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domingo, 5 de junho de 2011

2 - DA RECORRÊNCIA DA INTERTEXTUALIDADE BÍBLICA NA LITERATURA - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

De acordo com diversos teóricos da literatura, e alguns deses serão citados a seguir embasando esta pesquisa, a presença de outros textos em um texto literário específico é mais do que um simples recurso, é fator intrínseco para a obra literária.  O que este capítulo se propõe a apresentar é com em alguns casos essa intertextualidade tem ocorrido usando-se o texto bíblico como base, além de discorrer sobre os teóricos do próprio fenômeno da intertextualidade e, por fim, analisar a carga de significados que traz a escolha da protagonista feminina no conto em estudo.

Segue, então, a apresentação de personagens e/ou passagens bíblics que serviram como base para a construção de algumas obras.


2.1 - Bíblia e literatura

De acordo com Sandra Nitrini (1997: p.55) "pode-se dizer que, por muitos séculos, essas três histórias - a história de Tróia, a história de Ulisses, a história de Jesus - em sido suficientes à humanidade".  Talvez isso explique a constante referência de autores de diversas épocas a esses textos e no caso do autor escolhido para análise nesta monografia,  Dalton Trevisan, a referência ao texto bíblico.  Neste caso a Bíblia é o que Jenny apud Nitrini (1997) chama de texto centralizador, aquele que mantém o comando do sentido.  Essa intertextualidade não pode ser vista como uma adição confusa de influências, é antes a transformação e assimilação dessas influências.

A bíblia, assim, fornece histórias e personagens que são recontados por esses autores, seja fazendo recortes de textos, seja fazendo referência a alguma passagem determinada ou até nomeando um romande, como é o caso de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, história de dois irmãos, que semelhantemente aos personagens bíblicos, vivem em constante disputa.

Na contemporaneidade essa tendência se mantém, pode-se até afirmar que se fortalece.  Entre os autores que se utilizam dessa recorrência é possível citar o português José Saramago, autor de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, obra em que Jesus é o personagem que conta sua própria história; e o norte-americano Dan Brown, autor do best-seller O código Da Vinci, que narra a história de Robert Langdom, um simbologista de Harvard que se vê incriminado pelo assassinto do curador do Museu do Louvre e precisa perseguir pistas para desvendar um antigo segredo do Priorado de Sião.

Além destes, pode-se citar ainda Moacir Scliar, com A mulher que escreveu a bíblia, um texto descontraído em que uma das esposas de Salomão, moça feia, conforme o texto, é descrita como a autora real da bíblia; e Dalton Trevisan, autor do conto escolhido para esta análise.  Além do conto "Virgem louca, louco beijos", que empresta seu título à obra em que está inserido e é objeto deste estudo, Daton Trevisan também faz referência ao texto bíblico no título de outro conto da mesma obra: "Oquinto cavaleiro do apocalipse".

O conto "Virgem louca, loucos beijos" é considerado por José Paulo Paes apud  Rosalino (2002: p.113)´"uma espécie de novela ou micro-romance e possui um jogo intertextual com o livro bíblico de Mateus 25:1-13 sobre as virgens loucas e as prudentes", intertextualidade que será explorada no terceiro capítulo desta pesquisa.

E é o jogo intertextual abordado acima, que se pode afirmar sempre presente na obra literária, de uma forma ou de outra, que será discutido a seguir.


2.2 - Jogo Intertextual

A intertextualidade é um recurso literário riquíssimo amplamente utilizado, seja feito de maneira intencional, seja motivado por leituras e conhecimento de mundo do escritor.  Para Kristeva apud Nitrini (1997: p. 161) "todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.  Em lugar de noção de intersubjetividade, instala-se o da intertextualidade e a linguagem poética lê-se, pelo menos, como dupla".

No caso de "Virgem louca, loucos beijos", a referênca evidente no título à passagem de Mateus dá indícios do percurso que será trilhado pela protagonista.  No entanto, há outra referência bíblica neste conto, não tão clara e talvez por isso despercebida por muitos teóricos: Maria, ou Mirinha, como é constantemente chamada a personagem, repete a história do filho pródigo, encontrada em Lucas 15, 11-32.

Dalton Trevisan reescreve a parábola do filho pródigo, transformando-o, no entanto, em muher, a Maria constantemente presente em sua obra, uma das virgens insensatas, ou virgem louca, como ele a denominou.

