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sábado, 4 de junho de 2011

1 - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E SOCIAL DA OBRA "VIRGEM LOUCA, LOUCOS BEIJOS", DE DALTON TREVISAN

1.1 - Virgem Imprudente

Dalton Trevisan, escritor curitibano conhecido pelo estilo conciso de escrita, pelos estereótipos João e Maria e pelo recorrente uso da cidade de Curitiba como pano de fundo de seus contos, apresenta com "Virgem Louca, Loucos Beijos" uma exceção em sua obra, contendo ao todo cinquenta páginas e podendo, portanto, ser considerada como pequena novela.

Além da extensão do texto, Trevisan recorre ao uso de uma alcunha, "Mirinha", para designar a personagem que protagoniza o conto, Maria, que apenas uma única vez em todo o texto é chamada pelo nome, e por isso parece ser mais uma exceção dentro da obra (TREVISAN, 1979: p.18):

          A mulher descobre, furiosa.  Uma cena terrível diante dos filhos.
          - Aquela corruíra nanica.
          De tarde a dona surge no escritório.
          - Você que é a Maria?
          - Sim, senhora.
          - Onde você mora?
          - Com meus pais.

Mirinha, contrariando os finais infelizes aos quais o autor é adepto, renasce para a vida, socialmente aceita  e correta, legando para si própria o que Joan Scott afirma em "Gênero, uma categoria útil para análise" (1990: p.13), "o destino cultural imposto à mulher numa sociedade patriarcal".

Entretanto, Roseli Bodnar Rosalino, em sua dissertação de mestrado intitulada Dalton Trevisan e o projeto minimalista  (2002: p.115) analisa o mesmo conto, "Virgem Louca, Loucos Beijos", e, apesar de não ter realizado uma leitura voltada para a intertextualidade bíblica presente na obra, afirma que, em Dalton: "contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, o fim do relacionamento ou uma situação cíclica".

No conto em questão, ocorre a situação cíclica, pois se entende por morte o fim de todas as possibilidades, a anulação completa do indivíduo, a perda da identidade, o fim da vida.  O que ocorre no conto em questão, tendo em vista que Mirinha enfrenta todas as dificuldades, consegue ser novamente aceita como membro de uma sociedade e é recebida no seio da família, é que se fecha assim um ciclo e recomeça sua vida, mas para isso precisa anular sua identidade, negando seu passado (TREVISAN, 1979: P.58):

          - Falei com teu pai.  Os dois pensamos bem.
          - Posso voltar
          - Tem uma condição.
          - ...
          - Começa vida nova.

É válido lembrar que o conto, além de servir de título ao livro, atualiza uma abordagem bíblica, sua publicação é datada do final da década de setenta; e segundo Scott (1990: p.13) "época essa que social e culturalmente as mulheres já recusam, ainda que com dificuldade, a construção hierárquica entre masculino e feminino e tentam reverter a diferença sexual".

Mas a protagonista Mirinha, jovem e virgem, é fruto de uma geração na qual a educação sexual era algo vergonhoso e por isso inexistente, o que por sua vez deu origem a uma vida miserável de sofrimentos e frustrações, consequencia da falta de diálogo familiar, além do diálogo instrutivo.

Por outro lado, para João, casado, pai de quatro filhos, manter um relacionamento passional com uma bela e jovem funcionária sem ter que abandonar a família é cômodo, símbolo de status,  mostra de virilidade (TREVISAN, 1979: P.11):

          - Minha mulher não me compreende.  Mais nada entre nós.  Fez da minha vida um inferno.  Só de pena dos filhos não me separo.
          O primerio beijo roubado.
          - Tão carente de amor.  Estou perdido por você.  Teu futuro é ao meu lado.  Aqui na firma.  Não atrás de um balcão.
         No segundo beijo com a mão direita no pequeno seio.  De tanta pena - não sofre demais com a  mulher?  - a menina começa a gostar de João.
          - Ninguém pode saber.  Tudo será diferente.  Um segredo entre nós dois.
          Daí ela chora muito. João tem mulher - ai, que antipática - e quatro filhos, de um a sete anos.
         - Você é a moça que eu quero.

Todavia, tem-se aí a representação da miséria que há nos subterrâneos do espaço social aparentemente imaculado"  (SANCHES NETO, 1996): p.45), porque ao abordar temas como sexo e adultério, Trevisan denuncia dogmas sociais e morais, entrando em conflito com a moralidade hipócrita que é ditada pela sociedade curitibana, pano de fundo da trama, mas que não são na verdade questões universais.  É sobre Curitiba, portanto, que se discorrerá um pouco mais no item sequente.


1.2 Curitiba - Cidade Modelo

 A cidade de Curitiba, ambientação constante nas obras de Dalton Trevisan, embora ficcional, tem como referência a cidade real, e a partir dela os temas para a escrita são retirados do cotidiano, mas com a sutileza trevisânica, ressignificados.

