto masculinas quanto femininas que desejavam seus atrativos sexuaisa: "O mais bravo senhor traz chicotinho e pede para apanhar. O mais bem vestido é o maior tarado. Deixa de contá-los, são mais de mil.  Com nem um só, nem uma vez ela goza".  (TREVISAN, 1979: p.48)

Mirinha não está à vontade com o meio que a cerca, não está satisfeita, talvez não queira se tornar prostituta.

Leva-a pela mão para o quarto.  Tira a camisa - seio bonito. Tira a calça - tanga branca.  Nossa, braço e perna mais cabeludos.  Ela pensa: Jesus, isso não é mulher. É homem.
- Faça de conta que é um programa. Tire a blusa.
Deixa-a de sutiã e calcinha. Começa a beijar.
- Zezé, pare com isso.
Resmunga palavrão, geme e suspira.
- Não faz mal. Com o tempo você entende.
Vestem-se e saem do quarto.
- Hoje não deu certo.
Estende uma nota grande para cada uma.
- Paz e amor. Eu te aviso, bicho.
Tia Uda muito curiosa:
- O que você sentiu?
- Senti nojo.  Não pude aguentar. (TREVISAN, 1979: p.35-36)

Lujo Bassermann afirma em História da prostituição - uma interpretação cultural (1968: p.01) que "reconhecer nos favores femininos o mais antigo objeto de comércio da humanidade não constitui, por certo, um pensamento agradável", mas é preciso lembrar que esta é a mais antiga profissão, pois Engels, ao retratar um perfil histórico das mulheres, relata que a entrega por dinheiro foi, a princípio, um ato religioso: era praticado no templo da deusa do amor, Afrodite, e primitivamente o dinheiro ia para as arcas do templo (1984: p.105).  Sendo assim, as hieródulas (bailarinas do templo) formam as primeiras prostitutas. 

Hoje a prostituição tomou outro caráter, distanciando-se da sua face religiosa, "por mais longo que tenha sido esse caminho, a prostituição, como um vampiro, se manteve sempre montada às costas da sociedade, por nada se deixando alijar dali". (BASSERMANN, 1968: p.389) É esse tipo de prostituição, é essa profissão que se apresenta no caminho da protagonista do conto, e ela tem uma escolha a fazer.

Apesar dos conflitos na vida amorosa a protagonista tem os mesmos anseios das jovens donzelas casadoiras do século passado: "Ai, meu Deus... Preciso de um homem.  De um emprego. Arrumar a minha vida." (TREVISAN, 1979: p.44)

A vida da moça, Mirinha, é replea de problemas psicológicos e acontecimentos que a macularam. 
O que desde o início aniquilou seus sonhos:  "Daí ela chora muito.  João tem mulher - ai, que antipática - e quatro filhos, de um a sete anos".  (TREVISAN, 1979: p.12);  mostra arrependimento e saudade do pai "Sem ânimo de ouvir disco nem ligar tevê.  Ela tem um sonho:  o pai caindo ali da janela (...) Ela acorda chorando".  (TREVISAN, 1979: p.19)

Percebe-se aí o violento combate que se desenvolve na alma, no interior de Maria, ou Mirinha.  A angústia é causada pela saudade de casa e do convívio familiar, ainda que este esteja desestruturado.  Neste momento o texto se aproxima muito do relato bíblico do Filho Pródigo, no momento em que anseia voltar para a casa do pai:

Ele desejava fartar-se das bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada.  Então caiu em si e disse:  Quantos empregados de meu pai tem pão com fartura, e eu aqui morrendo de fome!  Eu me levantarei e irei até meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o cé e contra ti. (Lc, 15, 16-18)

Assim como Mirinha, este filho também se arrepende e quer voltar para casa, a diferença está, como já foi dito anteriormente, na recepção de ambos por seus pais.  A moça é recebida com frieza enquanto o rapaz é recepcionado com efusa e festa.  Pode-se talvez  busccar aí algum indício da crítica de Dalton à sociedade machista, que aceita que os homens satisfaçam seus desejos e não os condena por isso.  Já a mulher deve se manter pura, imaculada, para que assim mereça ser bem tratada.

Em meio à confusão em que se encontra Mirinha também se arrepende: "- Onde vim parar? Eu não sabia. Nunca esperei isso".  (TREVISAN,1979: p.41)

Também Dalton faz a descrição da desgraça de Mirinha, como há no texto bíblico a descrição do Filho Pródigo, e da mesma forma neste momento a protagonista lembra do pai:

Assim como a protagonista da parábola, ela decide voltar para casa:  "Cansei dessa vida.  De ser lixo". (TREVISAN, 1979, p.58) No entanto, como já foi dito, sua recepção não tem o mesmo calor descrito no evangelho de Lucas, talvez por ela ser uma das virgens imprudentes:

Uma segunda-feira de junho.  Veste a roupinha, Chega em casa às quatro da tarde.  A mãe na cadeira de palha ao lado do foga de lenha.
- Aqui estou.  A mãe com tempo de pensar.  Já decidiu com o pai. Me aceita ou não.
- Falei com teu pai.  Os dois pensamos bem.
- posso voltar?
- tem uma condição.
- ...
- começa vida nova.  (TREVISAN, 1979: p.58)

 O único momento de carinho entre mãe e filha é descrito em seguida: "A mãe fica de pé e abre os braços(...) chorando abraçadas no limiar do quarto - vazio como da última vez".  (TREVISAN, 1979: p.58)

As últimas palavras do conto comprovam que exite uma grande diferença entre a forma como o Filho Pródigo é recebido por seu pai,  com alegria, e a forma como Mirinha é recebida, também pelo pai, com indiferença: "De manhã pai e filha cruzam na conha sem uma palavra.  Para os dois ela nunca saiu de casa". (TREVISAN, 1979: p.60)

O pai ignora tudo o que se passou com a filha no período em que ela esteve fora, ela é obrigada a apagar tudo, suas roupas são queimadas, seus objetos deixados para trás, ele prefere fingir que esta é a mesma menina de antes, sem mácula, sem pecado, pois só assim pode aceitá-la de volta em casqa.

A virgem louca, então precisa fingir que foi sensata paa que tudo esteja em seu devido lugar.

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