Pode-se dizer que o recurso de intertextualidade na literatura é rico, seu estudo também o é.  Baktin apud Nitrini (1997: p.161) estabelece um conceito de ambivalência que comprova essa riqueza textual:  "o autor pode se servir da palavra de outrem para injetar um sentido novo, conservando o sentido que o enunciado já tinha.  Disso resulta que o enunciado adquire duas significações, torna-se 'ambivalente' (...)".  O texto, dessa forma, não nega a significação daquele com o qual se relaciona, pelo contrário, ele se apropria dos significados já existentes para produzir outros, por isso é ambivalente, pois contém o novo sem negar o anterior.

Trevisan utiliza duas parábolas muito conhecidas no mundo ocidental cristão para contar o drama, sem ser melodramático, da mulher curitibana, que é acima de tudo mulher.

Sandra Nitrini (1997) explica a estética da recepção, que cria a perspectiva de que a inflência de uma texto sobre o outro não se veja mais como apenas casual, mas como resultado complexo da recepção.  A intertextualidade, portanto, não acontece ao acaso.  Não é ao acaso a referência do autor às parábolas acima citadas, nem é ao acaso a escolha da personagem feminina, que percorre o mesmo caminho que no texto bíblico foi trilhado por um homem.

Essa ambivalência de sentidos implica também a inserção da história e da sociedade no texto e deste na história, além de desvanecer a noção de "pessoa-sujeito da escritura", tema tratado com especial atenção por Umberto Eco, que esclarece que o leitor é fundamental na história, pois ela "pede ao leitor que preencha toda uma série de lacunas.  Afinal (...) todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho" (ECO, 1999: p.9).

Cabe aqui lembrar o conceito de leitor modelo discutido por Eco, o leitor ideal para cada tipo de texto tido como colaborador, diferente dos leitores empíricos, que são todos aqueles que leem. O leitor-modelo consegue reconhecer a intertextualidade que há na leitura, conhece as referências, percebe as relações e pode possivelmente sondar as intenções na obra.  O leitor-modelo de um texto em que há referências bíblicas conhece a base para essas referências e é capaz de analisar a influência de um sobre o outro, reconhece o duplo sentido incutido nele.

Sobre isso Umberto Eco (1999: p.91) afirma "parece que os leitores precisam saber uma porção de coisas a respeito do mundo real para presumí-lo como pano de fudo correto do mundo ficcional".  Assim, o leitor-modelo é aquele que consegue identificar o "pano de fundo correto" do mundo real para determinada obra literária, estabelecendo as relações que proporcionarão a leitura dos possíveis sentidos do texto.

A análise de referência do texto bíblico na literatura tem como fundamentação estudos de literatura comparada, o estudo das relações entre duas ou mais literaturas, entre duas obras, entre obra e autor, entre autor e autor.

Os estudos de literatura comparada foram introduzidos na USP por Antonio Cândido em 1962.  Segundo Sandra Nitrini (1997: p.28)

          Literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país particular, e o
          estudo das relações entre literatura, de um lado, e outras áreas de conhecimento e da crença,
          tais como artes (ex. pintura, escultura, arquitetura, música) filosofia, história, ciências sociais,
          religião, etc.  Em suma, é a comparação de uma literatura com uma outra ou outras, e a
          comparação da literatura com outras esferas da expressão humana.

Percebe-se assim a possibilidade de se fazer um estudo enfocando a intertextualidade de passagens ou personagens bíblicos na literatura, obervando como se dá esse processo, quais os sentidos que a releitura de uma obra como a bíblia podem criar em outro contexto, quais as reflexões que esse novo texto é capaz de provocar.

Jonathan Culler (1999: p.40) explica o conceito de intertextualidade afirmando que "teóricos recentes argumentaram que as obras são feitas a partir de outras obras: tornadas possíveis pelas obras anteriores que elas retomam, repetem, contestam, transformam".  Assim, toda 'obra literária está repleta de referências, mesmo que despercebidas, a outras obras em meio às quais existe: "ler algo como literatura é considerá-lo como um evento linguístico que tem significado em relação a outros discursos (...)".  (CULLER, 1999: p.40). A intertextualidade, portanto, pode ser repensada como inerente à literatura, fazendo parte dela não apenas como recurso, mas como princípio para que a obra seja literária.