Cabe aqui lembrar Umberto Eco (1994: p.91) ao afirmar que:

          na verdade, os mundos ficcionais são parasitas do mundo real, porém, são com efeito:      
          "pequenos mundos que delimitam a maior parte de nossa competência do mundo real e
          permitem que nos concentremos num mundo finito, fechado, muito semelhante ao nosso,
          embora ontologicamente mas pobre.

Tendo em vista que, por tratar-se de um mundo ficcional, pode-se dizer que a Curitiba de Dalton e suas personagens são recortes da Curitiba real, contam histórias, relatam fatos, e apresentam sitações que se assemelham.

A cidade de Curitiba, real, é considerada, por muitos, cidade modelo, capital de Primeiro Mundo e traz na letra de seu hino, a exemplo de todos os hinos patrióticos, dizeres enaltecedores como: "Curitiba tem a imagem dum paraíso na terra, linda joia, pérola deste planalto, jardim luz".  (ROSALINO, 2002: p.74)

Indaga-se, entretanto, que paraíso é esse se a Curitiba retratada por Dalton Trevisan em suas narrativas traz mostras de um ambiente social com suas relações desgastadas e descontrói as imagens  pré-fabricadas de capital ecológica ou cidade de Primeiro mundo?

Dennison de Oliveira (200: p.192) afirma que "o sucessok assim como o fracasso, também traz problemas" e talvez seja em função disso que Trevisan apresente a cidade em questão  como sendo uma "cidade duplex, que encarna as contradições de uma sociedade onde o primitivo mina os anseios burgueses de progresso".  (SANCHES NETO, 1996: p.21)

Curitiba é, assim, uma cidade em que os conflitos narrados por Trevisan cabem perfeitamente, pois há a representação dos burgueses através da família da protagonista e até do próprio João, que oferece em si mesmo a caracterização perfeita dessas contradições: pai de família, que respeita seu próprio pai, mas vive um caso com Mirinha, e chega quase a matá-la por ciúmes.

Ainda segundo Dennison Oliveira (2000: p.188), "Curitiba é a região metropolitana que tem menos pobres do Brasil" e "foi eleita pelo Ministério do Interior em meados da década de 70 para se constituir em estudo de caso de uma investigação que permitisse definir os fatores necessários ao sucesso da prática urbanística". (2000-: p.32)

Acredita-se, todavia, que para incorporar o epíteto de "capital de qualidade de vida" não basta investir no planejamento de práticas urbanísticas de sucesso e manter nas periferias a pobreza, ainda que em menor número, é preciso ir mais além.

Para Sanches Neto (1996: p.20) a Curitiba retratada na ficção trevisânica tem traços de cidade grande, mas "a anulação do indivíduo e a hegemonia da multidão acabam criando um cenário caracterizado pelo anonimato".  O que por sua vez a distancia do epíteto de "capital de qualidade de vida", termo esse usado para identificar a Curitiba real, mas que ao longo das narrativasde Dalton vai sendo desconstruído.

É válido lembrar a única passagem do conto em que há a referência direta à Curitiba, que deixa mostras de um cenário decrépito e com personagens que se anulam na multidão.  "Por uma semana esperava-o em vão.  À noite liga a radiola e a tevê no maior volume.  Arrasta as poltronas daqui para lá.  Bebe e atira as garrafas na capota dos carros.  Nua diante da janela, que uivem os tarados de Curitiba".  (TREVISAN, 1979: P.31)

A partir da desconstrução que Dalton faz da Curitiba modelo em suas narrativas é possível verificar a existência de uma outra cidade, "feia, suja, pobre, marginal e além de tudo sangrenta" (ROSALINO, 2002: p.81)


1.3 - Dalton Trevisan - Artesão das palavras

Jonathan Culler em "Teoria literária, uma introdução" (1999: p.43), afirma que "a estrutura das obras literárias é tal que é mais fácil considerar que elas contam sobre a 'condição humana' em geral do que especificar que categorias mais restritas elas descrevem ou iluminam".

E é por isso, talvez, que alguns leitores de Dalton Trevisan acreditem que o autor não mude sua escrita, pois escreve com pequenas variações, sempre sobre a condição humana e as problemáticas por ela encarnadas.  Além disso, o que se deve considerar também "é nossa tendência em construir a vida como um romance, ou vice-versa".  (ECO, 1995: p.80)

Benedict Anderson apud Culler (1999: p43) constata que "a ficção filtra-se silenciosa e continuamente na realidade", o que é possível verifica nas obras de Trevisan, o curitibano que tem com primazia a retirada de flashes  do cotidiano para criar suas narrativas e, por meio desse aguçado de caçador/colecionador de acontecimento apresenta na sua ficcionalidade uma relação tão tênue com o real que o leitor acredita conhecer os personagens ou o fato relatado.

Mas isso faz parte de um projeto estético, pois ao trabalhar os mesmos temas, em sua maioria filtrados de cenas do cotidiano, a mesma cidade, os mesmos personagens, Dalton Trevisan deixa lacunas em sua narrativa para que o leitor funcione como co-autor e co-produtor do texto.