Sandra Nitrini (1997: p.167), no entanto, esclarece que "intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam bem operacionalmente para se lidar com manifestações explícitas, mas sua instrumentalização para se analisarem ocorrências implícitas dificilmente apresenta resultados satisfatórios, pois estas dependem muito da erudição do leitor".  Embora o conto analisado neste trabalho mostre explicitamente em sua relação com o texto bíblico, ainda assim é necessário que o leitor tenha o conheciemnto prévio das passagens a que ele se refere para que se possa estabelecer as relações necessárias, e mais, que perceba que aquele é um texto literário diferente da bíblia, o que fará dele o leitor modelo para essa obra de Trevisan.

Um dos problemas enfrentados pelos autores de obras de ficção em que ocorre a intertextualidade bíblica é a oposição encontrada em leitores empíricos que confundem o texto literário com o que consideram a verdade do texto bíblico.  Pode-se dizer ainda que, em alguns casos, essa polêmica é positiva para o escritor, como é o caso de Dan Brown, já que se reverte em cifras.

Umberto Eco (1999: p.81) indica um caminho para a leitura da obra literária:

          A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar
          tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de: "suspensão da descrença".  O
          leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso 
         deve pensar que o escritor está contando mentiras.  De acordo om John Searle, o autor
         simplesmente  finge dizer a verdade.  Aceitamos o acordo ficiconal e fingimos que o que é
         narrado de fato aconteceu.

Dessa forma, o leitor sabe que o que está sendo narrado não é "verdade", no entanto, também sabe que não é mentira, já que é a verdade do texto.  Este mesmo teórico afirma ainda nessa obra que em geral as pessoas cohecem esse acordo ficcional e o acietam, mas que a partir do momento em que a obra alcança um número maior de leitores não se pode ter certeza de ques saibem desse acordo.  É talvez por esse motivo que obras que fazem referência à bíblia, livro sabrado para muitos, geram tanta polêmica quando alcançam popularidade.

Conforme Rosalino (2002: p.10):

          Umberto Eco nos acautela a não procurar o autor no escritor real, porque a função 
         autor comporta uma pluralidade de "eus".  Tampouco devemos procurar a realidade na ficção
         ou menosprezar a importância do leitor na narrativa ficcional, que ele chama de bosque.  Ele 
         usa a metáfora criada por Borges: se um bosque é um jardim com caminhos que se abrem em
         muitos outros caminhos, na narrativa ficcional é o leitor quem decide por qual caminho
          seguir.  Em algumas ocasiões, o narrador deixa o leitor livre para imaginar a continuação da
          história. 
Umberto Eco (1999: p.91), coforme já citado no capítulo anterior, também explica a relação do mundo real com o mundo ficcional:

Os mundos ficcionais são parasitas do mundo real, porém são com efeito 'pequenos mundos' que delimitam a maior parte da nossa competência do mundo real e permitem que nos concentremos num mundo finito, fechado, muito semelhante ao nosso, embora ontologicamente mais pobre.
          O teórico explique que por um lado o mundo real é mais abrangente do que o ficcional, já que este último é uma espécie de recorte do real, é apenas uma parte dele, pois conta a história de alguns  poucos personagens em um tempo e local definidos, e por outro lado é mais abrangente,  pois ele se estende infinitamente como a inaginação, não tem limites.

Ainda conforme Eco (1999: p.93)

          (...) ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos sentido à infinidade de coisas que
          aconteceram, estão acontecendo ou vão acontecer no mundo real.  Ao lermos uma narrativa,
          fugimos da ansiedade que nos assalta quando tentamos dizer algo de verdadeiro a respeito do
         mundo.

Dessa forma, pode-se afirmar que no mundo ficcional há espaço não só para o que é possível no mundo real, coisas que talvez não aconteceram, ou ainda não aconteceram, mas também para aquelas que poderaim ter acontecido e podem talvez vir realmente a acontecer um dia.  Assim, as narrativas em que há intertextualidade bíblica trabalham com essa possibilidade, se aproveitando dos vazios que este texto deixa incorporando a eles as possibilidades que nos variados recursos linguísticos e literários permitem, ou então, criando a partir dele sentidos diversos daquele original.

Nesse mundo ficcional, de acordo com Umberto Eco (1999), encontra-se a sensação confortável de verdade em que se pode confirar, indiscutível, já que a partir do momento em que se aceita o jogo ficcional a verdade passa a ser aquela da narrativa, enquanto o mundo real parece mais "traiçoeiro".