Ainda segudo Culler (1999: p.44) "a literatura é vista como um tipo especial de escrita, como um objeto estético desligado de propósitos práticos e indunzindo tipos particulares de reflexão e identificações.  E, em se tratando de textos narrativos, eles podem até não ter enredo, mas é impossível que não tenham história ou discurso.  Vale lembrar que em toda a obra de ficção o discurso emite sugestões e que é o leitor quem deve responder às questões suscitadas, refletir sobre o escrito e completar lacunas, muitas vezes identificando-se com fatos ou personagens.

Todavia, quanto à literatura, Culler (1999: p.46) ainda diz que:

          uma obra literária pode ridicularizar, parodiar qualquer ortodoxia, crença, valor, imaginar   
          alguma ficção diferente e monstruosa... a literatura é a possibilidade de exceder
          ficcionalmente o que foi pensado ou escrito anteriormente... é uma instituição que vive de
         expor e criticar seus próprios limites, de testar o que acontecerá se escrevermos de modo
         diferente.

Dalton Trevisan caracteriza-se também  por usar a literatura para ridicularizar, redizer o que já foi dito, fazer recortes e usos da intertextualidade e da intratextualidade e, com isso consegue resultados surpreendentes e de certa forma, muitas vezes imprevistos.

Como já foi abordado anteriormente, faz parte do projeto estético de Trevisan privilegiar seu leitor com recortes feitos do real para a ficção, transformando suas narrativas nos ruídos da cultura do meio sobre o qual escreve. 

Umberto Eco (1995), entretanto, comenta que os leitores precisam conhecer muitas coisas do mundo real, para tê-lo como pano de fundo do ficcional e também para poder admirar as produções esteticamente aprimoradas.

Para Wilson Martins, crítico literário, apud Rosalino (2002: p.9),  Trevisan criou um estilo pessoal e muito peculiar de narrativa, por isso ocupa lugar de destaque e à parte no conto brasileiro contemporâneo, além de ser facilmente identificado por seus leitores pela sua capacidade artística de escrita, que permite descobertas e novos sentidos para o universo fragmentário do cotidiano e reflete o caos de uma sociedade confusa, hipócrita e aparentemente imaculada.  Parece que Dalton Trevisan sente um certo prazer ao apresentar a seus leitores ações torpes e condenáveis.

Michel Foucault em  O que é um autor? apud Rosalino (2002: p.47) afirma que "deveriam ser excluídas as obras de um autor que estivessem escritas num estilo diferente daquele costumeiramente por ele usado", e ainda "que o autor possui certa unidade na escrita".

Essa unidade na escrita é tão visível nas obras de Dalton Trevisan que o próprio autor em uma de suas obras se questiona "há que de anos escreve ele o mesmo conto? Com pequenas variações, sempre o único João, a mesma bendita Maria", frase utilizada por Rosalino na apresentação de sua dissertação de mestrado.  Muda-se a carne, permanece inalterado o esqueleto, como um eixo norteador, que tem por finalidade não se alterar, justamente para que o leitor possa perceber que os problemas continuam os mesmos, que a essência não muda, por mais que passe o tempo.

A opção de Dalton por trabalhar a escrita como um aproveitamento de tudo que ouve, vê e seleciona, principalmente do universo periférico, lapidando linguagens estereotipadas faz dele um bricoleur.

Segundo Rosalino (2002: p.18)

          o bricoleur está apto para executar um grande número de tarefas diferentes, mas sempre
          lembrando que seu universo instrumental é fechado e que o artista deve trabalhar com o
         conjutno de elementos fragmentários que ele já possui, podendo renovar e enriquecer o seu 
         estoque ou conservá-lo com o que sobrou das construções e desruições anteriores.

Da narrativa daltoniana pode-se dizer, portanto, que é um duplo bricolage,  pois Trevisan se apropria não só de linguagens alheias como da sua própria; selecionando, recortando e colando novamente, tanto o trabalho da crítica sobre sua obra quanto fragmentos de seus contos, que servirão de arsenal para novos escritos.

Trevisan, eterno insatisfeito confesso de sua obra, é adepto da estética minimalista, no que se refere às tecnicas narrativas, lança mão para isso de vários artifícios como: o erótico, o kitsch e o grotesco, mantendo uma relação muito próxima com os meios de comuniação de massa.

Na narrativa minimalista daltoniana a linguagem utilizada é de forma direta, enxuta, restrita e beira ao chulo.  Entretanto, segundo Rosalino (2002: p22) "a economia vocabular e o texto enxuto não representam falta de riqueza na obra, ao contrário, manifestam o poder que cada palavra detêm quando bem escolhida e alocada".

A narrativa minimalista do autor é certamente fruto de acurada elaboração, pois o minimalismo é uma arte de economia de meio, o que não quer dizer, no entanto economia de trabalho, tendo em visa que para atingir a pureza das formas torna-se necessária intensa elaboração, e no caso de Dalton a própria reelaboração.

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