Nesse jogo de possibilidades, a personagem Mirinha do conto "Virgem louca, loucos beijos" abre espaço para diversas abordagens, especialmente em relação à representação do feminino na literatura e também na sociedade, bem como da forte influência da igreja católica na visão que se teve (ou se tem?) da mulher por muitos séculos, questão que será abordada a seguir.


2.3 Maria X Jõao

A escolha de uma personagem feminina para protagonizar o conto "Virgem louca, loucos beijos", de Dalton Trevisan, não pode ser vista como aleatória.  Como já foi explicado anteriormente, neste conto o autor reescreve a trajetória do filho pródigo feita por uma mulher: Maria, ou Mirinha, como ela e nomeada na maioria da vezes.  "Virgem louca" pode ser considerado um conto de mulheres, pois são elas o foco da obra, o que será mais amplamente discutido no próximo capítulo.

A escolha por uma protagonista feminina retoma uma discussão de longa data, como se pode observar no estudo feito por Sama Ferraz:

o debate em torno do sagrado feminino evoluiu um pouco nos últimos séculos.  Se na Idade Média discutia-se se mulher tinha alma e se era instrumento do demônio, na virada do século XXI, discute-se se o feminino é digno de ser consagrado ao ministério.  (2003: p.4)

Ao longo dos séculos as mulheres foram tidas como inferiores aos homens, teoria difundida pela igreja católica.  Talvez seja possível afirmar que essa é uma herança da qual a sociedade contemporânea ainda não tenha se livrado, o que justifica de certa forma a escolha do rumo determinado para Mirinha na narrativa de Trevisan.  Coforme Uta Ranke-Heinemann (1006: p.17) "a imagem que oferecem (as mulheres) é de inferioridade.  Só servem para ter filhos, a menos que se dediquem à auto-santificação, como fazem as virgens".  Essa é, de acordo com a autora, a visão da igeja já desde o século IV, como papa Siríco.

Este mesmo papa

rotulou de crime o fato de sacerdotes continuarem a manter relações com as esposas depois da ordenação.  Chamava tais relações de 'obcoena cupitidas'.  No começo da evolução do celibato, a maioria dos padres ainda era casada, embora mesmo antes de 1139 não lhes fosse permitido casar depois da ordenação.  À partir daquele, ano contudo, não mais lhes era possível o casamento válido: a ordenação o tornava inválido. (RANKE-HEINEMANN, 1996: p.18)

A sexualidade e, consequentemente, a mulher foram vistas de maneira negativa ao longo da história, como comprova Ranke-Heinemann (1996: p.22) ao citar estudos de Foucault:

Em sua 'História da sexualidade', Michael Foucault (1984) procura ouvir essas vozes da Antiguidade.  Segundo Foucault, nos ois séculos da Era Cristã, a atividade sexual foi julgada com severidade crescente.  Os médicos recomendavam a abstinência, aconselhavam a virgindade e não a busca do prazer.

A única justificativa para o sexo era (ainda é?) a procriação, de acordo com a mesma autora (1996; p.25): "A noção de que o sexo tem de ter finalidade procriadora, caso contrário será vista sob o estigma negativo do prazer, e não à luz do amor, deixou marca duradoura no cristianismo".  Talvez isso explique, obiamente não justificando, a persitência da igreja católica em posicionar-se contrariamente ao uso de anticoncepcionais, mesmo numa era devastaea pela miséria e pela AIDS.

Uta Ranke-Heinemann (1996: p. 46) explica que para os judeus "a esposa era considerada não um companheira ou parceira do homem, mas usa posse.  Ao cometer adultério a esposa estava depreciando as posses do marido, enquanto o marido ao cometê-lo, estava depreciando as posses de outro homem".  Assim, o homem só cometia adultério se a mulher com quem mantivesse relação sexual fosse casada, pois assim estaria violando os bens de outro homem.

No entanto, "o ensinamento de Jesus revoga esse privilegiado conceito masculino de adultério.  Também revoga a poligamia, que os judeus julgavam ter sido outorgada por Deus".  (idem ibidem  p.46-47)  Pode-se afirmar, portanto, que apesar de a igreja ter em Jesus a sua figura central, não segue necessariamente seus ensinamentos, especialmente quando esses não vão de encontro aos interesses dela.

Assim, apesar de ter sido Jesus um defensor das mulheres, os líderes da igreja mantêm sua convicção de que os homens são criaturas superiores às mulheres, as quais aparentemente têm como única missão perpeturar a espécie:  "Agostinho, que era particularmente convencido da inferioridade das mulheres, afirmava que na solidão um homem significa mais para outro homem do que uma mulher.
(idem, ibidem p.67)

O principal representante do cristianismo, o próprio Cristo, todavia, tem uma relação bem diferente dessa inistentemente repetida por esses grandes nomes da cristandade.  Jesus, de acordo com os evangelhos, diversas vezes dirigiu-se a mulheres tendo por elas grande consideração:

Aos olhos dos próprios discípulos a abertura de Jesus para com as mulheres era incomum.  Pede de beber a mulher samaritana à beira de um poço e conversa com ela,  embora judeus tivessem relações hostis com os samaritanos.  (Jô 4,47)  (idem ibidem p.133)

A igreja tem manipulado inclusive a história bíblica em prol de seus interesses, como é possível observar em relação à virgindade de Maria: "(...) a virgindade não foi valorizada porque Maria sempre foi virgem, pelo contrário: Maria foi transformada numa virgem perpétua porque a virgindade era muitíssimo valorizadea".  (idem, ibidem p.74)

A teóloga Uta Ranke-Heinemann ironicamente explica ainda que, agradar os interesses dos líderes da igreja, até "o auge da libido feminina evidentemente segue o conselho dos cientistas.  O auge da libido é uma construção dos moralistas, e as mulheres o localizam onde é mais recomendável, ou então onde e quando é proibido, caso a mulher não deseje engravidar: as proibições também estimulam a libido".     (1996: p.85)

Outra explicação para a soberania masculina na sociedade vem de Aristóteles:

O ponto de vista prevalente na Antiguidade foi a noção de Aristóteles de que a alma do feto masculino só ocorria depois de quarenta dias da concepção, enquanto o feto feminino a adquiria só noventa dias depois.  Antes o feto tinha primeiro uma alma vegetal e só então uma alma animal.  Essa diferença temporal na gênese da alma do homem e da mulher não seria apenas uma questão cronólogica mas de qualidade humana, já que a alma pertence antes ao homem e só depois à mulher.  A alma, ou seja, a essência da humanidade, é algo mais masculino do que feminino.  (RANKE-HEINEMANN, 1996: p.87)

Com essas teorias difundidas desde os primeiros séculos da era cristã por estudiosos e filósofos respeitados reforçando o preconceito crescente em relação à mulher e à sexualidade, não é de se estranhar a atual situação da mulher na sociedade e a constante luta que precisa travar em busca de seu espaço.  A literatura tem, de certa forma, sido um meio de expressão dessa luta.

Grandes nomes como Tomás de Aquino, que também aprova as ideias de Agostinho, colaboraram para que a igreja assumisse uma posição pessimista em relação à mulher:

Não vejo qu espécie de auxílio a mulher deveria prestar ao homem, caso se exclua a finalidade da procriação.  Se a mulher não foi dda ao homem para ajudá-lo a gerar filhos, para que mais serviria?  Para cultivarem a terra juntos?  Se fosse necessária ajuda para isso, m homem seria de melhor auxílio para outro homem.  O mesmo se há de dizer para o conforto e a solidão.  Pois muito maior o prazer para a vida e para a conversa quando dois amigos vivem juntos do que quando homem e mulher coabitam.  (De Genesi ad litteram: 9,5-9) (RANKE-HEIMANN: 1996: P.101)

Não há mesmo como discordar de personagens tão importantes na história, homens que fortalecem a crença na inferioridade da mulher, comprovando "cientificamente" suas ideias.  De acordo com estes pensadores, a mulher tem a única finalidade de procriar, sendo que para outras atividades um homem é melhor companheiro para outro homem.  Isso explica a aversão da igreja ao sexo, o qual deve ser feito exclusivamente com o propósito da reprodução, o que é coerente com sua posição contrária aos métodos anticoncepcionais.

Os conflitos gerados por séculos de repressão e talvez algumas conquistas formam também um campo fértil para a literatura.  Sabe-se que muitos autores, alguns dos quais já citados aqui, têm criado enredos riquíssimos em torno desse tema.  Nessa pesquisa, no entanto, será analisado apenas o conto"Virgem louca, loucos beijos, encontrado em obre homônima do escritor curitibano Dalton Trevisan.  Neste conto o autor explora a personagem feminia refletindo crenças e preconceitos sociais construídos com base emuma moral cristã cujas raízes foram esboçadas neste capítulo.

Segue, portanto, a análise da construção da personagem feminina no conto citado e da intertextualidade bíblica presente na obra.

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